No meu artigo mais recente, comentei de forma breve que o ataque aos ultraprocessados – sem levar em consideração o valor nutricional de cada produto – era uma forma de falácia do apelo ao natural, com requintes de quimiofobia. Entretanto, deixei de explicar o que seria quimiofobia. A palavra une os elementos “químio” e“fobia”, denotando medo/horror/aversão irracional de substâncias químicas.
Vale reforçar que existe uma diferença brutal entre medo e fobia, apesar de serem comumente utilizados como sinônimos. O primeiro é um produto da evolução e que nos manteve – e mantêm – alertas para possíveis ameaças. A segunda é um tipo de distúrbio de ansiedade, onde a pessoa sente um medo excessivo, persistente e, até mesmo, irracional de um animal, situação, objeto, ou qualquer outra coisa, podendo ocasionar perturbação emocional intensa ou levar a comportamentos que permitam evitar gatilhos.
Mas essa é uma definição clínica. Na linguagem mais informal, o sufixo “fobia” passou a ser usado para designar qualquer aversão ou hostilidade de natureza preconceituosa e irracional – e que pode se voltar tanto contra grupos humanos (“homofobia”, “islamofobia”) quanto ideias, processos e produtos. É aí que se encaixa a “quimiofobia”.
É importante notar que tudo o que existe no planeta Terra, incluindo a tela em que você está lendo este texto e o cérebro com que você o compreende, é feito de substâncias químicas. Mesmo um quimiófobo radical, que decida se mudar para o meio do mato e só comer frutas silvestres, jamais tocadas pela agricultura moderna, vai ingerir substâncias químicas – no caso, os carboidratos, proteínas e outras moléculas de que as frutas 100% naturais e sem agrotóxicos são feitas.
A quimiofobia, em geral, parte do pressuposto (seja consciente ou implícito) de que existiria alguma diferença essencial entre as substâncias químicas que vêm da natureza e as geradas por processos industriais – as primeiras sendo saudáveis e seguras e as outras, indignas de confiança.
Mas, como vimos no caso dos ultraprocessados, isso não é verdade: o que torna algo seguro (ou não) para consumo humano é sua composição, concentração e a forma como interage com o organismo humano, não o modo como é produzido. As drogas que há mais tempo acompanham a Humanidade e que têm mais riscos documentados e comprovados, álcool e tabaco, vêm de fontes perfeitamente naturais.
O assunto
Certa vez, uma senhora infernizou minha vida por conta de um produto que possuía dióxido de titânio em sua composição, uma substância, segundo ela, “notoriamente cancerígena” – o que não é verdade. Apesar de tentar explicar que o ingrediente era inócuo e estava em uma concentração ínfima, ela preferiu não me dar ouvidos.
O episódio me fez refletir sobre as causas da reação. Com toda a certeza, ela não acordou um dia, do nada, odiando dióxido de titânio; possivelmente ela leu/viu/ouviu informações falsas sobre a substância em algum lugar, ou alguém em quem ela confia disse algo, o que abre espaço para uma nova indagação: o que a motivou a acreditar? Será que ela não pensou em nenhum momento, que bobagem! - um excelente livro e que, curiosamente, traz algumas possíveis respostas para o questionamento que levanto.
Como o livro foi publicado recentemente, não darei spoilers a respeito do capítulo que trata da questão, mas adiantarei uma informação específica e importante para a compreensão do texto que escrevo. Contudo, reforço que a obra deve ser lida na íntegra, dado que além de apresentar as hipóteses de uma maneira muito mais minuciosa do que a que farei agora, escancara um ponto importantíssimo de como lidamos com novas informações.
Quando confrontados com ideias, fatos, conceitos e opiniões novas, tendemos a verificar – inconscientemente – se elas se encaixam em nossa visão de mundo. Se sim, incorporamos ao nosso repertório e temos a falsa sensação de que estamos no caminho certo. Caso contrariem nosso entendimento, existe uma forte tendência de descartá-los, sem levar em consideração a evidência apresentada – aqui vale à máxima “não mexa na minha pseudociência de estimação”.
Sintetizando a passagem sobre quimiofobia:
Dentre os principais fatores que explicam a quimiofobia moderna, temos a evolução da internet e das mídias sociais, matérias sensacionalistas e, em muitos casos, enviesadas na imprensa; a ação inescrupulosa de algumas organizações ambientalistas; a evolução da química analítica, que permite a detecção de concentrações cada vez menores (e por isso mesmo, provavelmente irrelevantes) de diferentes substâncias e, por fim, citando ipsis litteris: “a tendência das indústrias de buscar acordos judiciais quando seus produtos são atacados por ativistas, em vez de defendê-los; tendência dos governos de responder de forma política, mas nem sempre científica, a alegações exageradas sobre riscos; e, finalmente, o desgaste da confiança do público nas instituições, incluindo governo, indústria e comunidade científica”.
