A palavra “milagre” chamou-me a atenção duas vezes nas semanas finais de 2022. Primeiro, porque encontrei à venda a tradução para o espanhol, publicada na Argentina, de meu Livro dos Milagres, primeiro livro de ceticismo científico que escrevi, e cuja segunda edição atualizada saiu em 2021. Este também é o primeiro livro de minha autoria publicado fora do Brasil. Segundo, por causa de um artigo que saiu na edição de 24 de dezembro do New York Times com o título “How Would You Prove That God Performed a Miracle?” (“Como Você Provaria que Deus Fez um Milagre?”).
A peça no NY Times, embora publicada sob a rubrica de “opinião”, executa toda a pantomima do jornalismo imparcial – chega até a incluir um depoimento crítico da exploração do sofrimento humano por curandeiros neopentecostais –, mas essa mímica não passa de um gesto retórico, desprovido de sinceridade: o artigo todo é um exercício da técnica narrativa jornalística que em inglês recebe o nome de mystery mongering.
Não conheço uma boa tradução para o português, mas dá para chamar de “camelódromo de mistérios”: quando o repórter ou articulista faz uma ginástica hercúlea para obscurecer a conclusão que obviamente decorre dos fatos que, com relutância, apresenta, travando uma batalha semântica para escondê-la do leitor e manter o público fascinado por uma pergunta que tem resposta óbvia mas que, para quem se deixa levar pelo fluxo narrativo do autor, “fica sem resposta”. No Brasil, o caso mais gritante das últimas décadas talvez tenha sido o da autópsia alienígena.
O camelódromo não é criminoso como a mentira pura e simples. Também se faz menos descarado do que a mera omissão dos fatos inconvenientes para a narrativa (que estão lá, apenas minimizados ou escamoteados). Mas nem por isso chega a ser bom jornalismo.
Inexplicado
A maior parte do artigo é composta de depoimentos de pessoa que testemunharam ou viveram eventos interpretados como milagrosos, pontuados por breves intervenções em que céticos são desafiados a explicar o que “realmente” aconteceu – ficando implícita a ideia de que, na ausência de uma explicação científica imediata à mão, é coisa de gente chata e implicante não aceitar que houve milagre.
Há até mesmo um entrevistado que tenta esboçar uma “epistemologia do testemunho pessoal” – dizendo que se a palavra de uma testemunha não for suficiente para estabelecer a ocorrência de um milagre, então todas as atividades que dependem de depoimentos (como o jornalismo) devem ser postas em questão. No que ele está certo, claro, mas não do jeito que imagina.
Ao mobilizar tantas falácias de modo tão cândido e inocente, o texto no NY Times oferece uma oportunidade didática – de mostrar o que está errado em raciocínios como os expostos acima. Oportunidade que o artigo despreza, mas que vamos aproveitar aqui.
Extraordinário
Começando pela tal “epistemologia do testemunho”: a palavra de uma testemunha é evidência, sim, mas é a forma mais fraca e ordinária de evidência. Basicamente, seres humanos podem mentir. E, mesmo quando são sinceros e acreditam piamente na realidade do que contam, podem estar enganados ou iludidos. Também, é preciso distinguir entre testemunho factual e inferência a partir do fato. Podemos acreditar quando um amigo nos diz que tomou uma canja e depois sarou de um resfriado, mas temos muito menos razão para concordar quando ele conclui que sarou por causa da canja que tomou.
Se uma pessoa quer convencer os outros de que um evento fantástico e extraordinário teve lugar, não é razoável esperar que apenas evidência fraca e ordinária vá dar conta do recado.
Reprisando um velho clichê, alegações extraordinárias requerem evidência extraordinária. Se não tivermos nenhuma razão especial para duvidar da honestidade da pessoa à nossa frente, podemos acreditar, sem maiores problemas, quando ela nos diz que veio de ônibus de São Paulo. Já se ela disser que veio de Marte, a bordo de um disco voador, a situação é bem diferente.
Incrível
Vamos presumir que a testemunha é honesta, não está enganada e que algo espantoso de fato ocorreu. O argumento favorito “se a ciência não explica, foi um milagre” segue uma forma geral, falaciosa, conhecida como apelo à ignorância (não confundir com a versão pugilística “partir para a ignorância”): se você não provar que estou errado, então estou certo. Isso não é verdade! Durante milênios, antes da invenção da espectroscopia e das viagens espaciais, foi impossível provar que a Lua não era feita de queijo. Nem por isso as pessoas que diziam que a Lua era um queijo gigante pendurado no céu estavam certas.
No contexto da discussão sobre milagres, essa manobra se dá em uma série de etapas: primeiro, salta-se de “a ciência não explica” para “a ciência jamais explicará”; de “se a ciência jamais explicará” para “então é sobrenatural”; de “se é sobrenatural” para “então foi uma entidade da minha mitologia favorita que fez”.
Ou, resumindo, “se os médicos não entendem com o câncer sumiu, foi milagre de [preencha a lacuna com seu messias/guru/santo/divindade favorito]”. O admirável aí é que absolutamente nenhum dos elos da cadeia de raciocínio tem a menor validade. A coisa toda faz tanto sentido quanto dizer que se laranjas são pêssegos, então dois mais dois é igual a cinco.
O fato de alguns cientistas hoje não conseguirem dar conta de um fenômeno não implica que nenhum cientista jamais dará; mesmo se nenhum cientista jamais for capaz de explicar o evento, isso não põe o ocorrido fora da natureza (a ciência, afinal, sempre terá questões em aberto); e mesmo se o evento estiver fora da natureza, nada implica necessariamente que a sua versão favorita do sobrenatural é a que está correta.
E em torno dessa falácia, preenche-se um espaço nobre no jornal mais importante do mundo. O artigo saiu na véspera de Natal, o que sugere uma publicação de caráter estratégico – para oferecer ao leitor algo que traga um calorzinho gostoso na barriga, um eco de Papai Noel disfarçado em curiosidade intelectual.
Para tanto, o artigo, como todo bom camelódromo de mistérios, esconde do leitor o fato evidente que decorre de tudo aquilo que expõe: milagres nunca são provados. No máximo, são aceitos – e por razões que muito pouco têm a ver com a razão.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)