Não foi por falta de aviso: as lições da CPI da COVID-19

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11 dez 2021
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BZKIT

Em dezembro de 2019, casos de uma pneumonia potencialmente letal, de causa então desconhecida, foram relatados na cidade de Wuhan, na província de Hubei, China. Hoje, dois anos depois, a doença, designada COVID-19, já matou mais de 5,2 milhões de pessoas em todo planeta, 615 mil delas brasileiras, com outras milhões em todo o mundo sofrendo sequelas da infecção, na pior crise sanitária global desde a pandemia da Gripe Espanhola no início do século 20. Números que evidenciam o fracasso em seu enfrentamento, especialmente no Brasil, e preocupantes diante de sua continuação, apesar do avanço na vacinação.

E são várias as razões por trás disso. Da hesitação das autoridades chinesas, e da Organização Mundial da Saúde (OMS), em reconhecer a gravidade da situação no início da pandemia ao nacionalismo vacinal e à desigualdade global no acesso aos imunizantes de agora, passando pelo negacionismo e estratégias equivocadas (se não criminosas) em seu enfrentamento – como a busca da chamada imunidade de rebanho pela disseminação natural do SARS-CoV-2, o coronavírus causador da COVID-19 -, foram muitas as oportunidades perdidas em controlar ou, ao menos, minimizar seus impactos.

Falhas que custaram e custam caro não só em vidas perdidas, mas também em seguidas ondas de contágio e no surgimento de variantes - como a recente Ômicron - que afastam cada vez mais a perspectiva de uma volta à normalidade (ou pelo menos algo que se assemelhe a um “novo normal” pós-pandêmico). Isto sem contar outros prejuízos à saúde pública global e nacional, como o desenvolvimento de patógenos resistentes aos medicamentos usados de maneira indiscriminada nos inúteis kits de “tratamento precoce” da COVID-19. Fenômeno que já começa a ser observado no Brasil, onde o Relatório Final da recém-encerrada CPI da Pandemia no Senado Federal pode servir de guia para mapear e identificar muitos deste erros e omissões na condução da crise sanitária pelos que deveriam ser os responsáveis por tentar conter ou mitigar seus efeitos.

 

Uma tragédia de erros

Com mais de mil páginas, o documento, resultado de seis meses de investigações da comissão parlamentar, demonstra como o governo do presidente Jair Bolsonaro, aconselhado pelo que ficou conhecido como um “gabinete paralelo” da crise, focou o enfrentamento da pandemia numa temerária estratégia de busca de uma hipotética imunidade de rebanho da população, via disseminação do vírus.

Para tanto, promoveu o uso indiscriminado de uma série de medicamentos para o suposto tratamento da COVID-19 – inicialmente em qualquer fase da doença, e posteriormente ora “precoce”, ora profilático –, continuando assim mesmo depois de estudos clínicos melhor estruturados comprovarem sua ineficácia ou não encontrarem qualquer benefício, enquanto se opunha abertamente, ou minava pelo seu mau exemplo, a medidas não farmacológicas de controle ou prevenção, como o uso de máscaras, distanciamento social e interrupção de atividades não essenciais.

“Conjugando todos os elementos probatórios colhidos neste relatório, concluímos que a epidemia não teria tomado o curso causal que tomou sem o assessoramento paralelo ao presidente da República, que influenciou diretamente suas decisões e seu discurso desde o início. As ações e o discurso do presidente influenciaram o comportamento de milhões de brasileiros desde março de 2020”, diz o texto.

“Pelas provas colhidas, foi possível concluir que o presidente da República assessorado pelo gabinete paralelo defendia o atingimento da imunidade de rebanho por meio da contaminação coletiva pelo vírus. A estratégia era favorecer a propagação do novo coronavírus, contrapondo-se à adoção de medidas não farmacológicas que contribuíssem para evitar a contaminação, sobretudo o distanciamento social e o uso de máscaras. Dessa forma, o governo federal, de maneira reiterada, estimulou a população brasileira a seguir normalmente com suas vidas, sem tomar as cautelas necessárias. Para defender esse ponto de vista, invocava a proteção e a preservação da economia e incentivava a manutenção de toda e qualquer atividade econômica, bem como das aulas presenciais nas redes pública e privada de ensino”, prossegue o relatório em outro trecho.

As consequências disso, como ainda vemos, foram – e são – desastrosas por qualquer métrica que se observe. Com mais de 615 mil mortos por COVID-19 até agora, o Brasil ocupa a segunda posição no mundo em número absoluto de vítimas fatais da doença, atrás apenas dos EUA, que se aproxima das 800 mil. Situação que não melhora muito em termos relativos à população: apesar de abrigar apenas cerca de 2,7% dos habitantes do planeta, o Brasil no momento concentra quase 12% dos mortos na pandemia, o que se traduz em uma taxa de 2.875 vítimas para cada milhão de habitantes, a décima mais alta do mundo.