Essa situação me recorda o artigo “Mysterious Killer Chemical” de autoria do jornalista especializado em assuntos científicos Karl Kruszelnicki, para o blog ABC Science. Para os que nunca o leram, trago uma versão traduzida e resumida:
“A substância monóxido de di-hidrogênio, também conhecida como DHMO, apresenta dados acachapantes; até o momento, ela foi encontrada em 95% de todos os cânceres fatais de colo do útero e em cerca de 85% de todos os cânceres coletados de pacientes terminais.
“Apesar disso, continua sendo utilizada como refrigerante e solvente industrial; na manufatura de armas químicas e biológicas; surpreendentemente, por atletas de elite em esportes e provas de resistência. Contudo, os atletas descobrem que a abstinência de DHMO pode ser difícil e, às vezes, fatal. Na área da medicina, essa substância está envolvida com doenças que provocam sudorese, vômito e diarreia.
“Um dos motivos do DHMO ser tão perigoso é sua habilidade camaleônica, para não, somente, se espalhar no ambiente, mas de alterar seu estado. Quando em estado sólido, pode causar queimaduras intensas. Na forma gasosa, é responsável por matar centenas de pessoas todos os anos e, quando em estado líquido, ocasiona a morte de milhares que o aspiram em pequenas quantidades.
“Em março de 2004, uma pequena cidade de Aliso Viejo no Orange County na Califórnia colocou na agenda oficial do conselho uma moção para banir recipientes de isopor, a perigosa substância DHMO era usada em sua fabricação.
“Felizmente para a reputação da cidade, a moção foi negada antes de ser votada.
“Por que felizmente?
“DHMO, monóxido de di-hidrogênio, também conhecido como ácido hídrico, é o nome atribuído para a água pura.
“E aqui está o ponto em relação a informações erradas ou desinformações. Pode-se fornecer informações totalmente precisas (mas de forma emocionalmente tendenciosa e sensacionalista) a respeito da água para as pessoas. E quando depois se realiza uma pesquisa na população, aproximadamente três quartos vão mostrar-se dispostos a assinar uma petição com o intuito de proibir a substância”.
Infelizmente, não avançamos tanto quanto gostaríamos em relação ao letramento científico, o que explica, em parte, o porquê de algumas pessoas ficarem extasiadas ao descobrir que alguns desodorantes contêm parabenos (um tipo de conservante) em suas composições, levando-as a propagar um discurso alarmista e pseudocientífico de que “fazem mal à saúde, desregulam os hormônios e favorecem o desenvolvimento de câncer”.
Ironicamente, a memória de tais indivíduos – e de alguns sites de “saúde” – é seletiva, relembrando os tais supostos riscos, mas esquecendo outra informação igualmente importante, a concentração utilizada – e, em muitos casos, a função da substância. Claro, existem microrganismos e substâncias que, em dosagens ínfimas, causam efeitos catastróficos, contudo, o cenário contrário também ocorre: é, por exemplo, necessário um nível de consumo anormal e irreal de glutamato monossódico, um ingrediente culinário sobre o qual correm diversos boatos malucos, para haver alguma alteração deletéria.
Quimiofobia e seus impactos
É ótimo ver que as pessoas estão mais preocupadas em ler os rótulos de alimentos e outros produtos. Contudo, o aumento de consciência do consumidor tem uma contrapartida amarga. A autonomia pode ocasionar em uma falsa impressão de que tudo o que não se conhece é automaticamente ruim.
Isso fica evidente no comentário “Chemophobia in Europe and reasons for biased risk perceptions”, de 2019, escrito pelos pesquisadores SIEGRIST, M. e BEARTH, A. Os autores usaram um questionário online em oito países europeus (Áustria, França, Alemanha, Itália, Polônia, Suécia, Suíça, Reino Unido), totalizando 5.631 voluntários.
Para verificar o conhecimento em química dos participantes, elaboraram duas pesquisas. A primeira contou com três perguntas para avaliar a presença e o grau de quimiofobia. Como resultado, observou-se que 40% dos entrevistados responderam que “fazem tudo o quanto é possível para evitar o contato com substâncias químicas no dia a dia” e 39% “gostariam de viver em um mundo onde as substâncias químicas não existissem” – o que é uma sandice completa (observação minha, não dos autores).
A segunda pesquisa consistiu em duas questões destinadas a medir o conhecimento de química dos consumidores. Observou-se que, quando confrontados com a pergunta “A estrutura química do sal (NaCl) produzido sinteticamente é exatamente igual ao sal encontrado naturalmente no mar”, 50% dos voluntários não souberam responder e 32% responderam de maneira incorreta. Além disso, quando indagados se “estar exposto a alguma substância química tóxica é sempre perigoso, independente do grau de exposição”, 15% não souberam responder e 76% responderam incorretamente.
Como uma possível explicação, os pesquisadores destacam que as pessoas dependem de dois sistemas cognitivos para a tomada de decisões: o sistema analítico e o experiencial. Enquanto o primeiro opera de maneira lenta e requer o processamento das informações elaboradas, o segundo permite que as pessoas tomem decisões rapidamente.
Toxicologistas, em sua maioria, utilizam o sistema analítico para realizar avaliações de risco. Entretanto, o público não especializado depende de heurísticas (atalhos mentais) que, geralmente, produzem respostas boas/aceitáveis para questionamentos do dia a dia – grifo meu no "geralmente".
Ao avaliar substâncias químicas, as pessoas geralmente recorrem às heurísticas do “natural é melhor”, “contágio” (se uma coisa “ruim” entra em contato com outra “pura”, não importa o quanto o contato seja breve, a “pura” se torna imediatamente “ruim”) e da “confiança” (confiamos em quem é próximo de nós em termos pessoais e ideológicos, ou com quem nos identificamos), o que leva a decisões enviesadas e desconectadas da realidade. A falta de conhecimento e a dependência de atalhos mentais podem explicar o desconforto e até mesmo o medo que o público sente em relação às substâncias químicas sintéticas presentes no ambiente, fenômeno rotulado como “quimiofobia”.
Os autores notam que o termo “natural” evoca emoções positivas na maioria das pessoas em países ocidentais. Como resultado, os consumidores frequentemente recorrem à heurística do “natural é melhor”, o que leva à preferência por alimentos naturais e uma percepção negativa das substâncias químicas sintéticas, em comparação com aquelas de origem natural. Essa mentalidade também afeta a percepção de risco de produtos de limpeza rotulados como “eco”, já que muitas pessoas presumem que são muito mais seguros do que suas contrapartes convencionais, sem verificar a composição de cada um.
Além disso, as pessoas constantemente baseiam-se na ideia de contaminação (ou contágio) ao avaliar as propriedades de uma determinada substância, ignorando a quantidade presente e as relações entre dose e resposta, o que se enquadra na heurística do contágio.
Os autores reforçam que caso a pessoa tenha conhecimento limitado sobre riscos, ela pode acabar dependendo da heurística da confiança, um tipo de atalho mental que implica confiar em comunicadores e partes interessadas para determinar o risco real de algo.
A confiança – ou seja, o ato de confiar – muitas vezes se baseia no julgamento de semelhança nas intenções e nos valores. Em outras palavras, a confiança em uma pessoa pode ser determinada pela identificação com ela, em vez de critérios técnicos ou de competência.
Tendo isso em mente, a confiança ou desconfiança na indústria química, em organizações não governamentais com foco no meio ambiente e, até mesmo, em celebridades pode influenciar na percepção das pessoas.
Ademais, os questionários aplicados revelaram que as três heurísticas descritas anteriormente moldaram a percepção das pessoas sobre as substâncias químicas.
Indivíduos cientes da relação entre dose e resposta e que entendem que o caráter, sintético ou natural, de uma substância é irrelevante para seu perfil de risco, tendem a ser menos quimiofóbicos do que aqueles que não têm esse conhecimento. Igualmente importante, consumidores com conhecimentos básicos de toxicologia não dependem das heurísticas do “natural é melhor” e do contágio, e os que confiam em suas agências nacionais para controlar os riscos relacionados às substâncias químicas também tendem a exibir menos traços de quimiofobia em comparação com aqueles que desconfiam das autoridades.
Os autores apontam que pessoas extremamente preocupadas com a saúde têm uma probabilidade maior de sofrer com quimiofobia, quando comparadas a quem não apresenta tantas preocupações. Além disso, as mulheres e pessoas mais velhas aparentam ter maiores níveis de quimiofobia, quando comparadas a homens e indivíduos mais jovens.
Os pesquisadores concluem que não pretendem postular um modelo ingênuo e incompleto que coloca a falta de conhecimento como a única razão para a percepção negativa das substâncias químicas sintéticas. No entanto, há fortes evidências que sugerem que um maior conhecimento sobre o assunto desempenha um papel importante na redução da quimiofobia.
Os resultados sugerem ainda que melhorar o letramento científico em todos os níveis educacionais e lançar campanhas informativas voltadas para o público são objetivos importantes no combate à quimiofobia. Ressalta-se que a disseminação da quimiofobia não resulta apenas em políticas públicas inadequadas, mas também no congelamento de inovações.
Apesar de concordar com a conclusão dos autores, admito que não conseguiria expressá-la de uma forma tão polida. Por mais que tentem dourar a pílula, há uma conclusão geral que me parece nítida: quanto maior a ignorância de alguém em um determinado assunto, maior será a aversão a respeito dele, uma vez que os fatos da questão contrariem sua visão de mundo. Entretanto, isso também suscita o debate a respeito da melhor maneira de convencer um “adversário” que sua posição é ilógica – acredito que chamá-lo de ignorante só o deixa mais agarrado a suas próprias convicções.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
PASTERNAK, N e ORSI, C. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. 1. ed. Contexto. 2023.
KRUSZELNICK, K. Mysterious killer chemical. 2006. ABC Science. Disponível em: https://www.abc.net.au/science/articles/2006/05/17/1631494.htm.
SIEGRIST, M. e BEARTH, A. Chemophobia in Europe and reasons for biased risk perceptions. Nature Chemistry volume 11, pages1071–1072 (2019). Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41557-019-0377-8.