A relação entre médico e paciente se estabeleceu “como o casamento de dois desejos: o desejo de ajudar do médico e o desejo de ser ajudado do paciente”. Nesse contexto, Archie Cochrane argumentou que não é surpreendente que o advento dos serviços nacionais de saúde, isto é, a redução das barreiras para a obtenção de serviços médicos, tenha levado a um enorme aumento nas prescrições de medicamentos e exames.
“O paciente esperava que o médico fizesse algo para ajudá-lo: quanto mais, melhor. O médico queria ajudar e normalmente conseguia pensar em algum medicamento ou teste diagnóstico novo que ainda não havia experimentado”.
Cochrane notou também que havia uma crença exagerada nos médicos e que essa crença provavelmente se estabeleceu devido à habilidade do médico em reduzir a dor, ao efeito placebo genérico, à tendência de várias doenças desaparecerem espontaneamente ou melhorarem com o tempo e ao status social e nível de educação mais elevados dos médicos1.
Os insights de Cochrane auxiliam na compreensão de por que a tendência natural na área da saúde seria um crescimento descontrolado e, eventualmente, insustentável dos serviços de saúde, com consequências, no fim, negativas. Se permitirmos que essa tendência siga seu curso natural, o resultado será uma sociedade na qual todas as pessoas serão transformadas em pacientes perpétuos sob constante vigilância, monitoramento, testagem, profilaxia e intervenção, independentemente de suas reais necessidades e dos benefícios para a saúde - ou seja, um excesso de medicina.
O advento do ensaio controlado randomizado para avaliar a efetividade de tratamentos na área da saúde1, a introdução e expansão dos métodos científicos empíricos no ensino sobre etiologia, diagnóstico, tratamento e prognóstico na formação dos profissionais da saúde2, na produção do conhecimento (https://www.cochranelibrary.com/) e na administração e gerenciamento dos serviços de saúde3 foram maneiras de tentar controlar o excesso de medicina, introduzindo mais ciência na medicina.
A principal consequência da escassez de embasamento científico na medicina é, provavelmente, o excesso de medicina4. O sobrediagnóstico e o tratamento desnecessário desviam recursos das pessoas que realmente necessitam de atenção à saúde, contribuindo assim para o subdiagnóstico e o subtratamento. Portanto, outra ramificação da falta de rigor científico na medicina é o direcionamento inadequado de recursos nos serviços de saúde, muitas vezes investindo mais em tratamentos ineficazes ou de eficácia limitada, e menos em abordagens mais eficazes. Os serviços de saúde estão sobrecarregados com diagnósticos e tratamentos desnecessários e ineficazes da medicina convencional5-7, mas também por práticas ainda menos embasadas em evidências científicas8.
Excesso de medicina
O excesso de medicina: falsos positivos, sobrediagnóstico e sobretratamento6. À medida que as pessoas se submetem a exames e testes diagnósticos com maior frequência, aumenta o risco de receberem diagnósticos falso-positivos. Isso ocorre quando o resultado do exame ou teste indica positivo, quando, na realidade, a doença não está presente - um alarme falso. Ou seja, trata-se de um erro do exame ou teste.
Quando ocorre um resultado falso-positivo, a presença da doença é logo descartada em exames subsequentes confirmatórios. Por outro lado, o sobrediagnóstico possui implicações mais graves. Ele acontece quando o resultado do exame ou teste diagnóstico é verdadeiro-positivo. Ou seja, o resultado positivo é confirmado por um exame subsequente (como um resultado positivo no PSA e em um exame clínico da próstata, seguido de confirmação por biópsia), mas a “doença” identificada nunca causaria problemas para o indivíduo, mesmo sem tratamento. Isso ocorre quando a doença identificada não progride, ou progride tão lentamente que não representaria nenhum risco à saúde ao longo da vida da pessoa.
O sobrediagnóstico pode se limitar a um caso em que não resulta em sobretratamento. Isso acontece quando o profissional de saúde e o paciente optam por não tratar a doença identificada, mantendo apenas um estado de alerta constante quanto a algum sinal futuro de progressão. No entanto, mais frequentemente, tanto o profissional de saúde quanto o paciente optam pelo tratamento, uma vez que geralmente não é possível prever se a doença identificada terá remissão, progressão lenta ou rápida. Nesse cenário, o sobrediagnóstico acaba levando ao sobretratamento.
Benefícios e danos
Para o paciente que se beneficia de um tratamento efetivo, os danos e transtornos causados pelos efeitos adversos do tratamento são, em certa medida, aceitáveis e toleráveis, uma vez que o benefício do tratamento pode ter um valor significativo. No entanto, quando o tratamento não oferece nenhum benefício, os danos e efeitos adversos tornam-se os únicos resultados do tratamento para o paciente. Isso é o que acontece quando o paciente é submetido ao sobretratamento.
Quando o tratamento não oferece benefício algum ao paciente?
O tratamento pode não proporcionar benefício por dois motivos: primeiro, porque a doença não teria progredido, ou teria progredido lentamente mesmo sem tratamento (configurando-se como tratamento desnecessário); segundo, porque o tratamento não é eficaz (ou seja, é necessário, mas pode não funcionar).
Qual é a proporção dos tratamentos médicos apoiados por sólida evidência científica?
Existem tratamentos que proporcionam benefícios substanciais para praticamente todos os pacientes submetidos a eles. A eficácia e a magnitude desses benefícios são evidentes. Portanto, existe consenso entre cientistas e profissionais de saúde sobre a comprovação científica de sua eficácia. Entre esses tratamentos, incluem-se a insulina para diabetes, os antibióticos para tuberculose e os anestésicos para cirurgias. No entanto, lamentavelmente, esses tratamentos representam uma minoria pequena no âmbito dos tratamentos médicos. Grande parte dos tratamentos médicos carece de uma base científica sólida e, em muitos casos, são ineficazes, prejudiciais ou desnecessários.
Quando o movimento da Medicina Baseada em Evidência estava começando, no início dos anos 1990, Richard Smith, o editor-chefe do British Medical Journal, publicou um editorial intitulado “Onde está a sabedoria...? A escassez de evidência médica”, no qual relatou que apenas cerca de 15% das intervenções médicas eram respaldadas por evidências científicas sólidas9. Em uma estimativa recente, cerca de 30% dos tratamentos médicos foram considerados algum tipo de desperdício ou de baixo valor, enquanto outros 10% foram considerados prejudiciais à saúde10. As estimativas mais atualizadas sugerem que entre 40% e 60% dos tratamentos médicos possuem evidências científicas aceitáveis de eficácia. Ou seja, aproximadamente metade dos tratamentos não tem respaldo em evidência científica sólida10-12.
A maioria dos pacientes submetidos a tratamentos, mesmo com evidência científica sólida de eficácia/efetividade, não obtém benefício algum.
Além dos vários tratamentos que não têm eficácia comprovada ou proporcionam benefícios mínimos em relação ao placebo, muitos tratamentos (talvez a maioria) que têm eficácia comprovada beneficiam apenas uma pequena parcela dos pacientes tratados. Isso ocorre porque a maioria dos pacientes melhoraria mesmo sem tratamento, enquanto vários pacientes não experimentam melhora, mesmo após o tratamento. Em outras palavras, a probabilidade de um paciente tratado se beneficiar do tratamento costuma ser relativamente baixa. Na maioria dos casos, mesmo com sólida evidência de eficácia, os pacientes não obtêm benefícios do tratamento.
Geralmente, o número de pacientes que são tratados, mas não obtêm benefícios, supera em muito o número de pacientes que são tratados e se beneficiam do tratamento.
Portanto, muitas vezes é necessário tratar vários pacientes para que apenas um deles obtenha benefício do tratamento, e o profissional de saúde não tem como prever antecipadamente qual paciente será beneficiado (https://thennt.com/home-nnt/).
Um exemplo pode ser observado na dor lombar. Ilustrando com números hipotéticos (mas realistas), considere o seguinte cenário: entre 300 pessoas com dor lombar, 100 não receberam nenhum tratamento e, após 3 dias, 70% delas ficaram sem dor; outras 100 receberam uma intervenção placebo e, após 3 dias, 80% ficaram sem dor; as restantes 100 pessoas tomaram um relaxante muscular e, após 3 dias, 90% ficaram sem dor.
Assim, podemos notar que o placebo teve um efeito, pois mais pessoas melhoraram em comparação com aquelas que não receberam tratamento. O relaxante muscular também funcionou, superando o efeito do placebo, com 90% de melhora em vez de 80%. Entretanto, a diferença no benefício foi relativamente pequena. Isso ocorre porque 70% das pessoas melhoraram não devido ao relaxante muscular ou ao placebo, mas simplesmente porque teriam melhorado mesmo sem esses tratamentos.
Na verdade, a grande maioria dos pacientes tratados com relaxante muscular ou placebo não se beneficiou do tratamento, pois teria melhorado mesmo sem essas intervenções (70%). Além disso, 10% dos pacientes tratados com relaxante muscular não obtiveram melhora. Esse fato é evidenciado pelo mesmo percentual de pacientes (70%) que melhorou no grupo que não recebeu nenhum tratamento. Nesse exemplo, mesmo recebendo um tratamento com evidência de eficácia, apenas um em cada cinco pacientes tratados com relaxante muscular obteve benefício do tratamento (esse 1 em cada 5 vem dos 20% a mais de pacientes que melhoram quando usaram relaxante muscular em comparação com os pacientes que não receberam tratamento algum).
Nessa situação, é provável que os médicos recebam informações dos representantes da indústria farmacêutica de que o relaxante muscular possui uma eficácia de 67%. Essa estimativa de eficácia se baseia na diferença relativa na dor [1 - (10/30) = 0,67 = 67%] entre o grupo que recebeu o relaxante muscular (10%) e o grupo que não recebeu tratamento (30%). No entanto, é comum que os médicos interpretem erroneamente essa informação, entendendo que 67% dos pacientes se beneficiaram do relaxante muscular, quando na verdade apenas 10% se beneficiaram em comparação com o placebo e 20% (ou seja, 1 em cada 5) em comparação com nenhum tratamento.
Essa maneira de comunicar a eficácia dos tratamentos é comum, e a maioria dos profissionais de saúde, provavelmente, não a interpreta de maneira correta13-15. A comunicação deficiente e a interpretação equivocada da eficácia dos tratamentos e dos resultados de testes diagnósticos representam, possivelmente, mais um aspecto relevante da escassez de base científica na prática médica, contribuindo para o excesso de procedimentos médicos.
A importância da evidência científica
Um serviço de saúde mais fundamentado em evidências não direciona recursos para diagnósticos e tratamentos desnecessários, nem para tratamentos ineficazes ou com eficácia limitada, e prioriza intervenções que se mostram altamente benéficas para a saúde.
Além da eficácia dos tratamentos oferecidos, existem outros aspectos cruciais nos serviços de saúde que merecem consideração. A eficiência com que os tratamentos são administrados é um desses aspectos. Outro elemento essencial é o cuidado. O cuidado representa o papel do profissional de saúde ao acolher, confortar e tranquilizar o paciente, independentemente da presença de evidências científicas.
Um serviço de saúde mais fundamentado em evidências é igualmente essencial para realocar recursos de tratamentos com baixa eficácia em prol da melhoria do cuidado aos pacientes. Entre esses pacientes, encontram-se aqueles com doenças incuráveis, idosos frágeis, indivíduos com transtornos mentais, e outros. Priorizar a evidência científica como critério principal para a tomada de decisão em relação aos tratamentos a serem adotados nos serviços de saúde parece ser a melhor maneira de assegurar o cuidado dos pacientes.
“Eu acredito que a cura seja rara enquanto a necessidade de cuidado é muito comum. A busca incessante pela cura pode limitar a oferta de cuidados”1.
A busca incessante pela cura a qualquer custo engloba todos os testes diagnósticos e tratamentos que um profissional de saúde possa imaginar, independentemente da presença de evidências científicas. Portanto, o papel restritivo da evidência científica na incorporação e utilização de tratamentos pelos serviços de saúde é crucial para realocar recursos que são (ou seriam) utilizados na busca por “curas” sem embasamento científico em prol do cuidado aos pacientes, muitos dos quais enfrentam barreiras de acesso aos serviços de saúde.
Os sistemas de saúde têm enfrentado crises decorrentes do excesso de demanda, do aumento da prevalência de doenças crônicas e dos custos crescentes que ameaçam o seu funcionamento. Parte do aumento na prevalência de “doença” é devido ao sobrediagnóstico, sobretratamento e aos tratamentos de baixo valor. Essas questões têm que ser resolvidas para que sejamos capazes de alcançar um sistema de saúde sustentável16.
Paulo Nadanovsky é professor titular do Departamento de Epidemiologia, Instituto de Medicina Social (UERJ), pesquisador associado do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde (ENSP/FIOCRUZ) e academic visitor (2022-2023), Kellogg College, Universidade de Oxford. Contato X-Twitter: @Nadanovsky
REFERÊNCIAS
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4. BMJ. Too Much Medicine: BMA; 2016 [Available from: https://www.bmj.com/too-much-medicine accessed 01/08/2023 2023.
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6. Brodersen J, Schwartz LM, Heneghan C, et al. Overdiagnosis: what it is and what it isn't. BMJ Evid Based Med2018;23(1):1-3. doi: 10.1136/ebmed-2017-110886 [published Online First: 2018/01/26]
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8. Pasternak N, Orsi C. Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Editora Contexto 2023.
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10. Braithwaite J, Glasziou P, Westbrook J. The three numbers you need to know about healthcare: the 60-30-10 Challenge. BMC Med 2020;18(1):102. doi: 10.1186/s12916-020-01563-4 [published Online First: 20200504]
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