Terapias alternativas: qual o dano? A evidência recente

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1 set 2023
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alquimista

 

Dois estudos conduzidos recentemente na França e publicados neste ano mostram uma ligação significativa entre interesse ou uso de sistemas de medicina alternativa (o que no Brasil se convencionou chamar de de PICs, Práticas Integrativas e Complementares) e hesitação ou rejeição de vacinas. Esses resultados vêm se somar a um corpo de outros estudos, conduzidos neste século, que detectam uma forte tendência de o interesse em PICs caminhar de mãos dadas com a recusa ou baixa adesão a tratamentos reais, que têm verdadeiro potencial de preservar a saúde e salvar vidas.

O mais completo destes estudos recentes, envolvendo uma amostra de mais de 3 mil adultos representativa da população francesa, verificou que, nos 23% que demonstram maior grau de afinidade por PICs, 76% concordam que “os medicamentos alternativos/naturais oferecem melhores soluções para problemas de saúde do que a medicina convencional”; 92% que “alimentação saudável é mais eficaz do que medicamentos para ajudar o corpo a combater doenças”; e 85% que “existem produtos naturais melhores do que vacinas para estimular o sistema imune”. Em comparação, entre os 17% da população que rejeitam as PICs de modo mais categórico, a concordância com essas afirmações é de 0%, 36% e 2%, respectivamente.

Quanto à hesitação vacinal, no grupo pró-PICs são 76% os que rejeitam pelo menos uma das vacinas do calendário oficial francês, ante 41% dos mais críticos das práticas alternativas. Em termos de rejeição à mera ideia de vacinação, as proporções são 36% e 6%, respectivamente. Os autores do estudo apontam que existem outros fatores que também aparecem fortemente associados à hesitação vacinal do que o apego a práticas alternativas, como desconfiança das autoridades sanitárias (35% rejeitam qualquer tipo de vacinação) e baixa renda (41% das pessoas com renda mensal inferior a mil euros rejeitam vacinas em geral).

A outra pesquisa conduzida recentemente na França comparou a intensidade das buscas feitas no Google sobre medicina alternativa por moradores de cada um dos 96 departamentos do país às taxas de vacinação infantil nesses departamentos e, com exceção de apenas um deles – Creuse –, encontrou forte associação entre alto volume de pesquisas sobre PICs e baixa adesão ao calendário de vacinação das crianças.

Os autores consideraram a intensidade das buscas, que consolidaram num Índice de Medicina Alternativa particular para cada departamento, como dado representante do interesse das populações por modalidades alternativas. Análises estatísticas indicaram que “este Índice é um fator explicativo significativo para a variação nas taxas de cobertura vacinal, superando em importância o efeito de outras fatores sociodemográficos e territoriais relevantes”.

Estes resultados sobre vacinas se acumulam a outras evidências de que o apego a modalidades alternativas causa uma interferência deletéria em questões de saúde. Anos atrás, em 2018, o periódico JAMA Oncology havia publicado artigo, descrevendo estudo realizado nos Estados Unidos, que mostra que a adesão a terapias alternativas entre pacientes de câncer aumenta o risco de vida, provavelmente por estimular a recusa de terapias comprovadas cientificamente. Trabalho realizado na mesma época na Tailândia descobriu que o uso de terapias alternativas por pacientes de câncer estava associado a atrasos no início do tratamento médico real. E pesquisa realizada na Paraíba, publicada em 2016, encontrou associação entre o uso de produtos baseados em ervas e plantas, em geral de produção artesanal, e baixa adesão à medicação receitada por médicos na população idosa.

Em conjunto, esses resultados indicam fortemente que a ideia de que a classificação “integrativa e complementar” dada às terapias alternativas – sugerindo que seu uso não interfere e nem atrapalha práticas baseadas em evidências, mas apenas as “complementa”, “integrando-se” pacificamente a elas – não passa de fantasia (ou golpe de marketing).

Na França, 56% da população concorda que medicina alternativa deve ser usada apenas em caráter “complementar”. É uma maioria numérica, porque supera os 50%, mas o fato é que uma parcela significativa dos franceses se diz indiferente ou incerta (33%) e uma minoria vocal discorda frontalmente (9%). Trata-se de um fato que tem, ou deveria ter, repercussões sérias na formulação de políticas públicas.

Como escrevem os autores do artigo sobre interesse em PICs e baixas taxas de vacinação nos departamentos franceses, esse achado “levanta a questão da atitude que as autoridades deveriam adotar em direção à medicina alternativa (...) Se os próprios tratamentos PIC forem na maioria das vezes (mas nem sempre) considerados inofensivos, o sistema de pensamento a que induzem pode ter efeitos colaterais graves, quando os pacientes estão convencidos de que esta medicina paralela pode permitir-lhes evitar tratamentos que não se enquadram na sua visão de mundo”.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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