O Ministério Público Federal (MPF) no Piauí ajuizou uma ação civil pública contra a União, o estado do Piauí e o município de Teresina pedindo a incorporação imediata de um suposto protocolo clínico para uso de hidroxicloroquina como tratamento de pacientes com COVID-19, e a disponibilização desse medicamento no Sistema Único de Saúde (SUS) em todo país.
O MPF alega que dois médicos do estado do Piauí empregaram tal “protocolo”, ministrando os medicamentos cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes em estágios iniciais da doença, e teriam concluído que isso evitaria o agravamento e o encaminhamento dos pacientes aos leitos de UTI. Relata que, no município de Floriano, tal protocolo teria sido utilizado com sucesso. Com base nisso, pede que o dito “protocolo” seja adotado no SUS.
Essa ação é completamente descabida.
O MPF cofunde conceitos e trata como evidência científica algo que não é. Relato de especialistas e descrição de série de casos não são admitidos como meios de formação de evidências científicas.
A avaliação de segurança e eficácia de drogas para tratamento de doenças é feita mediante resultados de ensaios clínicos randomizados. Na pandemia de COVID-19, estão sendo realizados estudos com diversas drogas, como antivirais e imunossupressores, mas até o momento nenhum demonstrou eficácia para tratamento da doença[i]. É importante dizer que o Ministério da Saúde reconhece que ainda não há evidências de que nenhuma droga seja segura e eficaz contra a COVID-19[ii].
É comum que pesquisadores experimentem drogas já conhecidas para doenças novas, quando existe alguma hipótese que relacione o mecanismo de ação da droga àquilo que se sabe sobre a doença. Como estamos vivendo uma pandemia, cientistas do mundo todo têm se empenhado para encontrar algum tratamento para a COVID-19, inclusive testando muitos medicamentos conhecidos – a hidroxicloroquina é apenas um deles.
A cloroquina e a hidroxicloroquina são drogas utilizadas há muitos anos para tratamento de malária e doenças reumáticas (como lúpus e artrite reumatoide). São medicamentos cuja segurança e eficácia está bem definida para essas indicações clínicas e que apresentam efeitos adversos também bastante conhecidos, alguns potencialmente graves, como arritmias cardíacas.
Por razões políticas[iii], a cloroquina e a hidroxicloroquina ganharam projeção e passaram a ser consideradas possíveis tratamentos promissores para combater o novo coronavírus, embora só houvesse estudos in vitro (em culturas de células, em laboratório) e estudos preliminares com poucos pacientes. Nessa fase, contudo, nenhum resultado é considerado evidência científica, indicando somente que é possível começar ensaios clínicos com esses medicamentos. Isso porque resultados em testes pré-clínicos e em estudos preliminares não necessariamente predizem bons resultados clínicos.
Aproximadamente 90% das drogas que parecem promissoras em culturas de células ou quando testadas em poucas pessoas não se mostram eficazes quando começam a ser testadas de modo mais consistente, em ensaios clínicos, para uso na população[iv].
Por ora, são necessários estudos clínicos de qualidade tanto com a hidroxicloroquina como com outros medicamentos. Ainda não há evidências de segurança e eficácia para uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da COVID-19 e seu uso, principalmente em pacientes com sintomas leves – cerca de 80% dos casos –, pode trazer riscos desnecessários (por exemplo, de precipitar arritmia cardíaca em alguém que não precisaria de remédio nenhum)[v]. Além disso, os estudos observacionais divulgados, em que se acompanha a evolução clínica de grupos de pacientes que recebem um determinado tratamento, não indicam que haja benefício no uso dessas drogas em pacientes diagnosticados com COVID-19[vi],[vii].
Mesmo assim, o Ministério da Saúde cedeu a pressões e decidiu liberar o uso de cloroquina como se fosse um tratamento estabelecido para a COVID-19. Sem segurança e eficácia estabelecidas, o ministério emitiu uma nota técnica com um protocolo para uso em casos graves[viii]. Não sabendo se o medicamento de fato auxilia no tratamento, pacientes começaram a ser submetidos ao risco de efeitos adversos.
Agora, essa ação do MPF no Piauí pretende ampliar esse uso, forçando as autoridades sanitárias a adotarem o suposto protocolo clínico para uso em casos leves e estágios iniciais da doença COVID-19.
Além de imprudente do ponto de vista médico, o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, sem que haja comprovação científica de segurança e eficácia, é manifestamente ilegal.
O registro de medicamentos é obrigatório no Brasil e tem como requisito que o produto, por meio de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como “seguro e eficaz para o uso a que se propõe” (Lei 6.360/1976, art. 16, II). A verificação dessa conformidade é competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Cabe ressaltar que a alegação de que o Ministério da Saúde autorizou a cloroquina pelo chamado uso compassivo (por compaixão) contraria norma da própria Anvisa, que define que essa modalidade exige anuência da agência para cada paciente, pessoal e intransferível, não admitindo liberação generalizada para grupos de pessoas (RDC Anvisa 38/2013, art. 13).
Além disso, a adoção de protocolo clínico sem comprovação científica contraria a Lei Orgânica da Saúde. Eventual recomendação de uso e posologia de cloroquina e hidroxicloroquina – sem base científica, porque não existe dose estabelecida desses medicamentos para tratamento de COVID-19 – significa criar protocolo clínico e diretriz terapêutica sem observar o procedimento previsto em lei, que é atribuição do Ministério de Saúde e exige o assessoramento da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), considerando as “evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento” (Lei 8.080/1990, art. 19-Q).
A lei recentemente aprovada pelo Congresso para o enfrentamento da pandemia de COVID-19 também estabelece que quaisquer medidas que sejam adotadas, como a determinação de realização compulsória de tratamentos específicos, somente poderão ser feitas “com base em evidências científicas” (Lei 13.979/2020, art. 3º, § 1º).
Vale salientar que o chamado uso off label de medicamento sempre existiu. Trata-se da prescrição de tratamento medicamentoso com finalidade além da indicada na bula, portanto diferente do uso registrado no órgão regulatório de vigilância sanitária (que, no Brasil, é a Anvisa). Isso é essencialmente o que Conselho Federal de Medicina (CFM) reafirma no parecer sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina na COVID-19: não agem ilegalmente os médicos que prescrevem esses medicamentos para pacientes diagnosticados com COVID-19, desde que assumam a responsabilidade e tenham consentimento livre e esclarecido desses pacientes[ix].
Mas o Ministério da Saúde não pode definir protocolo clínico e distribuir medicamento nessa situação, porque a lei exige comprovação científica. É obrigação legal das autoridades sanitárias zelar pela segurança e eficácia dos medicamentos disponibilizados à população. O uso off label é situação excepcional e não deve integrar protocolos e diretrizes terapêuticas oficiais.
O direito à saúde, assegurado pela Constituição, atribui ao Estado o dever de atuar para promoção, proteção e recuperação da nossa saúde, o que inclui garantir que os tratamentos para as doenças sejam seguros e eficazes. É justamente por isso que não devemos descuidar das evidências científicas como fundamento para as decisões a serem tomadas pelas autoridades sanitárias, conforme prevê a legislação brasileira.
Daniel A. Dourado é médico, advogado, professor universitário e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP)
REFERÊNCIAS
[i] Sanders JM, Monogue ML, Jodlowski TZ, Cutrell JB. Pharmacologic Treatments for Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): A Review. JAMA. 2020;323(18):1824–1836. https://doi.org/10.1001/jama.2020.6019
[ii] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. Diretrizes para Diagnóstico e Tratamento da COVID-19. v.1, 6 de abril de 2020. https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/07/ddt-covid-19.pdf
[iii] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/declaracao-de-trump-cria-corrida-por-hidroxicloroquina-em-farmacias-de-washington.shtml
[iv] Mullard A. Flooded by the torrent: the COVID-19 drug pipeline. The Lancet. 2020; 395:1245–1246 https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30894-1
[v] Ferner Robin E, Aronson Jeffrey K. Chloroquine and hydroxychloroquine in COVID-19. BMJ. 2020; 369:m1432. https://doi.org/10.1136/bmj.m1432
[vi] Geleris J, Sun Y, Platt J, et al. Observational study of hydroxychloroquine in hospitalized patients with Covid-19. N Engl J Med. 2020. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2012410
[vii] Rosenberg ES, Dufort EM, Udo T, et al. Association of Treatment with Hydroxychloroquine or Azithromycin with In-Hospital Mortality in Patients with COVID-19 in New York State. JAMA. Published online May 11, 2020. https://doi.org/10.1001/jama.2020.8630
[viii] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. Nota Informativa nº 5/2020-DAF/SCTIE/MS. https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/30/MS---0014167392---Nota-Informativa.pdf
[ix] Conselho Federal de Medicina. Processo-Consulta CFM nº 8/2020 – Parecer CFM nº 4/2020: Tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina. Rel. Cons. Mauro Luiz de Britto Ribeiro. https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4