Para entender a crise de opioides nos EUA

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5 dez 2023
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Polêmicas relacionadas ao uso de opioides têm ganhado os holofotes no Brasil em tempos recentes, especialmente depois da popularização de documentários filmes e séries, baseados em fatos reais, a respeito da chamada “Crise dos Opioides” dos Estados Unidos.

Todo esse barulho faz sentido. Muitos dos acontecimentos ligados à crise são chocantes e os dados, alarmantes: centenas de milhares de mortes estão, de alguma forma, relacionadas ao uso de opioides nos EUA.

Na tentativa humana de buscar um responsável imediato por tudo isso (como se uma crise dessa magnitude pudesse ter uma única causa), muitos estamos, de maneira reducionista, responsabilizando os fármacos em si, em vez de investigar o fenômeno em seu contexto amplo. Esse reducionismo, no entanto, é o mesmo tipo de pensamento que nos torna vulneráveis a crises como esta.

 

Remédio ou veneno?

É praticamente um clichê insistir naquilo que Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, mais conhecido como Paracelso, afirmou ainda no século XVI: “A diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Em geral, a interpretação da frase é bem direta: o consumo de grandes quantidades, de uma vez, de praticamente qualquer substância pode fazer mal. Mas, em toxicologia, a coisa é um pouco mais complicada.

De fato, a ingestão, em dose alta, de uma substância pode levar a um quadro de superdosagem (popularmente conhecido como overdose). Isso é básico. Mas, além disso, o contexto de utilização, a forma farmacêutica (se é um comprimido revestido, cápsula, xarope etc.), a via empregada (oral, intravenosa, intramuscular etc.), a repetição contínua do uso, o modo como fármacos de uma mesma classe podem se comportar de maneira diferente no organismo, as características individuais do usuário, entre outros fatores, influenciam o que irá acontecer.

Existem substâncias mais tóxicas que outras. Um opioide como a morfina é, por exemplo, intrinsecamente mais perigoso que um benzodiazepínico como diazepam. Do ponto de vista regulatório, ambos são medicamentos tarja preta simplesmente porque o uso prolongado pode causar dependência. Mas sabemos que uma superdosagem de morfina traz um risco de vida maior do que a superdosagem com diazepam. A toxicidade é uma característica objetiva e relativamente fácil de medir.

O problema reside no fato de que não usamos medicamentos simplesmente porque são pouco tóxicos (alguns, inclusive, são muito tóxicos). Tampouco usamos medicamentos apenas por serem eficazes para alguma condição clínica. Usamos (ou deveríamos usar) um medicamento quando o benefício que pode trazer para uma condição clínica supera o risco de causar danos.

Mas caracterizar o nível de risco é um processo complexo. É claro que a toxicidade de uma substância influencia nisso. Mas, para definir o risco objetivo de um tratamento, precisamos considerar também o contexto da aplicação. A segurança será calculada como uma medida prática que informe a probabilidade de determinada substância provocar consequências graves em um contexto específico.

É por isso que tanto se insiste na importância de ensaios clínicos aleatorizados. São eles que nos informam as probabilidades de benefício e de dano que um medicamento pode causar, em um contexto terapêutico específico. E nos lembram que, se mudarmos o contexto, o risco e a segurança também irão mudar. Se mudarmos o contexto sem evidências suficientes, os possíveis benefícios, a segurança e o risco não apenas irão mudar, mas tornam-se desconhecidos, dificultando estimar qualquer impacto sobre o indivíduo ou a sociedade.

A incompreensão desses conceitos é um dos fatores que influenciaram a Crise dos Opioides nos EUA e que têm alimentado a demonização desses fármacos por aqui. Mas é claro que uma crise dessa magnitude não se limitaria a isso.

A crise americana foi causada também pela falta de letramento científico de profissionais prescritores; pela vulnerabilidade clínica de pacientes que sentem dor, somada à vulnerabilidade social do acesso restrito a serviços de saúde; tudo isso impulsionado pela ganância da indústria farmacêutica e por brechas legais e éticas no sistema de regulação.

 

Opioides

Opioide é o nome dado a uma substância com ação semelhante à do ópio. Inicialmente observada com substâncias diretamente extraídas da papoula (opiáceos como a morfina), depois em substâncias sintéticas (como a oxicodona), além de substâncias endógenas (como a endorfina).

O cultivo da papoula, fonte do ópio, data de milhares de anos. Seus efeitos sedativos e analgésicos já eram conhecidos desde a Grécia Antiga, e os romanos utilizavam a figura da flor como símbolo tanto para o sono (em referência à sua ação sedativa) quanto para a morte (em alusão à sua toxicidade).

A ação dos opioides, tanto exógenos (produzidos fora do corpo, a partir de processos sintéticos ou extraídos na natureza) quanto endógenos (produzidos pelo próprio organismo humano), se dá principalmente pela interação com receptores em neurônios, em especial os chamados receptores “mu” (ou μ). De maneira bastante simplificada, essa interação faz com que os neurônios tenham maior dificuldade em receber estímulos e estimular outros neurônios envolvidos nas vias de dor, o que dificulta a condução e a interpretação de um estímulo como doloroso. Essa modulação analgésica acontece naturalmente no nosso corpo por meio de opioides endógenos, e pode ser reforçada e potencializada com o uso de exógenos (para quem quiser se aprofundar neste mecanismo, gravei uma aula pública a respeito, que está disponível aqui).

Contudo, essa mesma ação em receptores μ, em áreas cerebrais envolvidas na recompensa e motivação, favorece a dependência química, o que faz com que seu uso, especialmente o uso contínuo, deva ser criterioso e restrito (para se aprofundar nos aspectos neurobiológicos da dependência, leia o capítulo 6 que escrevi para o livro “Temas em Neurociência”).

O que diferencia os vários opioides exógenos do ponto de vista clínico é, principalmente, sua potência (o tamanho da dose necessária para fazer um efeito), meia-vida (tempo que demora para a concentração do fármaco no sangue cair pela metade) e a via de administração utilizada (oral ou intravenosa, por exemplo). A morfina é considerada o protótipo da categoria e, portanto, recebe o valor relativo de potência igual a 1. Essa é a base de comparação com outros opioides.

Por exemplo: a codeína tem potência 0,1 comparada à morfina, a oxicodona aproximadamente 2 e o fentanil, mais de 100. Isso significa que a codeína é um opioide mais “fraco” do que a morfina, enquanto a oxicodona é mais “forte” e o fentanil, muito mais potente. Além disso, as meias-vidas da morfina e do fentanil são muito curtas, o que faz que sejam excretados mais rapidamente. Codeína costuma ser usada pela via oral, o que torna o processo de absorção e distribuição da droga no organismo mais lento, enquanto o fentanil costuma ser administrado de maneira intravenosa, tendo efeitos quase imediatos.

Sendo assim, a escolha e o manejo dos opioides para cada paciente e cada condição clínica não é uma tarefa simples, o que justifica ainda mais o controle e a necessidade de capacitação.

 

O quinto sinal vital

A década de 1990 foi marcada por uma mudança cultural em relação à dor: a comunidade médica passou a considerar a dor como um "quinto sinal vital", levando a uma ênfase em tratar a dor de maneira mais contundente e eficaz. A iniciativa tinha como objetivo valorizar mais a queixa de dor dos pacientes, uma vez que a percepção de dor é também um processo subjetivo e frequentemente subestimado e mal controlado.

Porém, essa necessária mudança paradigmática que, a princípio, buscava melhorar a qualidade de vida de pacientes que sentiam dor, foi distorcida por alguns profissionais da saúde e segmentos da indústria farmacêutica, que propagaram a crença de que seria possível e desejável erradicar, com medicamentos, qualquer tipo de dor. Com isso, houve um aumento nas prescrições de analgésicos, com grande enfoque nos opioides.

Aqui podemos notar a má influência do pensamento reducionista. Primeiro, por achar que um único tipo de intervenção (medicamento) poderia ser suficiente para controlar qualquer tipo de dor. E, segundo, por considerar que “dor” é um conceito simples e monolítico, em vez de levar em conta que se trata de uma definição complexa, abrangente e multidisciplinar, tendo diversas subdivisões com diferentes perfis de resposta aos analgésicos opioides.

Se, como pensaram – ou deliberadamente propagandearam – os reducionistas e os oportunistas, a dor é uma coisa só; e se existem medicamentos altamente competentes em tratar a dor – os opioides – então bastaria medicalizar qualquer pessoa com alguma queixa de dor com opioides. E isso seria automaticamente benéfico para qualquer um. Ou seja, ignora-se todo o aspecto probabilístico essencial de riscos e benefícios. 

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Essa foi a premissa adotada, por exemplo, pelo marketing agressivo da empresa Purdue Pharma com seu produto de maior sucesso (e de maior envolvimento na Crise dos Opioides), o OxyContin (oxicodona), na tentativa de reposicionar o uso de opioides – antes mais restrito ao controle da dor em cuidados paliativos ou pós-cirúrgicos – para qualquer tipo de contexto e de maneira irrestrita.

Somando esse aumento de disponibilidade, o incentivo ao acesso e a utilização de opioides sob a falsa premissa de erradicar a dor à vulnerabilidade econômica de diversas áreas dos Estados Unidos, que dificultava ou impedia o acesso adequado a serviços de saúde, chegamos às portas da crise.

 

Mudar a via é também mudar o risco

A via pela qual um medicamento é utilizado ajuda a determinar como a substância se comporta em nosso organismo. Quando a Purdue Pharma decidiu lançar o OxyContin, isso não era exatamente uma novidade. A oxicodona já era comercializada em outros medicamentos por via oral, como o Percodan (associada ao ácido acetilsalicílico) e o Percocet (associada ao paracetamol).

A diferença é que o OxyContin foi produzido com uma tecnologia farmacêutica que permitia uma liberação prolongada. Ou seja, a absorção era mais lenta, gradual e controlada. Isso, em tese, permitiria que não houvesse um pico absortivo, favorecendo um efeito mais prolongado e consistente. Em termos clínicos, hipoteticamente teríamos maior tempo de ação, menor probabilidade de efeitos adversos e risco de dependência reduzido.

Apoiada nessas supostas vantagens, a Purdue aproveitou para propagar a ideia de que se tratava de um novo produto, muito mais seguro do que os medicamentos semelhantes. Isso gerou uma percepção pública, inclusive para profissionais de saúde, de que a oxicodona da Purdue seria mais segura e menos potente do que a morfina, por exemplo (quando, na verdade, é um fármaco mais potente). Essa sensação de segurança fez com que a empresa encontrasse espaço para produzir apresentações de comprimidos com doses muito superiores às que eram comercializadas anteriormente. Apresentações com 80mg ou 160mg de oxicodona se tornaram frequentes, quando antes disso chegavam a, no máximo, 10mg.

A promessa de segurança apoiava-se na tecnologia de liberação prolongada, não no fármaco em si. A oxicodona continuava a ser oxicodona. Não demorou muito, portanto, para que algumas pessoas percebessem que, ao macerar comprimidos e aspirá-los pelo nariz, a oxicodona teria efeitos quase tão rápidos e intensos quanto a administração de um opioide de alta dose injetado por via intravenosa, como a heroína. Isso contribuiu para o uso não médico de opioides e para a epidemia dos casos de dependência química.

A confusão dos profissionais de saúde a respeito de conceitos como tempo de meia-vida, tecnologia farmacêutica de liberação prolongada, potência relativa dos opioides, além da possibilidade da troca da via de administração fragilizaram ainda mais o cenário.

 

Medicina baseada em propaganda

A possibilidade de opioides provocarem dependência era conhecida há muito tempo. Até mesmo antes de o sistema de recompensa cerebral e a neurobiologia da dependência serem descritos, o trabalho realizado por Spragg (1940) mostrava que chimpanzés, após receberem repetidamente drogas opioides, trabalhavam voluntariamente para ter acesso a estas substâncias, contrariando o esperado de seus comportamentos inatos.

Então, por qual motivo médicos passaram a considerar que a flexibilização da prescrição de opioides seria segura, do ponto de vista da dependência química? Além da postura profissional antiética e de recompensas financeiras oferecidas, por exemplo, pela Purdue, muitos profissionais simplesmente acreditaram que estariam de fato ajudando pacientes com dor e se (des)informaram pela propaganda da indústria farmacêutica.

É prática comum que representantes da indústria abordem profissionais de saúde na tentativa de mostrar os benefícios e diferenciais de seus produtos. Esta é uma prática regulamentada de acordo com as normas sanitárias de cada país, sob a fiscalização de uma agência regulatória. Porém, faz parte do treinamento científico e do pensamento crítico o ceticismo apurado frente a esta abordagem. Afinal, existe um conflito de interesse importante, à medida que o vendedor de um produto se coloca também como a principal fonte de informação científica sobre o que está vendendo.

Nesse contexto, uma das principais manobras para propagar um discurso pseudocientífico, disfarçado de discurso científico, é o chamado “cherry picking”, a escolha deliberada apenas da “evidência” que confirma a narrativa positiva, ignorando o restante do ecossistema científico que desafia essa mesma narrativa.

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Um dos artigos utilizados neste processo foi “Chronic Use of Opioid Analgesics in Non-Malignant Pain: Report of 38 Cases". Publicado na renomada revista Pain, trazia resultados alinhados ao novo paradigma de controle de dor e mostrava resultados benéficos e com poucos prejuízos para o uso crônico de opioides.

O que não recebeu a devida atenção, neste processo, foi o fato de que se tratava de um relato de casos, não um ensaio clínico. Não houve grupo comparador, nenhum tipo de controle de vieses, etc. É um tipo de estudo que permitiria, no máximo, formular uma hipótese a ser testada em trabalhos mais rigorosos, mas jamais poderia constituir a base de uma política de prescrição (algo muito semelhante ocorreu durante a pandemia, com o uso de hidroxicloroquina e ivermectina baseados nesse tipo de estudo).

Porém, a referência mais citada - inclusive formalmente, em documentos para a solicitação de registro pela Food and Drug Administration (FDA), a agência que regula alimentos e medicamentos nos EUA - para endossar o argumento da suposta segurança do OxyContin em relação ao uso crônico e dependência foi “Addiction Rare in Patients Treated With Narcotics”.

Nesta publicação, afirmava-se que de 11.882 pacientes que faziam uso de opioides (incluindo a oxicodona), apenas quatro desenvolveram quadro documentado de dependência. Isso levou a uma pesada campanha de marketing junto a profissionais de saúde que afirmava que menos de 1% dos pacientes corriam o risco de se tornar dependes. Os argumentos, apoiados em um artigo publicado em uma das revistas científicas mais famosas do mundo, New England Journal of Medicine, foram amplamente aceitos.

O que não foi mencionado, neste caso, é que não se tratava de um artigo resultante de um estudo clínico robusto, mas sim de uma breve carta ao editor, com apenas um parágrafo e duas referências bibliográficas, que comunicava uma simples observação sobre uso de opioides em contexto hospitalar. Ou seja, sem qualquer tipo de valor preditivo para as consequências do uso crônico ambulatorial de opioides.

Esse fato é um importante lembrete de que a falta da incorporação da evidência científica (ou do reconhecimento de sua ausência) nas tomadas de decisões clínicas e regulatórias torna o sistema de saúde altamente permeável a práticas predatórias, anticientíficas e antiéticas.

 

Regulação sanitária

A crise dos opioides iluminou falhas críticas no sistema de regulação sanitária, particularmente no contexto da FDA. Este episódio histórico enfatiza a necessidade de um sistema regulatório robusto, transparente e resistente a influências externas.

A FDA daquela época lidava com limitações significativas. Uma era a quantidade de recursos humanos disponível para avaliações rigorosas. Comparado com o quadro de funcionários de hoje, a FDA de então operava com um número menor de especialistas, o que impactava diretamente a capacidade da agência de realizar avaliações detalhadas e independentes.

Essa restrição de recursos frequentemente resultava em uma dependência excessiva de dados fornecidos pelas próprias empresas farmacêuticas, muitas vezes concentrando decisões importantes nas mãos de um ou dois indivíduos, o que poderia levar a uma avaliação menos crítica e – principalmente – mais suscetível a pressões externas, inclusive financeiras. Além disso, a autonomia da FDA era também frequentemente minada por interferências políticas e econômicas.

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Justamente por conta disso, hoje as agências reguladoras (incluindo a Anvisa brasileira) tendem a valorizar mais as decisões colegiadas, que distribuem a responsabilidade e permitem uma análise mais diversificada e abrangente, minimizando o risco de influências indevidas. Há também um esforço maior para manter a autonomia, reforçando a importância de uma regulação baseada em evidências científicas e não em interesses de grupos específicos.

Embora este trágico exemplo seja usado para colocar em xeque a confiança pública nas agências regulatórias e nos tratamentos aprovados por elas, na verdade este episódio evidencia ainda mais a importância dessas agências, além de destacar a necessidade de revisões constantes nas práticas regulatórias, aprimorando a capacidade de proteção à saúde pública.

 

“Consequentizar” e conscientizar

Todos os fatores citados até aqui ajudam a explicar a vulnerabilidade da sociedade a situações como esta. Mas é claro que sem opioides e o incentivo ao consumo não haveria uma Crise de Opioides. As práticas antiéticas e anticientíficas adotadas pela indústria farmacêutica – exemplificadas aqui pela Purdue Pharma – para promover o uso mostram que o controle e a prevenção de crises não se limitam apenas a uma questão de conscientização sobre a ética, prática baseada em evidências e autonomia de agências regulatórias. Revelam também uma questão de "consequentizar" – assegurar que haja consequências concretas e significativas – para quem pratica abusos.

No coração desta crise particular está a manipulação de informações e a promoção agressiva do uso de medicamentos, sem uma base científica sólida e ignorando os riscos potenciais. A Purdue Pharma, por exemplo, foi amplamente criticada por suas táticas de marketing enganosas, que minimizaram os riscos de dependência dos opioides e exageraram benefícios. Este comportamento não apenas violou princípios éticos, mas desencadeou uma onda de prescrições excessivas, dependência química e, finalmente, inúmeras mortes.

Embora parte disso tudo se deva às fragilidades estruturais que comentamos anteriormente, é necessário haver um mecanismo robusto para impor penalidades e responsabilizar aqueles que se desviam das normas éticas e científicas. Isso inclui tanto as empresas farmacêuticas quanto os profissionais de saúde que se alinham a práticas questionáveis.

Empresas como a Purdue sofreram penalidades financeiras significativas, mas isso não tem sido suficiente para impedir práticas semelhantes por outros agentes. A penalização financeira, embora relevante, muitas vezes representa apenas uma fração dos lucros obtidos através de práticas antiéticas. Além disso, raramente os executivos e os tomadores de decisão clínica enfrentam consequências pessoais, como processos criminais ou a perda de licenças profissionais. Portanto, é essencial estabelecer um precedente legal claro de que tais violações não podem ser toleradas.

 

Reducionismo e polarização

No contexto brasileiro, temos sido muito mais espectadores (até mesmo no sentido literal, ao assistir aos documentários e séries que contam essa história) do que protagonistas na Crise dos Opioides.

Vimos que contexto é fundamental ao se abordar qualquer uso de medicamentos, incluindo opioides. E o contexto é importante, inclusive para questões culturais de cada país. Certa vez fiquei chocado ao ler o relato de caso de uma criança norte-americana, de dois anos de idade, que foi submetida a uma cirurgia de adenotonsilectomia (remoção das “amígdalas”). Como tratamento ambulatorial para dor, foi prescrito codeína (um opioide). Isso me causou espanto, pois raramente vejo alguém no Brasil receber uma prescrição assim, muito menos criança. Em nosso país, após uma cirurgia de adenotonsilectomia, a prescrição para uma criança seria: sorvete. E se tiver dor, ibuprofeno.

Existe, portanto, uma diferença cultural significativa em relação ao controle da dor aqui e nos Estados Unidos. Desconsiderar isso é descontextualizar o uso de opioides. E descontextualizar o uso é descartar a possibilidade de entender riscos e benefícios, nublando qualquer tomada de decisão, tanto individual quanto coletiva.

Um exemplo: para pacientes em vulnerabilidade extrema com ameaça à continuidade da vida (“pacientes terminais”), um dos sintomas mais prevalentes é a dor. E cerca de 50% ou mais desses pacientes não têm sua dor adequadamente controlada em nosso país, prejudicando a qualidade de vida no pouco tempo que lhes resta. Isso porque culturalmente temos medo e receio tanto de utilizar quanto de prescrever opioides. Até as regras para propaganda de medicamentos, tanto para o público quanto para profissionais de saúde, são mais rígidas no Brasil.

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É claro que isso não nos deixa automaticamente imunes a uma crise como esta. De fato, bastam alguns deslizes do ponto de vista regulatório, da alfabetização científica e da ética profissional para que uma crise semelhante se instale. Se a indústria do tabaco expandiu seu território para mercados tardios fora dos Estados Unidos, quando as regras lá se tornaram mais rígidas, outras indústrias podem seguir o mesmo caminho.

Mas demonizar os fármacos opioides sem levar em consideração todo este panorama, informados apenas por produtos de cultura pop (séries, documentários), não beneficia ninguém. Ao contrário, esse tipo de pensamento determinista e maniqueísta é justamente a gênese da permeabilidade social às práticas tão pseudocientíficas quanto a prescrição de opioides sem evidência adequada.

 

André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC) e "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores)

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