Anúncio de fusão nuclear segue sem confirmação

Artigo
4 ago 2023
fusão nuclear

 

Em 13 de dezembro de 2022, a imensa maioria dos veículos de comunicação repercutiu uma coletiva de imprensa, convocada por pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, dos Estados Unidos. Ali, pesquisadores anunciaram que, pela primeira vez, havia sido realizado um experimento de fusão nuclear com saldo energético positivo.

Diferentemente da maioria dos textos jornalísticos que alardearam o anúncio – “Experimento é um grande passo em uma busca para liberar uma fonte infinita de energia limpa” (CNN Brasil); “Fusão nuclear: como cientistas alcançaram 'Santo Graal' da energia limpa” (BBC News Brasil); incluindo aqui as maiores revistas científicas do mundo, “Com explosão histórica, um avanço de fusão há muito procurado” (Science) e “Laboratório de fusão nuclear atinge 'ignição': o que isso significa?” (Nature) – preferi questionar o feito, em dois textos: um para a Revista Questão de Ciência e outro para o Estadão.

Retorno agora ao assunto porque, depois de mais de seis meses do anúncio, ainda não há nenhum artigo técnico sobre o experimento. No fim do ano passado, troquei emails com Annie Kritcher, engenheira nuclear responsável pelo projeto de fusão e escolhida como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Nessa correspondência, ela dizia que os resultados anunciados não haviam sido formalmente publicados ainda – foram divulgados em uma conferência – e me dava uma lista de artigos não relacionados diretamente ao feito.

Há alguns dias, escrevi novamente para Kritcher, questionando por que ainda não haviam publicado um artigo e a razão de terem se dirigido primeiro à imprensa antes de validar os seus resultados em uma publicação revisada pelos pares. Em resposta à minha mensagem, Kritcher diz:

“O anúncio foi feito antes de uma publicação por causa do amplo conhecimento do resultado após o experimento. Nosso laboratório desejava abordar o resultado de forma oportuna. Estamos trabalhando em um conjunto de artigos técnicos sobre o experimento de 5 de dezembro de 2022 e estamos nos preparando para submetê-los nos próximos meses à PRL [revista Physical Review Letters]. O artigo anexado é um documento de projeto técnico sobre o resultado anterior N210808. Estamos muito interessados em publicar, mas o processo científico de publicação pode levar muitos meses”.

Tenho algumas considerações sobre essa resposta. Não concordo que havia um “amplo conhecimento do resultado” porque sequer havia resultado. Repetindo Carl Sagan, que citei na época do anúncio, alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Dizer à imprensa que um experimento foi bem-sucedido é muito diferente de convencer os demais especialistas no assunto e publicar um artigo detalhado descrevendo o processo. Enquanto não existe um artigo que passou pelo escrutínio dos pares, não existe resultado.

Normalmente, quando se apresenta o resultado de uma pesquisa científica em uma conferência é porque ele já está publicado em algum lugar (pelo menos, na física é assim). Ainda que não esteja publicado em um periódico, o resultado consta pelo menos em um preprint (publicação preliminar), que já foi submetido para um veículo especializado. Portanto, dizer que, mais de seis meses depois do anúncio, o grupo do Lawrence Livermore se prepara para submeter à PRL é estranho. Lembro novamente o anúncio para a imprensa da detecção das ondas gravitacionais (assunto que deu o Prêmio Nobel de 2017 a Rainer Weiss, Barry C. Barish e Kip Thorn, da colaboração LIGO/VIRGO), feito em 11 de fevereiro de 2016. Nesta data, já havia um artigo técnico na PRL.

Não se pretende aqui, de modo algum, questionar a reputação ou a boa-fé dos pesquisadores envolvidos no anúncio, mas o ônus da prova é sempre de quem alega que um fenômeno foi produzido. Mostrar que se obteve fusão nuclear, nos termos anunciados, demanda uma verificação cuidadosa pelos pares e a publicação de um artigo. Afirmar, portanto, que a divulgação do resultado foi feita de “forma oportuna” em uma coletiva de imprensa, coalhada de declarações de políticos, talvez sugira que a “oportunidade” em vista não era exatamente científica.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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