Antevisão. O sonho de todo general derrotado. Não tivesse Napoleão comprometido suas últimas reservas no afã de uma vitória final e decisiva sobre Wellington, não encontraria sua Waterloo. Soubesse Rommel que os Aliados viriam pela Normandia, talvez ainda hoje grande parte da Europa estivesse dominada pelos nazistas. Vislumbrasse Lee o desastre que seria atacar o centro da linha unionista, os EUA poderiam ser uma confederação escravagista. Mas, por mais brilhantes generais que foram, Napoleão, Rommel e Lee não eram videntes ou adivinhos. Ainda bem, pois graças a suas derrotas o liberalismo ganhou o mundo, a escravidão virou um tabu e a democracia se consolidou como principal modo de governo no Ocidente.
Uso essa metáfora militar para chamar a atenção e tentar convencer alguns dos que estão sendo atraídos pelo perigoso discurso do atual presidente do Brasil, o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, de que a COVID-19 não passa de uma “gripezinha” e que, pelo “bem” da economia, as atuais medidas de quarentena, como o fechamento de escolas e comércio, restrição de movimentos e estratégias de distanciamento social, devem ser abandonadas.
Apesar de passados apenas cerca de três meses desde o início da epidemia de COVID-19, doença respiratória provocada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, já são muitos, muitos, muitos os estudos que indicam que sua taxa de mortalidade é bem superior à da gripe sazonal, em estimativas que vão de 33 vezes para quem tem de 20 a 29 anos, a centenas de vezes maior em faixas etárias mais avançadas. Mais que isso, a frequência e severidade das complicações da COVID-19 também são maiores que as da gripe “comum”, independentemente da idade dos afligidos, exigindo longas, custosas e complexas internações dos pacientes, sobrecarregando os sistemas de saúde com um grande número simultâneo de pacientes graves.
É para evitar esta avalanche de doentes e o consequente colapso nos serviços de atendimento médico, como observado em países como Itália e Espanha, que grande parte dos governos ao redor do mundo estabeleceu medidas de quarentena e distanciamento social. O objetivo principal dessas iniciativas não é impedir que as pessoas contraiam o novo vírus – altamente contagioso e com uma transmissão “silenciosa” via pacientes assintomáticos, é praticamente impossível conter a disseminação geral do SARS-CoV-2 sem uma vacina, que ainda deverá levar cerca de 18 meses para ficar pronta, de acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) -, mas promover o agora proverbial “achatamento da curva” de infecções, e assim reduzir o fardo sobre os sistemas de saúde.
Outros países são 'máquinas do tempo'
E é aí que o Brasil tem a grande vantagem da antevisão que Napoleão, Rommel e Lee não tiveram no enfrentamento desta crise. Com o Brasil numa, digamos, “quarta onda” da pandemia, que primeiro atingiu a China e países asiáticos, depois Europa Ocidental e Estados Unidos para, só então, chegar com mais força aqui, temos a oportunidade de aprender com os erros e acertos das estratégias adotadas em outras partes do mundo.
Assim, devemos aproveitar para usar China, Coreia do Sul, Cingapura, Itália, Espanha, França, Reino Unido, EUA como “máquinas do tempo” que nos mostram a eficácia comparativa de várias estratégias, quando e por quanto tempo elas podem e devem ser adotadas, entre outras informações. Algo como um “efeito Orloff”, em que estes países e diversas outras nações nestas regiões afetadas primeiro pelo novo coronavírus são o Brasil escapando, ou não, de uma dolorosa “ressaca” amanhã.
Uma primeira “vantagem” neste sentido o Brasil já teve. Alarmada com as notícias da deterioração da situação da pandemia em países como a Itália, parte da população brasileira, de forma voluntária, começou a adotar iniciativas de prevenção e distanciamento social relativamente cedo no processo. Diante disso, pouco mais de duas semanas depois da confirmação do primeiro caso de COVID-19 aqui, em 26 de fevereiro, já era possível observar as ruas mais vazias, e logo alguns governos locais oficializaram a quarentena com a suspensão das aulas, fechamento do comércio não essencial e outras medidas para diminuir o contato social.
Ainda é cedo para apontar quanto esta adoção relativamente precoce do distanciamento social está ajudando a atrasar ou diminuir o crescimento de casos e mortes pela COVID-19 no Brasil. O certo, porém, é que os dados disponíveis de outros lugares do mundo sugerem que, quanto mais cedo e mais rigorosas são as medidas, melhor. Em recente artigo aqui mesmo na Revista Questão de Ciência, os cientistas políticos Dalson Britto Figueiredo Filho, Antônio Fernandes e Lucas Silva, destacaram isso, comparando os casos de China e Itália, respectivamente na “primeira onda” e na “segunda onda” dos países atingidos pela pandemia e importantes “máquinas do tempo” para o Brasil.
Enquanto na China se passaram 24 dias entre o primeiro registro oficial de COVID-19 (31/12/2019) e o fechamento da região Wuhan (23/01/2020), a Itália demorou 39 dias entre o primeiro caso oficial da doença (31/01/2020) e a adoção de medidas mais rigorosas de quarentena (09/03/2020). E isso parece ter tido um impacto no número de mortos até agora (tarde de 31/03/2020) nos dois países: 3.305 na China, contra 12.428 na Itália, quase quatro vezes mais.
No Brasil, na falta de uma ação centralizada do governo federal, o período entre a confirmação do primeiro caso de COVID-19 (26/02/2020) e as primeiras medidas oficiais de contenção variaram. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o decreto restringindo as atividades data de 18/03/2020, 21 dias depois do primeiro registro da doença no país. Já no estado do Rio de Janeiro as medidas restritivas entraram em vigor um dia antes do decreto da prefeitura da capital paulista, em 17/03/2020, e só 12 dias depois da primeira confirmação da doença em território fluminense, em 05/03/2020.
Esta rapidez de algumas das localidades brasileiras atingidas pela pandemia em adotar medidas de prevenção e distanciamento social devem ajudar a frear a curva de aumento de doentes e mortos pela COVID-19 no país nas próximas semanas, ganhando um tempo precioso para o sistema de saúde se preparar melhor para o inevitável pico nas infecções.
Ganho que também pode ajudar nos preparativos para adoção pelo Brasil de mais uma estratégia de combate que outra “máquina do tempo” da pandemia no país, a Coreia do Sul, tem mostrado ser eficiente na luta contra o SARS-CoV-2: a testagem maciça da população. Quanto mais demorar para a doença avançar e o vírus se disseminar pela população e território brasileiros, mais tempo teremos para superar os gargalos na produção e disponibilidade dos testes para o vírus ou seus anticorpos no mercado nacional e internacional, condição necessária para pôr esta estratégia em prática.
Comando equivocado
Estas janelas de oportunidade de o Brasil antever, com algumas semanas, para onde e como caminha a pandemia do novo coronavírus e como enfrentá-la, no entanto, também podem facilmente se fechar nos próximos dias. E a maior ameaça a isso vem justamente do “general” que deveria tirar proveito estratégico desta antevisão, o presidente da República, Jair Bolsonaro.
Isso porque, na falta de vacina e diante da escassez de testes, as únicas opções “táticas” que restam ao nosso “comando” são as medidas de distanciamento social. E esta é uma estratégia que depende muito da adesão da “tropa”, isto é, da população como um todo, a partir da sua imposição e fiscalização pelas autoridades.
O problema é que, alheio às imagens da tragédia provocada pela COVID-19 em países como Itália e Espanha – mais ricos e supostamente com sistemas públicos de saúde melhores e mais bem preparados para enfrentar a pandemia que o do Brasil, já sobrecarregado em condições normais -, Bolsonaro tem insistido em menosprezar e subestimar a COVID-19 como uma “gripezinha”.
Mais que isso, o presidente da República não só tem se declarado contrário à quarentena e às medidas de contenção como agido contra todas as recomendações para reduzir o contato social da OMS, de epidemiologistas, médicos e especialistas em saúde pública nacionais e internacionais e de seu próprio Ministério da Saúde, como o recente “passeio” pela periferia de Brasília no último domingo.
O discurso equivocado e mau exemplo pessoal de Bolsonaro, bem como sua defesa de tratamentos não comprovados e potencialmente perigosos para a COVID-19, podem minar de forma irreversível a “obediência” da “tropa” às ordens de isolamento social. As declarações do presidente pelo afrouxamento das restrições para "salvaguardar" a economia também já começam a encontrar eco em alguns setores da sociedade, e a estimular alguns governantes locais a levantarem as medidas de contenção. Com isso, nosso “general”, tal qual um Napoleão às avessas, arrisca desperdiçar as melhores chances que o Brasil teria de evitar uma tragédia maior nesta pandemia.
Cesar Baima é jornalista