Vivemos tempos em que as notícias falsas estão por todo lado. Mas o que faz uma pessoa compartilhar uma informação que sabe que é uma mentira, e quais fatores sociodemográficos podem influenciar nesta decisão? Foi numa tentativa de responder a estas perguntas que um grupo de pesquisadores brasileiros buscou traçar o perfil de quem espalha notícias falsas no Brasil, ao mesmo tempo em que procurou entender suas motivações. O estudo, liderado por Maurício José Serpa Barros de Moura, atualmente na George Washington University, EUA, foi publicado recentemente no periódico The Journal of Social Media in Society.
Neste estudo, os pesquisadores brasileiros se inspiraram em levantamento semelhante feito pela dupla Manuel Goyanes e Ana Lavín, da Universidade Carlos III em Madri, Espanha, com a população americana e publicado em 2018. A escolha não foi por acaso. Nos EUA, como no Brasil, líderes políticos - lá, Donald Trump, aqui, Jair Bolsonaro - ajudaram a popularizar a noção de "notícias falsas", constantemente repetindo o termo para tentar desacreditar seus críticos, especialmente jornalistas da mídia tradicional, numa conhecida tática de propaganda embora, paradoxalmente, fossem frequentes fontes ou disseminadores de desinformação de todo tipo.
"O uso estratégico da mídia social pelo (ex)presidente Jair Bolsonaro para contestar fatos ajudou a catalisar uma hiperpolarização da sociedade brasileira. À medida que as fontes de informação se tornaram tão intensamente divergentes, segmentos da sociedade não são mais capazes de concordar sobre fatos básicos, criando uma crise epistêmica social", justificam.
Mas também há algumas diferenças. Enquanto nos EUA as notícias falsas ganhavam tração e repercussão principalmente por meio das redes sociais - e em especial pelo ex-Twitter, hoje X -, no Brasil foram os aplicativos de mensagens instantâneas - notadamente o WhatsApp - os principais veículos para sua circulação e compartilhamento. Esta característica traz uma dificuldade adicional na detecção e combate à desinformação, já que estes aplicativos funcionam com criptografia ponta a ponta que, muitas vezes, impede o acesso ao conteúdo das mensagens, inclusive por parte de autoridades policiais e dos próprios provedores do serviço.
Situação que piorou depois que o WhatsApp foi comprado pela Meta, dona do Facebook, por US$ 19 bilhões em 2014. Por meio de acordos da Meta com as operadoras de telefonia nacionais, os usuários de celulares brasileiros tiveram acesso livre aos serviços da empresa, incluindo o WhatsApp, sem contar para o consumo de suas franquias de dados. Estes tipos de plano ainda são muito comuns no país, num problema que os pesquisadores apontam não ter sido devidamente abordado no conceito de neutralidade da rede no âmbito do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).
Contradições
Diante disso, os pesquisadores decidiram iniciar seu estudo com um chamado grupo focal, um método de pesquisa qualitativa, que usaram como abordagem exploratória para a posterior investigação quantitativa. E já de cara observaram contradições em como os brasileiros veem e agem com relação às notícias falsas.
Formado por oito voluntários, metade homens e metade mulheres, selecionados entre brasileiros aptos a votar e que admitiram já ter compartilhado notícias falsas, o grupo focal tinha representantes de diferentes regiões do país e origens socioeconômicas, de forma a fornecer uma visão ampla e diversa das razões por trás do consumo e disseminação de desinformação política no Brasil.
Em reunião virtual realizada em 26 de maio de 2021, devido às restrições da pandemia de COVID-19 e moderada por profissionais especializados neste tipo de pesquisa, os participantes do grupo focal responderam a questões como as fontes de informação política que usam, e sua opinião sobre credibilidade da mídia tradicional e das plataformas sociais neste contexto, além dos motivos pelos quais compartilharam notícias falsas e se se arrependiam de tê-lo feito.
Quanto às fontes de informação política, o WhatsApp foi de longe o mais mencionado pelos voluntários, que já nesta parte da discussão manifestaram desconfiança da mídia tradicional, com frases como "todos os jornais e imprensa brasileira têm interesses escondidos e não podemos confiar neles" e "faço minha própria pesquisa: mídias sociais, WhatsApp e amigos próximos. A imprensa formata as notícias e é difícil de acompanhar".
Daí, não é surpresa que os participantes tenham declarado vigorosamente acreditar que a mídia tradicional brasileira publica notícias falsas, afirmando, por exemplo que "às vezes é difícil acreditar o que vejo na TV, especialmente sobre política. São apenas notícias ruins sobre certas pessoas", ou comentários como "não deveria, mas há muito dinheiro por trás disso".
Não que os voluntários tenham considerado as plataformas digitais mais confiáveis neste sentido. Mas, neste caso, eles minimizaram o problema com argumentos como de que nas redes sociais "temos o controle do que vemos" ou que "as notícias falsas estão em todo lugar e não há ambiente seguro". Um dos participantes, no entanto, chama a atenção para o diferencial do WhastApp como veículo da desinformação no Brasil, ao declarar que "confio muito mais no conteúdo que vem da minha família e amigos" via o aplicativo.
Quanto ao porquê compartilharam notícias falsas, os integrantes do grupo focal apresentaram uma mistura de motivações já apontadas na literatura científica, como a necessidade de aprovação social - "A maioria dos meus amigos faz isso", disse um deles; "Se um amigo está compartilhando, eu também compartilho", contou outro -, atrair a atenção - "Às vezes pode ajudar a ganhar uma discussão", reconheceu um terceiro -, e razões ideológicas - "Só sobre política. Sobre outros assuntos, como ganhar dinheiro ou a pandemia, nunca faria isso", afirmou mais um.
Assim, apesar de concordarem que as notícias falsas causam danos à sociedade, e em sua maior parte se arrependerem de suas atitudes, os participantes também têm prontas justificativas para o que fizeram. "Eu não estava totalmente consciente das consequências na época. Eu só queria espalhar a notícia", explicou um deles, enquanto outro confessou "ser difícil se controlar, mas às vezes acontece". "Não estou orgulhoso disso", completou.
"Notavelmente, durante as discussões, depois de admitir que compartilharam notícias falsas para um grupo de desconhecidos, os participantes ressaltaram ignorarem que estavam espalhando desinformação e que só pretendiam informar outras pessoas, no lugar de terem feito isso ativa e conscientemente", concluem os autores sobre a pesquisa qualitativa. "O WhatsApp foi citado como a principal plataforma para compartilhar conteúdo falso, e a maior parte dos participantes vê as notícias falsas como uma estratégia instrumentalizada por políticos para transmitir certas narrativas e polarizar ainda mais a sociedade brasileira".
Perfil "conservador"
Tendências e contradições que se mantiveram na pesquisa quantitativa, cuja análise multivariada, baseada no modelo de Goyanes e Lavín para o público americano, também permitiu esboçar um perfil dos brasileiros com maiores chances de compartilhar notícias falsas. Realizado via telefone (90% celular e 10% linhas fixas) entre 30 de julho e 12 de agosto de 2021, o levantamento ouviu 2 mil brasileiros numa amostra representativa dos eleitores com mais de 16 anos estratificada por idade, gênero, renda e religião, e distribuída pelas cinco regiões do país. Além disso, os pesquisadores colheram dados sobre nível educacional, religião e orientação política dos participantes, completando as variáveis do modelo.
Já para medir a exposição a notícias falsas relacionadas à política, os entrevistados informaram com que frequência viram reportagens sobre o tema que consideraram total ou quase totalmente inventadas, formando outro binômio no modelo, tendo de um lado "frequentemente" e "às vezes" e do outro "nunca", "quase nunca" ou "não sabe". Eles também responderam se já tinham compartilhado notícias que, mais tarde, descobriram ser falsas e o que fizeram depois que souberam disso, além de sobre a quem acham que cabe a responsabilidade de combater e prevenir a disseminação de falsidades: à própria população, aos governos, aos políticos ou às redes sociais e plataformas digitais, numa escala que ia de 1 ("nenhuma responsabilidade") a 4 ("muita responsabilidade").
Por fim, os participantes avaliaram se acham que a disseminação de notícias falsas é um problema sério numa escala de três pontos ("sim, muito", "sim, um tanto", e "não"), além de "não sabe"; contaram se checavam as notícias que recebiam da mídia social, imprensa e conhecidos ("sempre" ou "ocasionalmente", "raramente" e "nunca"); e informaram se confiavam nas agências de checagem de fatos ("sim", "não", "nunca ouvi falar" e "não sabe").
O levantamento mostrou que 21% dos brasileiros admitem ter compartilhado notícias falsas, número que os pesquisadores consideraram "significativo", já que muito provavelmente subestimado devido ao viés de desejabilidade social, dado que é uma atitude vista como negativa para a sociedade. Segundo os autores do estudo, em perguntas adicionais a estes participantes, a pesquisa mostrou que 39% nunca corrigiram ou esclareceram as informações compartilhadas, mesmo depois de saberem serem falsas, e 5% continuaram a disseminar a notícia falsa de forma deliberada.
Isto apesar de 79% terem declarado considerar as notícias falsas um problema sério - e prevalente, com 74% dizendo cruzar com notícias falsas regularmente (soma das respostas "frequentemente" e "às vezes"). Mesmo assim, muitos dos entrevistados não costumam checar as notícias que consomem, hábito de apenas 42% dos ouvidos - contra 23% que o fazem apenas raramente e 35% nunca -, e tampouco usarem os serviços profissionais das agências de checagem de fatos, alvo da desconfiança de 40% e do desconhecimento de outros 20% deles.
Ainda assim, eles consideram a imprensa a grande responsável pelo trabalho de corrigir e prevenir a circulação de notícias falsas (64%), seguida dos governos e políticos (62%). Já as plataformas digitais foram apontadas como as grandes responsáveis por isso por 56% dos entrevistados, e o próprio público por 54%.
A análise multivariada, por sua vez, revelou um perfil "conservador" para quem compartilha notícias falsas no Brasil, especialmente de forma deliberada, isto é, sabendo ser mentira. Em geral, integrantes da classe C - identificada como "classe média" pelos pesquisadores com base na versão 2021 do Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), desenvolvido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep) - apresentaram uma chance 49% maior de estarem no grupo dos que admitiram já ter compartilhado notícias falsas, com os que se disseram "evangélicos" sendo os mais propensos a isso, numa chance 32% mais alta.
Ter alguma orientação política também aumenta muito esta chance, atingindo principalmente os que se dizem de "centro" (72%), seguidos dos "de direita" (44%) e dos "de esquerda" (41%). Este caráter aparentemente "moderado" logo muda, no entanto, quando se analisa a parcela dos entrevistados que admitiu ter continuado a compartilhar a notícia falsa mesmo depois de saber que era mentira, com os que se disseram "de direita" apresentando uma chance 34% maior de fazer isso.
Influência, talvez, de frequentarem um ambiente de maior circulação de desinformação. Brasileiros que disseram terem visto notícias falsas de maneira regular viram este risco ficar 83% maior, e se compartilharam mesmo inadvertidamente tiveram uma chance 88,9% mais alta de repetir a atitude deliberadamente. Já as variáveis de gênero, idade, nível educacional e pertencer às classes A ou B não apresentaram resultados estatisticamente significativos na análise, nem qualquer das respostas sobre a atribuição da responsabilidade pelo combate e prevenção das notícias falsas.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência