Um dos grandes desafios na luta contra a desinformação está no fato de que os seres humanos são muito fáceis de enganar, ou de enganarem-se a si mesmos. Nossa tendência a recorrer a atalhos mentais (heurísticas) para dar sentido ao mundo em nossa volta nos torna vulneráveis aos mais variados tipos de vieses cognitivos. Mas também somos muito fáceis de enganar sensorialmente. Ilusões de ótica são as mais conhecidas e comuns, mas nos últimos anos cientistas têm jogado com outros sentidos, induzindo erros na nossa própria percepção corporal.
Em tempos recentes, por exemplo, ganhou notoriedade experimento originalmente relatado em 1998 pela dupla Matthew Botvinick e Jonathan Cohen em que, usando uma mão de borracha, levaram os participantes a sentirem toques nela como se fossem na própria mão, escondida de sua vista. Eles creditaram a ilusão a uma interação entre visão, tato e a propriocepção, a capacidade que temos de saber a posição, orientação e uso da força muscular de nosso corpo como um todo, e suas partes relativamente umas às outras. De lá para cá, esta estratégia tem sido testada, por exemplo, para estimular e melhorar o senso de pertencimento de próteses por pacientes amputados, com diferentes níveis de sucesso, e também algumas críticas e dúvidas sobre os processos físicos e cerebrais por trás do fenômeno.
E agora, pela primeira vez, um grupo de pesquisadores usou estratégia semelhante para induzir de maneira controlada alucinações auditivas verbais, do tipo "ouvir vozes", em pessoas saudáveis, processo descrito em artigo publicado recentemente no periódico científico Psychological Medicine. Esquema que, esperam, poderá ser usado para ajudar no estudo da natureza e processos cognitivos ligados a este tipo de fenômeno, muito comum em pacientes esquizofrênicos e neurológicos, mas também em inúmeros relatos mediúnicos de contatos com mortos ao longo da história, e por "caça-fantasmas" modernos e suas traquitanas eletrônicas.
Obstáculos metodológicos
Os pesquisadores lembram que embora alucinações sejam sintomas frequentes e altamente deletérios de diversas condições psiquiátricas e neurológicas, com grande relevância clínica, a pesquisa e entendimento desses fenômenos são prejudicados por obstáculos metodológicos. O maior é a dificuldade de fazer experimentos induzindo-as de maneira controlada em laboratório. A abordagem farmacológica, com o uso de drogas psicodélicas como o LSD, por exemplo, ou métodos como privação sensorial ou de percepção (Efeito Ganzfeld) e indução de fosfenos (um tipo de alucinação visual envolvendo luzes piscantes e formas geométricas) oferecem pouco controle em termos de conteúdo (geralmente não específico), ocorrência e duração (podendo se estender por longos períodos), e podem levar à perda da consciência.
Diante disso, ainda em 2014, o grupo liderado por Olaf Blanke, do Laboratório de Neurociência Cognitiva da Escola Politécnica Federal de Lausanne em Genebra, Suíça, desenvolveu um sistema robótico mestre-escravo em que o acionamento de uma espécie de interruptor fazia com que o participante do experimento levasse um cutucão nas costas, com força equivalente à aplicada no aparelho. Sincronizando e dessincronizando as ações, eles levaram os voluntários a experimentar o que é conhecido como "sensação de presença" ou "presença fantasma", a ilusão de que havia uma pessoa inexistente junto a eles, com princípios semelhantes aos da ilusão da mão de borracha.
Neste novo estudo, os pesquisadores somaram uma tarefa de identificação de vozes ao procedimento, numa série de dois experimentos envolvendo 24 indivíduos saudáveis cada. Usando gravações das vozes dos próprios participantes e outras pessoas pronunciando palavras curtas, eles as reproduziam (ou não) sobre o pano de fundo de um chamado "ruído rosa", variação do "ruído branco" muito usado em experiências acústicas, mas considerado mais agradável para ouvidos humanos e descrito como um barulho semelhante ao de uma cachoeira.
Segundo os cientistas, o esquema fez os voluntários terem alucinações auditivas verbais, acusando ter ouvido uma voz humana falando mesmo quando o que se reproduzia era apenas o ruído rosa, numa falsa detecção que variou se o "cutucão" robótico era síncrono ou assíncrono, e se a voz era do próprio participante ou de outra pessoa. Ela foi maior quando o "cutucão" era assíncrono - mesma situação em que a sensação de presença foi mais induzida no experimento anterior - e a voz de outra pessoa, e mais comum na parte final da sessão.
Investigando paradigmas
Ainda de acordo com os pesquisadores, os experimentos também permitiram investigar dois paradigmas sobre a natureza e os mecanismos por trás das alucinações auditivas verbais. O primeiro, conhecido como de "automonitoramento", sugere que elas são resultado da incapacidade de distinguir entre ocorrências relacionadas a si ou a outras pessoas. Tal distinção ocorreria com a criação de previsões sensoriais para nossas ações, que então são comparadas ao retorno sensorial que recebemos delas. Coisas como "se bato na mesa, espero ouvir o barulho de bater à mesa". Se estes sinais são congruentes, nosso cérebro interpreta a ação como nossa. Se não, ela é atribuída a um agente externo. Estudos com pacientes esquizofrênicos indicaram que eles têm uma tendência a não se aperceberem da própria voz enquanto falam, além de problemas na rede cerebral da fala, que podem fazer com que atribuam suas falas a um agente externo.
Já o segundo paradigma postula que as alucinações auditivas verbais podem ser geradas por crenças excessivamente fortes sobre o ambiente. Ele se baseia em uma estrutura de codificação preditiva que vê o cérebro como um sistema hierárquico em que a antecipação (em níveis mais altos) e a informação sensorial (em níveis mais baixos) se combinam para a percepção. Sob esta perspectiva, a percepção é modulada por um balanço entre os componentes "de baixo para cima" (os sentidos) e "de cima para baixo" (a expectativa), com aquele que for mais forte dominando a percepção. Desta forma, as alucinações viriam de uma força exagerada da expectativa, sobrepujando a informação sensorial factual. Dados empíricos de pessoas que dizem ouvir vozes em contextos clínicos e não clínicos indicam a plausibilidade desta via, mas ainda não está claro que tipos de antecipação ou expectativas precisam ser exagerados de forma a gerar as alucinações.
Segundo os pesquisadores, os resultados de seus experimentos podem ser relacionados aos dois paradigmas. Primeiro, ouvir repetidamente uma voz com uma identidade específica - de si mesmo ou de outra pessoa - cria uma expectativa sobre as vozes que se seguirão. Assim, um indivíduo que ouve consecutivamente a voz de outras pessoas vai esperar ouvir mais uma voz estranha no futuro, explicando maior taxa de falsos alarmes neste contexto experimental. Além disso, a indução da sensação de presença pelo movimento assíncrono do braço robótico gera uma confusão sensomotora que pode atrapalhar o sistema de automonitoramento, completando a ilusão. Proposta que seria corroborada pela observação de que os falsos alarmes forma mais frequentes nas fases finais das sessões, quando a expectativa auditiva-verbal quanto às vozes e a perturbação sensomotoras e consequente a sensação de presença supostamente estariam mais fortes.
Diante disso, talvez não seja surpresa caçadores de fantasmas modernos afirmando ouvir vozes do Além com suas máquinas de falar com mortos. Sejam fraudes descaradas como a Spiricom ou traquitanas como as Spirit Boxes - "caixas espirituais", equipamentos que vasculham o espectro AM e FM de ondas de rádio que são peças centrais em reality shows e canais de Youtube dedicados ao tema -, o que quer que digam sair delas, se não forem trechos aleatórios das transmissões que eventualmente captam, podem muito bem serem apenas alucinações geradas por suas expectativas sobre o ruído de fundo.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência