No artigo Tarja magnética não transmite “frequência da saúde”, escrevi sobre uma picaretagem denominada bioressonância. A prática atribui frequências características a vírus, bactérias e hormônios, que supostamente poderiam ser usadas para curar doenças e também para facilitar o emagrecimento das pessoas. Essas frequências hipotéticas ficam armazenadas em um cartão magnético ou em uma geringonça, que transmitem a panaceia eletrônica pelo simples contato de uma tarja magnética ou de eletrodos com a pele.
Os procedimentos acima não encontram lastro em nenhum estudo clínico publicado em uma revista científica de boa qualidade, e não têm nenhum embasamento teórico, ou seja, não passam de fantasia. Porém, será que o mesmo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que emite uma nota advertindo a população sobre a “ausência científica comprovada e riscos à saúde do tratamento”, se manifesta da mesma forma em relação à homeopatia? A pergunta é retórica porque, obviamente, a resposta é não. Mas o que os homeopatas têm a ver com a bioressonância?
Em 2018, William Edwin Gray III, médico homeopata, sofreu uma ação da comunidade médica do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, acusado de vender “eRemedies”, arquivos de áudio MP3 que prometiam curar ansiedade, dor nas costas, cólera, tosse, gripe, malária, dor de dente e até ebola. De acordo com Gray, três casos de ebola tinham sido curados por meio de telefones celulares que tocaram o eRemedie apropriado, várias vezes, no intervalo de uma hora. Cada arquivo de áudio, vendido por US$ 5, era criado através da extração de sinais energéticos de remédios homeopáticos, utilizando uma bobina conectada a um amplificador e a um conversor de sinais.
O site que fazia a venda dos áudios em 2018 está atualmente desativado, mas ainda é possível encontrar uma página onde as faixas são comercializadas. Várias bizarrices podem ser encontradas na página de Bill Gray no Facebook e o médico mantém uma página sobre homeopatia, onde relata que perdeu a licença médica em 30 de junho de 2018, mas que isso não o impede de prescrever poções (ou áudios) homeopáticas.
É claro que Bill Gray poderia ser somente um caso isolado de profissional ruim, coisa que pode ocorrer em qualquer área. Acontece, porém, que o discurso aloprado da homeopatia, envolvendo energias, frequências – não os conceitos corretos, utilizados na física, mas uma série de acepções indevidas, com verniz esotérico –, não é exceção, mas regra.
É curioso notar que pessoas que têm assento em entidades de classe – o Cremesp é apenas uma delas – não se sintam constrangidas a emitir uma nota sobre a uma prática, classificada por eles mesmos como “exemplo de charlatanismo”, e endossem a homeopatia, que, da perspectiva da ciência talvez seja ainda mais absurda do que a própria bioressonância. É possível, por exemplo, encontrar poções homeopáticas feitas a partir de cocô de cachorro, pólvora, muro de Berlim e preservativos.
No site do Senado Federal encontram-se algumas dicas de cuidados com o medicamento homeopático, dentre elas: “medicamentos devem ficar longe de qualquer aparelho eletrodoméstico ou outros que emitam radiação”. Dito de maneira genérica, qualquer objeto com temperatura acima do zero absoluto (-273°C) emite alguma radiação. Alguns sites até vendem recipientes próprios para transporte de “medicamentos homeopáticos, florais, fitoterápicos, quânticos, antroposóficos e demais vibracionais”.
É importante dizer que todo o discurso de medicina vibracional, “energias sutis” (e indetectáveis pela ciência) e vitalismo não passa de embromação que, em certos momentos, pode soar plausível para o cidadão incauto. Normalmente, o que essas práticas fazem é açambarcar termos bem definidos da física na tentativa de embalar o esoterismo como se fosse ciência.
A homeopatia, em particular, prática reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como especialidade médica – no papel, que como se sabe aceita qualquer coisa, tão válida quanto a cardiologia ou a ginecologia –, não passa de um terraplanismo institucionalizado: puro esoterismo presente no SUS e ensinado nas universidades. Já passou da hora das instituições brasileiras colocarem as coisas nos seus devidos lugares e pararem de pagar crendices com o dinheiro público.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência