No último dia 17 de janeiro o jornal Folha de S.Paulo noticiou que a Universidade de São Paulo (USP) havia cancelado o curso “Parto e Espiritualidade Cristã”. Na descrição do curso consta que os objetivos consistem em “refletir a espiritualidade em suas etapas fisiológicas” e as suas influências no processo de perda fetal. Em nota para Folha, a USP diz que o cancelamento, feito pela Comissão de Cultura e Extensão, visa "zelar pela manutenção da Universidade de São Paulo como uma instituição pública e laica".
A religião faz parte da sociedade e poderia tranquilamente compor os debates acadêmicos dependendo do contexto em que é abordada. Conforme mencionei em artigo para a Revista ComCiência: “seria, por exemplo, aceitável a introdução da astrologia, do terraplanismo ou do ET de Varginha em uma disciplina na universidade? É possível que a resposta seja sim desde que os temas apareçam no contexto de estudos socioantropológicos, históricos ou psicológicos. Por outro lado, não caberia uma disciplina em um curso de física ou geografia que ensinasse esses assuntos como fatos reconhecidos pela comunidade científica, desinformando abertamente o aluno”.
Embora não exista na nota à imprensa uma explicação mais detalhada sobre o conceito de laicidade adotado no cancelamento, é bem possível que os gestores não estejam considerando uma exclusão completa de qualquer aspecto religioso na esfera universitária. A busca pela palavra “religião” no Sistema Júpiter, uma plataforma que abriga as disciplinas da USP, retorna seis resultados: Cidade, Espaço e Religião; Direito Penal e Religião; Do Afro ao Brasileiro: Religião e Cultura Nacional; Introdução à Psicologia da Religião; Introdução à Sociologia da Religião; e Leituras sobre Educação, Racismo e Religião. Os conteúdos, estudados sob um prisma antropológico, parecem pertinentes ao mundo universitário.
Parece, portanto, que o problema não é a religião, mas o apelo ao sobrenatural que já se revela no título da disciplina e no primeiro tópico do conteúdo programático, dado por uma “obstetriz e missionária”, “A origem da vida: o ser humano é formado com corpo, alma e espírito” – o tema abordado é no mínimo bizarro para uma universidade não confessional, equiparando-a a uma instituição de catequese. De fato, não é esse tipo de conhecimento sobre religião que se busca em uma universidade.
O respeito ao princípio da laicidade na educação superior é uma conquista importante, mas a experiência histórica e o compromisso intelectual com a análise crítica acurada sobre todos os assuntos mostram que, como princípio fundamental, o respeito ao método científico é tão essencial quanto, ou até mais, do que a laicidade.
Pode-se até dizer que, como valor universitário, a laicidade emana do compromisso central com o método científico, como forma de garantir que esse compromisso não será embaraçado por dogmas metafísicos, risco sempre presente em ambientes confessionais. Apesar de a maioria das universidades ocidentais ter sido confessional durante séculos, e muitas instituições de prestígio, com pesquisa e educação de primeira linha, ainda serem, isso não exclui a possibilidade de que o pensamento crítico possa avançar para que uma universidade se mantenha fiel a seu papel ideal.
Desta forma, da mesma maneira que o tom proselitista do curso cancelado foi corretamente considerado inaceitável, o mesmo juízo deveria recair sobre diversas atividades acadêmicas que mantêm compromissos com sistemas doutrinários fantasiosos, ainda que não relacionados diretamente a uma religião.
É notório, porém, que sob o manto da pluralidade e respondendo a pressões políticas internas, universidades relutam em eliminar de suas grades curriculares e programas de pesquisa certas “pseudociências de estimação” que vão de encontro a consensos científicos bem estabelecidos. Uma busca rápida nas melhores universidades brasileiras retorna cursos de homeopatia falando sobre memória da água, atividades acadêmicas referindo-se a energias esotéricas que emanam das mãos (reiki) ou mesmo disciplinas de “saúde quântica”.
A adoção de padrões de rigor diferentes para a análise de situações que afrontam a razão coloca as universidades como alvo de ataques desnecessários. A velocidade com que a decisão acerca do cancelamento da disciplina “cristã” foi tomada revela, ainda, uma indignação que parece ser seletiva e motivada mais pelo conteúdo “politicamente incorreto” da ementa do que pela correta defesa de princípios fundamentais. Em comparação, um manifesto de professores de física contra a disciplina Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde, na Universidade Federal de Rio Grande, conseguiu apenas a retirada da palavra “quântica” em 2021, dois anos depois da sua criação. A médio prazo, esse jogo de favoritismos mina a credibilidade da Academia, principalmente quando se olha para além das câmaras de eco da bolha universitária.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência