Numa das (muitas) cenas memoráveis de Dr. Strangelove ("Dr. Fantástico, ou: Como Eu Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Bomba"), clássico de Stanley Kubrick de 1964, o general paranoico Jack D. Ripper (Sterling Hayden) explica ao adido britânico Lionel Mandrake (Peter Sellers) porque só bebe água destilada. De acordo com o militar, o problema todo está na fluoretação da água, que debilita os “fluídos corporais” e que não passa de uma estratégia dos russos, que só bebem vodka, para implantar o comunismo no mundo. É uma dessas teorias conspiratórias delirantes, mas que emplacaria fácil hoje em dia, bastando trocar a fluoretação da água pela COVID-19, e os russos pelos chineses.
Basta ver as reações a um twitter do ex-ministro da Saúde Nelson Teich, o Breve, falando de sua alegria diante da notícia de que uma vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford começaria a ser testada no Brasil. “Lobbystas fdp!!! Mataram o Brasil para nos fazer de cobaia! Presidente, o seu povo está sem Cloroquina!”, diz um comentário. “Confio na cloroquina, fique com sua vacina!”, escreve outro. “Prefiro um tiro!”; “Em mim ninguém vai espetar essa m... Ainda mais se a vacina tiver sido produzida em laboratórios financiados pelos globalistas Bill Gates e George Soros. Já temos a hidroxicloroquina, mas o acesso a ela está sendo dificultado”, protesta outro.
E mais Bill Gates em outra postagem: “Primeiro vacine os filhos do Bill Gates, pois eu aqui prefiro tomar hidroxicloroquina”. E, claro, a cereja do bolo conspiratório: “Procure se informar sobre os chips em vacinas”. Essa história do chip “para controle social” tem origem numa parceria da Melinda & Bill Gates Foundation com o Massachusetts Institute of Technology (MIT), firmada muito antes da COVID-19, para desenvolvimento de uma tatuagem invisível que armazenasse, na pele da pessoa, seu histórico de vacinação ou outros dados médicos.
Essa teoria conspiratória, de que a COVID-19 é só uma “gripezinha”, que a mídia transformou em pandemia grave, para aplicar em todos os seres humanos uma vacina que, na verdade, contém um chip que vai fazer o controle social de toda população, circula nos EUA e na Europa, nesta última com menos intensidade. Os brasileiros merecem o crédito de acrescentar ao mirabolante imbróglio a "clorocoisa" e a "hidroxiclorocoisa", numa facção tupiniquim antiCovidvaxx-Bolso-cloroquinista.
O anúncio da parceria entre o Instituto Butantan e a farmacêutica chinesa Sinovac Biotech, para o teste de uma outra vacina contra a COVID-19, agitou as hostes bolsonaristas, que rapidamente ocuparam as redes sociais para “denunciar” uma conspiração dos “comunistas chineses” com o governador paulista João Dória (PSDB) contra o governo federal. Não faltou a recomendação para não tomar “a vacina chinesa contra o vírus chinês bancada pelo governador que é grande parceiro da China”.
Vacina e normalidade
É consenso entre os especialistas que a vacina é nossa melhor chance de retorno à normalidade, nova ou antiga, a despeito de todos os problemas de acesso, produção, distribuição e custos já em discussão. A vacina é a saída porque, por enquanto, a tal imunidade de rebanho – ou seja, a exposição natural ao vírus que produziria imunidade – só existiria se entre 50% e 70% de uma população fosse exposta ao vírus. Em países que registraram grande incidência da COVID-19, como Espanha e Itália, a parcela da população que apresenta anticorpos para o SARS-CoV-2 mal chega aos 4%. Isso significa que, sem vacina, há grandes possibilidade de uma segunda, terceira, quarta onda, com novos lockdowns. É o que está acontecendo em estados americanos, como Texas e Flórida, e o condado de Los Angeles, na Califórnia, que reabriram a economia e estão vendo o número de novos casos até triplicar.
