O Princípio de Pareto e a continuação da tragédia da COVID-19

Artigo
20 out 2021
Autor
CUBE

 

A maior parte dos tremores de terra é quase imperceptível: a maioria das mortes em terremotos é causada por uma minoria de grandes abalos sísmicos. Acidentes de carro e crimes, também: a maioria causa poucos prejuízos, ou dano, às vítimas, mas uns poucos bastam para gerar consequências trágicas. No mercado literário e no cinema, a maioria das vendas de livros e de ingressos concentra-se num pequeno número de best-sellers e campeões de bilheteria. Numa empresa, é comum que a maior parte dos negócios seja fechada por um pequeno número de representantes. Casos assim, na natureza e na sociedade, costumam ser citados como exemplos do que ficou conhecido como Princípio de Pareto.

Formulado nos anos 1950 pelo engenheiro e especialista em controle de qualidade americano Joseph Moses Juran, o Princípio de Pareto diz que para muitos fenômenos 80% das consequências advêm de 20% das causas, o que também o fez ser conhecido como Regra dos 80/20, ou Lei dos Poucos Vitais. Seu nome é uma homenagem ao economista italiano Vilfredo Pareto, que no fim do século 19 observou que 80% das terras da Itália eram de propriedade de apenas 20% da população do país.

Desde então, o Princípio de Pareto tem sido aplicado nas mais diversas áreas, do marketing à computação e a segurança no trabalho. Daí planos de negócios que preveem que 80% das receitas virão de apenas 20% dos clientes, muito em voga atualmente em serviços de streaming e distribuição de músicas ou jogos web “gratuitos” com esquemas pay to win (“pague para vencer”). E como vimos, tem sido observado mesmo em fenômenos naturais.

 

Superdisseminação

Mais recentemente, o Princípio de Pareto também encontrou espaço nas análises da pandemia de COVID-19. Nestes casos, porém, os desequilíbrios se mostraram ainda maiores que os previstos, em especial nos chamados eventos de superdisseminação do SARS-CoV-2, em que algumas poucas pessoas respondem pela maior parte da transmissão do coronavírus causador da doença.

Em um estudo publicado em abril de 2020, ainda no início da pandemia, com base em dados da disseminação internacional do vírus a partir da China, cientistas do Centro para Modelagem Matemática de Doenças Infecciosas da Escola de Medicina Tropical e Higiene de Londres estimavam que 80% dos novos casos tinham como origem apenas cerca de 10% dos infectados.

Já em setembro do ano passado, pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia da Jordânia relataram como uma festa de casamento, realizada em março, levou a um surto do COVID-19 no Norte do país. Recém-chegado da Espanha, então um dos epicentros da pandemia no mundo, o pai da noiva, infectado, teria transmitido o vírus para pelo menos 76 dos cerca de 350 convidados da festa, com estes se tornando novos vetores do disseminação da doença.

No mesmo mês, outro estudo de especialistas da Universidade de Hong Kong, publicado na prestigiada revista Nature Medicine, usou informações de rastreamento de contatos dos pouco mais de mil casos confirmados na cidade entre 23 de janeiro e 28 de abril de 2020 para identificar a ocorrência de entre 4 e 7 eventos de superdisseminação, por meio dos quais 19% dos contaminados teriam respondido por 80% das novas infecções, numa relação que emula quase exatamente a do Princípio de Pareto.

Mas esta proporção pode ser ainda pior. Também no ano passado, em novembro, outro estudo publicado na revista Science analisou a epidemiologia da COVID-19 em dois estados do Sul da Índia – Tamil Nadu e Andhra Pradesh – que haviam estabelecido rigorosos protocolos de rastreamento de contatos e testagem. Novamente, os cientistas apontaram eventos de superdisseminação como os principais vetores de espalhamento do vírus, com 5% dos infectados respondendo por 80% dos novos casos de contaminação.

 

Negacionismo

Estes números também são uma demonstração de como poucos negacionistas podem impossibilitar o controle da disseminação do vírus, numa radicalização do Princípio de Pareto. Isto porque, nestes casos, as consequências são absolutas, com as atitudes irresponsáveis de alguns (desrespeitando o distanciamento social, promovendo aglomerações e não usando máscaras adequadamente) mantendo o vírus em alta circulação e dando oportunidades para que sofra mutações e se torne mais transmissível ou letal.

Um exemplo disso é a tragédia da COVID-19 no Brasil. Estimulada pelo discurso e ações do presidente Jair Bolsonaro, uma minoria composta principalmente por seus seguidores mais ferrenhos – algo como 12% da população com mais de 16 anos em meados de 2019, antes da pandemia - resistiu às medidas de contenção em número suficiente para praticamente anular sua efetividade. Assim, enquanto toda sociedade arcava, e arca, com os efeitos econômicos e sociais das restrições, ainda assim o país tem um dos piores desempenhos no controle da doença no planeta: em 17 de outubro, com mais de 603 mil mortes por COVID-19 confirmadas, o Brasil contabiliza 2.819 vítimas fatais para cada milhão de habitantes, oitava maior proporção no mundo e 4,53 vezes a média global, de 622 mortes por milhão de pessoas.

Problema que permanece, apesar destes números assustadores, e ameaça minar uma verdadeira “instituição” brasileira que tanto está ajudando a frear este massacre nos últimos meses: a adesão da população à vacinação. Pesquisa Datafolha divulgada no fim de setembro mostrou que 15% dos apoiadores do presidente não se sentem protegidos pelas vacinas, quase o dobro dos 8% dos que reprovam sua gestão. Diferença que também é vista com relação ao uso obrigatório de máscaras, uma das formas mais simples, práticas e baratas de prevenção da transmissão do vírus, com 19% dos que aprovam o presidente contrários à medida, contra 4% entre os que consideram seu governo ruim ou péssimo. Mais que isso, o núcleo bolsonarista ferrenho da população brasileira continuaria praticamente do mesmo tamanho que em 2019 – 11% dos que têm mais de 16 anos -, só que mais radicalizado e propenso ao fenômeno do “contágio ideológico” que pode ajudar a ampliar o alcance do discurso antivacina.

E não é pequeno o estrago que isso pode causar. Basta ver a situação dos Estados Unidos, que depois de largarem na frente de quase todo o mundo na vacinação contra a COVID-19, agora veem o avanço na cobertura estancar em pouco mais de metade a população devido a um amplo espectro de discursos e teorias conspiratórias que se traduz em altas taxas de hesitação vacinal e estimados 22% da população que se identificam como “antivacina”. Com isso, o país agora enfrenta o que está sendo chamada de uma “pandemia de não vacinados”, voltando a registrar uma média móvel de mais de 1,5 mil mortes diárias, quase a totalidade de pessoas que recusaram a vacina, e uma explosão de casos entre crianças, para as quais os imunizantes ainda não foram aprovados.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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