Uma antiga campanha publicitária no Brasil perguntava se o produto de uma determinada marca de biscoito era “fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é fresquinho?”. O aparente paradoxo ficou na cabeça de toda uma geração de consumidores, e bem pode descrever os achados de estudo recém-publicado no periódico científico Journal of Sleep Research que associou distúrbios do sono com crenças no paranormal.
Muito já se falou aqui, na Revista Questão de Ciência, da importância de diferenciar correlação de causalidade – vide aqui, aqui e aqui. Em resumo, só porque uma coisa acontece depois de outra, por exemplo, não quer dizer que a primeira provocou ou é condição para a segunda. Isso vale quer seja para quem tomou cloroquina, ivermectina, vitamina D ou qualquer outro medicamento do inútil “tratamento precoce” para a COVID-19 e depois afirmou ter se curado graças a eles, ou quem acha que o número de filmes com o ator Nicolas Cage influencia nos casos de mortes por afogamento nas piscinas dos EUA.
E é basicamente isso que o novo estudo sobre qualidade do sono e crença no paranormal faz. Isso não quer dizer, porém, que ele não traga correlações interessantes. Seus achados, tratados com a cautela e seriedade devidas, podem servir para pautar futuras pesquisas e experimentos que, de fato, possam fazer uma relação de causa e efeito. Vejamos, então, como foi realizado e as informações que traz.
O estudo teve início com levantamento lançado em 2017 pela revista BBC Science Focus, em seu site, para avaliar a prevalência e sintomas de dois distúrbios do sono relativamente comuns: a Síndrome da Cabeça Explosiva, em que as vítimas relatam alucinações de sons altos e abruptos, como explosões, mas também rugidos, sirenes, portas batendo e até gritos, quando estão quase dormindo ou prestes a acordar; e Paralisia do Sono, em que, também na transição entre sono e vigília, os indivíduos dizem não conseguir se mexer, e podem experimentar outros sintomas físicos e psicológicos como pressão no peito e dificuldade de respirar, sensação de estar sob uma presença maligna ou de intenso medo, e outras alucinações sensoriais.
A partir daí, os cientistas, reunidos por Christopher French, chefe da Unidade de Pesquisas de Psicologia Anomalística da Universidade Goldsmiths de Londres, consultaram o público sobre qualidade de sono e crença em fenômenos paranormais. No primeiro caso, eles pediram para as pessoas avaliarem sua “eficiência de sono”, isto é, a relação entre o tempo efetivamente dormindo e o passado na cama, além de latência, duração do sono e outros sintomas de insônia, que resultaram em um indicador subjetivo da qualidade de sono, expresso numa escala de 3 a 15. Já no segundo, os participantes responderam em uma escala de 1 a 5 o quanto acreditavam (ou não) em coisas como uma alma que vai continuar após a morte, a existência de fantasmas e demônios, que algumas pessoas conseguem se comunicar com os mortos, que os relatos de pessoas que passaram por chamadas “experiências de quase-morte” são evidência da existência de vida após a morte, e que extraterrestres existem e já visitaram a Terra ou interagiram com humanos.
Das 12.873 pessoas que começaram o estudo, 8.853 (69%) completaram o questionário, com 92,9% se dizendo brancas, 67% mulheres e idade média de 47,04 anos. Destes participantes, 3.286 (52,7%) disseram sofrer com a Síndrome da Cabeça Explosiva, e 3.523 (51,7%) de paralisia do sono com diferentes níveis de frequência, de um único episódio na vida a várias vezes por semana, sintomas que foram identificados como idiopáticos, isto é, sem relação com outros problemas ou doenças do sono, como narcolepsia. A eficiência de sono média foi de 84,42%, com uma latência (demora para dormir após deitar) média de 28 minutos, duração de sono média de 6h51 e indicador de qualidade de sono média de 8,13.
Já com relação à crença no paranormal, alguns participantes se mostraram extremamente crédulos diante de algumas proposições, com 12,7% acreditando firmemente e respondendo “definitivamente sim” à existência da alma e sua continuidade após a morte, 8,1% definitivamente acreditando em fantasmas, 5,6% na comunicação com mortos, 3,4% nas experiências de quase-morte como pra de um Além, 4,7% na existência de demônios e outros 3,4% na que alienígenas já estiveram na Terra e interagiram com os humanos.
Cruzando os dados e usando ferramentas estatísticas, os cientistas observaram que várias destas crenças estavam associadas à incidência de Síndrome da Cabeça Explosiva, Paralisia do Sono e má qualidade subjetiva do sono em geral, mesmo quando controlados para idade ou gênero. Quanto menores a eficiência e duração do sono e maiores a latência e os sintomas de insônia, mais os participantes mostraram-se propensos a concordar definitivamente, em certo grau ou ao menos não duvidar das proposições paranormais. Os pesquisadores também encontraram uma forte associação entre os participantes que relataram sofrerem ou terem sofrido com a Síndrome da Cabeça Explosiva ou a Paralisia do Sono e a crença de que extraterrestres visitaram a Terra e interagiram com humanos, e da Paralisia do Sono com a de que as experiências de quase-morte são evidência da existência de vida após a morte.
Em artigo sobre o estudo para a revista The Skeptic, French reconhece as limitações da pesquisa e o caráter apenas correlacional dos achados, mas especula sobre suas possíveis causas. Segundo ele, é razoável crer que a privação do sono e seus efeitos sobre a memória e atenção e na ocorrência de alucinações, entre outros, podem levar as pessoas a interpretarem os episódios como sinais do paranormal. French também destaca a associação entre a Paralisia do Sono e as experiências de quase-morte a grande novidade do estudo.
“Pode ser que dois diferentes mecanismos psicológicos estejam por trás desta correlação, ambos relacionados à crença geral de que a consciência (ou a alma, se você preferir) pode se separar do substrato físico do cérebro”, escreve em The Skeptic. “Por um lado, se a vítima de Paralisia do Sono interpretar sua alucinação como envolvendo um fantasma ou um demônio, isto pode muito bem reforçar sua crença em seres espirituais em geral, incluindo a crença de que alma pessoal pode sobreviver à morte do corpo. Por outro lado, os episódios de Paralisia do Sono frequentemente envolvem sensações bizarras de distorção da percepção corporal, incluindo experiências completas de estar fora do corpo. Se uma pessoa se convence de que sua consciência se separou do corpo, é provável que ela seja mais propensa a endossar a ideia de que experiências de quase-morte sejam evidência de vida após a morte”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência