Em cerimônia que contou com ampla divulgação na imprensa, a vacinação de crianças abaixo de 12 anos finalmente começou no Brasil em 14 de janeiro de 2022, com o menino Davi Seremramiwe Xavante, de 8 anos. Como alguém que vem cobrando a vacinação dos pequenos há muito, fiquei feliz em ver a cena, logo seguida de vacinações em outros estados, todas com a devida atenção às crianças que o país do Zé Gotinha sabe dar. Mas é impossível para mim também não sentir um anticlímax. A verdade é que, a esta altura, já deveríamos ter todos nossos brasileirinhos vacinados, com duas doses.
O Brasil sabe vacinar. Temos um programa de vacinação pública que perdura há cinco décadas, exemplo mundial, analisado em muitos trabalhos científicos publicados internacionalmente. Todos temos carteira de vacinação, lembramos de campanhas contra sarampo, pólio e outras doenças infantis, e conhecemos o Zé Gotinha. Brasileiros estão entre as pessoas com menor rejeição a vacinas no mundo. De fato, nos estados em que houve campanha de vacinação contra COVID-19 para adultos e adolescentes, os índices de vacinação são muito bons, bastante acima de países muito mais ricos que o nosso.
Mas falta muito. A vacinação contra COVID-19 avançou devagar demais no início de 2021 por falta de doses, culpa de um governo negacionista e um presidente antivacina, anticiência e insensível à morte e ao sofrimento de sua população. Na falta de organização de uma campanha nacional de vacinação, os estados tiveram que assumir o papel de coordenação, com resultados heterogêneos. Enquanto em alguns temos mais de 95% da população adulta vacinada com duas doses, e reforços sendo aplicados regularmente, em outros há ainda muitos que se vacinar.
Também por interferência federal, a liberação de vacinas pediátricas foi muito lenta. A aprovação da vacina infantil da Pfizer pela Anvisa demorou mais de um mês e veio somente após milhões de crianças dos EUA já terem recebido as duas doses. Suponho que a pressão federal em cima da análise técnica da Anvisa tenha levado a agência a agir com extremo cuidado não só em relação à saúde dos brasileiros (sua função), mas também nos passos burocráticos, o que torna o processo lento. A Coronavac, já amplamente usada no mundo em crianças a partir de três anos de idade, incluindo em países vizinhos, ainda aguarda aprovação para essa faixa etária no Brasil. Torço para que a aprovação ocorra logo, porque há doses disponíveis localmente desta vacina, e já aprendemos que precisamos de vacinas de várias fontes e tipos diferentes para dar cobertura adequada em um país continental como o nosso.
Não podemos negar que o início da vacinação dos menores brasileirinhos que vimos na semana passada ainda é simbólico. Por culpa de um ministro da Saúde inacreditavelmente alinhado com a Presidência (e que deveria estar mais bem informado, pois em algum momento completou os créditos necessários para ser médico), não somente tivemos atraso na liberação e aquisição da vacina infantil, mas também ainda temos muito poucas doses. Os brasileirinhos vacinados até agora são apenas uma gota no oceano de crianças que ainda precisamos proteger.
A verdade é que, por mais fofo que o menino Davi Xavante seja, já não me sinto mais satisfeita em ver as primeiras vacinas aplicadas. Agora quero ver os últimos vacinados. Quero ver os índices de vacinados bater 100% em todas as cidades. Quero ver crianças fantasiadas de super-heróis comemorando aniversários com seus pais no posto de saúde, felizes por agora ter idade suficiente para poderem se vacinar. Quero ver o Bolsonaro seguir o exemplo da maioria de seus familiares e do seu guru Donald Trump, admitindo ser vacinado. Quero ver os países mais pobres do mundo receber e distribuir vacinas para toda sua população.
Quero que atletas antivacina sejam desprezados pela mídia, porque o mundo todo entende a idiotice da atitude. Quero estar num mundo em que é óbvio e evidente para todos que vacinar é um ato comunitário que protege não só ao indivíduo, mas a todos. A grande notícia, nesse dia, será a chegada de representantes de uma ONG pró-saúde no alto de uma montanha ou em uma ilha qualquer, habitada pelo último eremita na Terra ainda não vacinado, para garantir que seja também protegido.
A notícia que eu quero ver agora é a última pessoa vacinada.
Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo