Algumas características comuns se destacam no comportamento das pessoas envolvidas em três eventos políticos relevantes no Brasil nos últimos meses. No primeiro deles, o bloqueio de rodovias em todo o país após o resultado das eleições presidenciais de 2022, os ditos manifestantes acessavam os celulares com frequência, trocando e recebendo informações em grupos e redes sociais que aparentemente os mantinham engajados e motivados. Outra característica desse coletivo era um tipo de certeza moral sobre seus atos, que trazia uma expectativa cheia de convicção acerca do futuro político do país. Essa certeza parecia ter motivações profundas, uma vez que a atitude nos bloqueios parecia não dar espaço para dúvidas e reflexões sobre os atos em curso.
Um segundo evento que protestava contra o resultado das eleições envolvia o acampamento de pessoas em frente à quartéis e sedes militares, situação que também se alastrava por todo o país. Mais uma vez, os celulares tinham um papel central, contribuindo para a partilha e distribuição dos materiais que permitiam o engajamento contínuo, também através de redes sociais e grupos de aplicativos de trocas de mensagens. A forte certeza moral também estava lá, na defesa de uma causa que evitaria que o país tomasse rumos indesejados. Numa das várias gravações disponíveis, podemos ver e ouvir uma senhora que chorava copiosamente em frente a um quartel, emocionada por deixar um “país melhor para os seus netos”, já que não poderia “deixar dinheiro nem bens”.
Por fim, o terceiro evento transcorreu em 8 de janeiro de 2023, quando golpistas invadiram a sede do Supremo Tribunal Federal, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional em Brasília, deixando um rastro de destruição e brutalidade. Mais uma vez, os telefones celulares ocupavam um lugar central na ação. Baderneiros faziam vídeos uns dos outros e mandavam recados para as autoridades brasileiras – situação em que os envolvidos acabaram produzindo provas contra si mesmos. Mais uma vez a certeza moral parecia atuar como estimulante para os golpistas. Naquele momento, eram “cidadãs e cidadãos patriotas e envolvidos num histórico movimento político de defesa da honestidade e da liberdade”.
Aqui podemos listar dois traços comuns nesses eventos: (i) a presença maciça de comunicação online, através das plataformas das redes sociais e grupos em aplicativos de mensagens e (ii) a forte certeza moral, sob a forma de uma poderosa autoimagem de heroísmo e patriotismo.
Mensurar a correlação entre esses dois traços pode ser um exercício difícil, mas é possível questionar se as duas dinâmicas mantinham algum papel no engajamento dos participantes, juntamente com a motivação para as suas ações. No caso, um conjunto de investigações recentes sobre disseminação de conteúdo “moralizado” em redes sociais e seus efeitos pode nos fazer pensar mais sobre essa correlação.
Num artigo intitulado “Moral Outrage in the Digital Age” (2017), a pesquisadora Molly Crockett alerta para a possibilidade de a expressão de indignação moral e punição de “malfeitores” via postagens em redes acabarem se tornando comportamentos muito fáceis, baratos, recompensadores – e viciantes – no ambiente online. Com isso, as redes poderiam transformar emoções coletivas que no passado tinham efeitos sociais benéficos, coibindo ou punindo atitudes antissociais, em “ferramentas para a autodestruição coletiva”.
Em outro artigo ligado ao tema, intitulado “The MAD Model of Moral Contagion” (2020), escrito em conjunto por William Brady, Molly Crockett e Jay Van Bavel, se analisa o papel da motivação, da atenção e do design na disseminação de conteúdo moralizado em ambientes virtuais. Os pesquisadores propõem o Modelo MAD para o contágio moral, que sugere que o ambiente de mídias sociais, graças a suas características de design, explora as motivações e manipula a atenção dos usuários de modo a amplificar o tribalismo e o impacto das emoções coletivas ligadas a questões morais. O nome do modelo, MAD, vem exatamente das iniciais da tríade “Motivação, Atenção e Design”.
O funcionamento do MAD envolve dois passos. No primeiro, conta com o fato de que termos que impactam emoções morais têm maior alcance na internet, e chamam mais a atenção. Num ambiente que precisa captar e manter a atenção do usuário, esse tipo de conteúdo tende a ter proeminência.
O segundo passo envolve um processo de internalização. Os usuários que buscavam os estímulos das plataformas recebiam recompensas sociais imediatas e em grande volume: adesões e aproximações sociais. Considerando que as plataformas das redes sociais – e a Internet como um todo – são fontes primárias de estímulos moralmente relevantes que as pessoas têm em seus cotidianos, não é de se estranhar que tenhamos tanta certeza moral em nossas sociedades.
E as próprias redes já não escondem seu potencial de impacto em nossas emoções morais. Num relatório publicado em 2021, os “responsáveis” pelo Facebook, uma das plataformas mais antigas, apontou que “a mecânica da nossa plataforma não é neutra”, uma vez que “evidências convincentes de que as mecânicas centrais do nosso produto, tais como viralização, recomendações e otimização do engajamento, são parte significativa do motivo para tais tipos de discurso [de ódio e desinformação] prosperarem na plataforma”. Resumindo uma série de estudos, o jornalista Max Fischer escreve em A máquina do caos: Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo: “Temos agora bilhões de bússolas morais pendendo, potencialmente, para o tribalismo e a desconfiança. Sociedades inteiras estimuladas para o conflito, a polarização e a fuga da realidade”.
As tensões sociais e políticas do Brasil e do mundo envolvem contextos diversos – sociais, econômicos, culturais, entre outros. As várias transições em que estamos inseridos, juntamente com dificuldades de manutenção das condições de vida no nosso tempo, nos deixam muitas vezes perplexos e insuflam as piores emoções. As plataformas das redes sociais têm se mostrado um meio relevante de disseminação de conteúdo e contágio moral-emocional – nem sempre pautadas por alegações verídicas –, impactando as decisões e o comportamento de muitas pessoas a partir da construção de certezas sobre o socialmente certo ou errado.
Muitas vezes, as redes nada mais fazem do que mobilizar a atenção de forma a motivar pessoas para a desordem e a violência. A mobilização das emoções mais básicas, realizada através da manipulação da atenção, pode promover comportamentos irrefletidos. E assim, em nome do “bem”, aproximar pessoas fragilizadas e estimulá-las a se converter em golpistas brutalizados.
José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais - IFMG Campus Ponte Nova
REFERÊNCIAS
BRADY, William; CROCKETT, Molly; VAN BAVEL, Jay. “The MAD model of moral contagion: The role of motivation, attention, and design in the spread of moralized content online”. Perspectives on Psychological Science, Vol. 15, n. 4, p. 978-1010, 2020.
CROCKETT, Molly. “Moral outrage in the digital age”. Nature human behaviour, Vol. 1, n. 11, pp. 769-771, 2017.
FISHER, Max. A máquina do caos: Como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Tradução Érico Assis. São Paulo: Todavia, 2023.
ISAAC, Mike, “Facebook Wrestles with the Features It Used to Define Social Networking”. The New York Times, 25/10/2021.