A revista britânica Fortean Times (FT) é o periódico do estranhamento: suas reportagens, colunas e notas cobrem assuntos que vão de avistamentos de discos voadores a casas mal-assombradas, passando por curiosidades divertidas (por exemplo, a descoberta de um lemingue congelado há 40 mil anos na Sibéria), fenômenos perturbadores — nuvens de gafanhotos, chuvas de sapos — e, claro, teorias da conspiração. A edição mais recente, recebida no tablet em meio ao isolamento social, faz uma espécie de grande apanhado da ideação conspiratória em torno da COVID-19.
Esta edição da FT já estava fechada quando o chanceler Ernesto Araújo soltou seus pensamentos sobre o “comunavírus”, então o Brasil não está contemplado. O principal foco da coluna regular “The Conspirasphere” já não é mais nem a hipótese descartada da “arma biológica”, nem a bizarra suposta “conexão” entre a pandemia e a tecnologia 5G. O mais quente é a reação dos fãs de QAnon aos desenvolvimentos em torno da doença.
“QAnon”, abreviação de “Q Anônimo”, é o nome dado a uma suposta “fonte secreta”, que assina suas postagens online apenas como “Q”, infiltrada no governo federal dos Estados Unidos. “Q” age espalhando “migalhas de pão” sobre o que seriam os verdadeiros bastidores da administração Trump.
De acordo com “Q”, os erros e vexames de Donald Trump são, na verdade, mensagens cifradas dando conta de uma guerra secreta travada pelo presidente americano contra o “deep state”, isto é, as “forças ocultas” que, segundo os paranoicos, realmente controlam o governo dos Estados Unidos.
O clímax dessa guerra secreta viria com a “Tempestade”, o momento em que o oculto far-se-á explícito, os traidores serão expurgados e os “pedófilos” do Partido Democrata (incluindo, claro, a besta-fera do trumpismo, Hillary Clinton) acabarão presos e humilhados.
O colunista de “Conspirasphere”, Noel Rooney, diz que “o pessoal Q segue firme ao lado de Trump”, com alguns especulando que o lockdown trazido pelo vírus é parte da preparação para a “Tempestade”: os esquerdistas não poderão ir às ruas defender Hillary se estiverem todos trancados em casa! A pessoa (ou pessoas) responsável pela persona de “Q” tem se mantido em relativo silêncio nos últimos tempos, mas usou em uma postagem a expressão “vírus chinês”, que Trump tem tentado, sem sucesso, fazer colar na mídia.
Indesejadas e imprevistas
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) é mais conhecido por sua tentativa valente, mas no fim, fracassada, de estabelecer um critério claro e certo para distinguir ciência de pseudociência, o da falseabilidade: uma teoria é “científica” se fizer previsões que, em tese, poderão um dia ser refutadas por observações ou experimentos.
Como bem resume outro filósofo, o americano Lee McIntyre, dependendo da interpretação que se dá, o critério é ou frouxo demais (astrologia e homeopatia fazem previsões refutáveis, logo seriam ciências) ou rígido em excesso (como há instâncias experimentais que contradizem as Leis de Newton, os cientistas seriam “irracionais” ao continuar a usá-las).
Em meio a suas reflexões sobre a natureza da ciência, Popper debruçou-se sobre o problema das teorias da conspiração, que ele via como uma espécie de ciência social incompetente.
“A teoria conspiratória da sociedade”, escreve ele no livro de ensaios Conjecturas e Refutações, “é apenas uma versão do teísmo, uma crença em deuses cujos caprichos governam tudo. Ela vem de abandonar Deus e então perguntar: ‘Quem ficou em seu lugar?’ Seu lugar foi preenchido por diversos grupos e homens poderosos — sinistros grupos de pressão, que merecem a culpa (…) por todos os males de que sofremos”.
Já em outro livro, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper define “a teoria conspiratória da sociedade” como a ideia de que “a explicação de um fenômeno social consiste em encontrar os homens ou grupos que estão interessados na ocorrência do fenômeno”.
Isso é absurdo, argumenta ele, porque pressupõe que tudo o que acontece, acontece pela ação e intenção consciente de alguém: resultados imprevistos e consequências indesejadas são excluídos do quadro explicativo, por questão de princípio. Mas as vidas dos indivíduos, a sociedade como um todo, são permeadas por efeitos imprevistos e consequências indesejadas. Popper dá um exemplo da lei de oferta e procura: a pessoa que manifesta o interesse de comprar uma casa provoca um aumento no preço da casa — o comprador causa algo que obviamente não deseja.
Cometas e bruxas
Como todo e qualquer fato do mundo — da cor do asfalto à duração do dia — pode ser visto como tendo “consequências” que “beneficiam” alguém, o escopo para teorias da conspiração e ideação conspiratória é, em essência, infinito. Na esfera política, isso é especialmente notável. Todo comentarista, à direita e à esquerda, ganha pontos de reputação e sagacidade ao apontar para um efeito colateral indesejado ou resultado imprevisto de uma política pública e dizer, com voz grave, “era exatamente o que queriam, desde o começo”. Conspiracionistas vivem num mundo livre de acaso e incompetência.
Mas, claro, há gradações. Temos o conspiracionismo light das conversas de Twitter, temos Ernesto “o globalismo é o novo caminho do comunismo” Araújo e temos alguém que assina como “Scott W, agente aposentado da CIA”, que segundo a Fortean Times denunciou que a pandemia foi “implementada” para distrair a humanidade da colisão iminente da Terra com um cometa.
Afinal, por que restringir as “consequências” e “benefícios” que entram na máquina geradora de conspirações aos que existem de fato no mundo real?
Outras teorias exóticas relativas à COVID-19 e coletadas pela revista incluem: um plano da elite globalizada para aumentar impostos; um plano neoliberal para obrigar as universidades a migrar para o ensino à distância; e a melhor de todas, que o vírus foi criado por um culto de bruxas feministas para eliminar os homens mais velhos, talvez por estarem refestelados, há várias décadas, nos privilégios do patriarcado.
Em 1941, a revista de ficção científica americana “Astounding Science Fiction” publicou o conto Logic of Empire, de Robert Heinlein (1907-1988), onde um personagem acusa outro de cometer o erro de “atribuir à vilania condições que simplesmente resultam de idiotice”. Levemente reformulado, o princípio acabou ficando conhecido como Navalha de Heinlein (ou “de Hanlon”, em homenagem a Robert J. Hanlon, que enunciou o mesmo pensamento anos mais tarde, de forma independente): “Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado por incompetência”.
O que é, mais ou menos, o mesmo argumento de Popper.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)