 

Capítulo à parte

A propalada - e falsa – existência do dito “tratamento precoce” para profilaxia e cura da COVID-19 também foi uma marca na gestão da pandemia no Brasil, tanto que mereceu um extenso capítulo à parte no relatório da CPI da Pandemia. Começando pelo presidente Jair Bolsonaro, na esteira de fala do então presidente dos EUA, Donald Trump, em março de 2020, a pregação em torno dos medicamentos nele preconizados – como hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outros que foram sendo introduzidos e retirados do conjunto ao sabor de estudos mal feitos, antiéticos e desinformação – foi tamanha que até hoje, mesmo após seguidas comprovações da sua ineficácia e perigos, ainda é fácil encontrar defensores de seu uso.

E não é por menos, já que a recomendação do “tratamento precoce” foi praticamente uma, e talvez a única, política institucional do governo federal para enfrentamento da pandemia, principalmente a partir da gestão do ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello, que chegou ao cargo justamente pela recusa de seus antecessores – Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich – em encampar sua defesa.

Ação que ficou clara em diversas passagens da CPI, como nos relatos da pressão do governo sobre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para mudanças na bula da cloroquina, prevendo sua indicação para o tratamento da COVID-19, ainda no início da pandemia; quando o Ministério da Saúde, já sob as ordens de Pazuello, jogou a ciência pela janela e publicou protocolo de prescrição do “tratamento precoce” em maio de 2020; ou quando o mesmo Ministério da Saúde lançou aplicativo denominado “Tratecov” que prescrevia o mesmo “tratamento precoce” em praticamente qualquer situação já em janeiro de 2021, em viagem do mesmo general-ministro Pazuello a Manaus, levando a falsa cura da cloroquina para a cidade às vésperas da tragédia da falta de oxigênio para os pacientes na capital amazonense.

Isso sem contar os arranjos para defesa e utilização do “tratamento precoce” com outras esferas de governo e atores do setor de medicina privada, com a ampla distribuição dos infames “Kits Covid” por prefeituras e operadoras de planos de saúde. Destaque aqui para o caso do escândalo envolvendo a Prevent Senior, cujo uso de seus clientes e pacientes como cobaias involuntárias com intuito de demonstrar a falsa eficácia do “tratamento precoce” também rendeu um capítulo à parte no relatório da CPI.

As consequências do uso maciço e indiscriminado destes medicamentos na saúde pública brasileira já se faz notar, e não foi por falta de aviso. Dados do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) divulgados no fim de novembro mostram que a detecção de bactérias resistentes a antibióticos, como a azitromicina, mais que triplicou na pandemia, com o número de amostras positivas para micro-organismos com estas características ultrapassando 3,7 mil apenas no período de janeiro a outubro deste ano, contra os pouco mais de mil em 2019, antes da crise sanitária global.

“Durante a pandemia, houve aumento no volume de pacientes internados em estado grave e por longos períodos, que apresentam maior risco de infecção hospitalar. Também houve aumento no uso de antibióticos, o que eleva a pressão seletiva sobre as bactérias. É um cenário que favorece a disseminação da resistência, agravando ainda mais um problema de alto impacto na saúde pública”, afirmou em comunicado da instituição a chefe do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do IOC/Fiocruz, Ana Paula Assef.

Já trabalho do Núcleo de Estudos em Farmacoterapia (NEF) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) publicado em agosto deste ano e também divulgado no fim de novembro associou um surto de escabiose, a sarna humana, em curso atualmente em Pernambuco ao uso indiscriminado de ivermectina.

“O uso irracional de medicamentos é um problema de saúde pública, porém, no caso de antibióticos, antiparasitários e antifúngicos, esse problema ganha proporções maiores. Quando utilizamos de forma irracional/incorreta medicamentos, como a ivermectina, corremos o risco de induzir a resistência do parasita ao medicamento que deveria tratar a doença causada por ele”, disse, também por meio de comunicado institucional, Sabrina Neves, pesquisadora do Instituto de Ciências Farmacêuticas (ICF) da Ufal e uma das autoras do trabalho.

 

Drama longe do fim

A desastrosa atuação do governo do presidente Jair Bolsonaro na pandemia de COVID-19 também está colocando em risco outra área que o Brasil é referência internacional e até pouco tempo atrás um orgulho nacional: a vacinação em massa via o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e a adesão maciça da população a esta estratégia de prevenção e controle de doenças. Em um fenômeno que pode ser descrito como “contaminação ideológica”, o bolsonarismo incorporou o discurso antivacina que também já havia se disseminado no conservadorismo ocidental, mais uma vez e notadamente entre os apoiadores do ex-presidente dos EUA Donald Trump.

Diante disso, aponta o relatório da CPI, o governo federal ignorou e recusou seguidas ofertas de vacinas ao país, “o que impactou diretamente na aquisição das vacinas e, consequentemente, na imunização da população brasileira”. E pior: quando não foi mais possível ignorar esta estratégia, elementos dentro e fora do governo se lançaram em negociações suspeitas e irregulares para aquisição de imunizantes, inclusive alguns que sequer haviam apresentado resultados dos seus testes, como a indiana Covaxin, em detrimento de vacinas já aprovadas e registradas para uso pela Anvisa.

“A atuação negligente do governo federal na aquisição de vacinas apenas reforça as hipóteses levantadas nos capítulos anteriores deste relatório: optou-se por priorizar a cura via medicamentos, e não vacinação, e expor a população ao vírus, para que fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho pela contaminação natural”, resume o texto da comissão.

E assim, o drama da pandemia no Brasil ainda está longe do fim...

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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