Era de se esperar que todos estivessem ansiosos à espera de uma vacina eficaz, mas uma pequena pesquisa feita nos Estados Unidos e ainda não publicada (está em processo de peer review) mostra que não. Os pesquisadores queriam saber se a pandemia de COVID-19 teria ou não mudado a disposição dos americanos em se vacinar. Uma cobertura vacinal de 50% a 70% é necessária para conter o SARS-CoV-2, e sabe-se que este índice é praticamente o dobro do registrado anualmente na vacinação contra a gripe, que ficou em meros 37% no período 2017-2018. Em abril, Matthew Motta, professor de ciência Política da Oklahoma State University, e Kristin Lunz-Trujillo, doutoranda na mesma área, da Minnesota University, ambos especialistas em resistência a vacinação, entrevistaram 493 americanos, perguntando se se vacinariam contra a COVID-19: 23% disseram que não.
Os entrevistados responderam a questões básicas nesse tipo de análise, que se referem à segurança, eficiência e importância da vacinação. Nesta pesquisa, 16% se identificaram como antivaxxers e, destes, 44% não pretendem se vacinar “de jeito nenhum”. Outros 19% se declararam céticos quanto a vacinas e, destes, 62% também não pretendem se vacinar. O mais curioso, porém, é que, dentre os que confiam em vacinas, 15% não pretendem se vacinar.
Medo político
Serena O’Donnell, moradora de Madison, Wisconsin, é uma delas. Profissional aposentada da área de marketing e vendas de material médico, Serena desconfia da rapidez com que o presidente americano Donald Trump promete que haverá uma vacina, contrariando inclusive seus principais assessores de saúde. “Trump politizou o coronavírus ao máximo, minimizou o perigo o quanto pode, e hoje temos mais de 117 mil mortos no país. A popularidade dele vem caindo e tenho certeza que, às vésperas da eleição, ele vai anunciar que temos uma vacina ou antecipar seu lançamento, só para ser reeleito”, me explica por e-mail. “Não confio nele, e disponibilizar uma vacina tão depressa e com poucos testes realmente me assusta. Se isso acontecer, não vou me vacinar”. E ela não está sozinha. Não são poucos os americanos que manifestam o mesmo temor em suas redes sociais.
No começo do mês, dois professores da University of Pennsylvania, Ezequiel J. Emmanuel, professor de ética médica e política de saúde, e Paul A. Offit, de Pediatria e co-inventor de uma vacina contra o rotavírus, analisaram essa possibilidade em artigo publicado pelo The New York Times. A dupla imaginou um anúncio a poucos dias da eleição em que a Food and Drug Administration (FDA) autorizasse o uso emergencial de uma vacina contra o coronavírus, com Trump cantando vitória sobre a COVID-19, exigindo a abertura imediata de toda atividade econômica e prometendo recuperação solida e rápida da economia.
Segundo os autores, há hoje 123 vacinas em desenvolvimento, dez delas na fase 3 de teste clínico, ou seja, sendo testadas em seres humanos. No mês que vem, o National Institutes of Health (NIH) deve iniciar testes em 30 mil voluntários, 20 mil dos quais devem receber a vacina e 10 mil, placebo. Só para comparação. A fase 3 da RotaTeq, uma das vacinas contra o rotavírus, que causa diarreia em crianças, envolveu 70 mil crianças de 2001 a 2004. Outra, a Rotarix, foi testada em 63 mil crianças de 2003 a 2006. A vacina contra o HPV só foi liberada após sete anos de testes.
De acordo com os professores, há possibilidades muito improváveis de acelerar esses testes, como fazer a testagem em voluntários de hot spots, em áreas com grande índice de transmissão e alta incidência da doença (como é o caso do Brasil), permitindo que a avaliação de segurança e eficácia seja mais rápida. A outra possibilidade é que, três meses após o início dos testes do NIH (em outubro, portanto), constate-se que os voluntários produziram altos níveis de anticorpos, sem efeitos colaterais graves, o que também não comprova a eficiência da vacina em prevenir e impedir a transmissão da COVID-19.
Tudo o que a FDA precisa fazer é autorizar o uso emergencial de uma ou mais vacinas, bastando para isso considerar “razoável acreditar” que a vacina pode ser efetiva. Isso já aconteceu nesta pandemia, com a Casa Branca e as farmacêuticas defendendo o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. Isso daria à população uma falsa sensação de segurança e ao relaxamento das medidas preventivas, com graves consequências.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros