O problema do Brasil é que tem gente demais escrevendo artigos que começam com “o problema do Brasil é”. Agora, um dos problemas do Brasil é que, ao que tudo indica, ler Malba Tahan saiu de moda. Trata-se da primeira coisa que me vem à mente quando esbarro (o que, no momento, parece inevitável) em algum meme de Facebook comparando o número atual de casos ou mortes por COVID-19 aos de dengue (ou tuberculose, ou qualquer outra coisa) e insinuando que as medidas para conter o novo coronavírus são exageradas, cortina de fumaça ou intriga da oposição.
Pseudônimo adotado pelo professor brasileiro Julio Cesar de Mello e Souza (1895-1974), Ali Yezzid Izz-Edin Ibn-Salin Malba Tahan assina O Homem Que Calculava, livro de 1937 que contém aquela que talvez seja a melhor formulação, em português, da fábula de Sessa (ou Sissa), do rei Shirham (ou Iadava) da Índia e dos grãos de trigo sobre o tabuleiro de xadrez.
A mesma história, com poucas variações, pode ser lida em outras obras de popularização da matemática, como The Universal Book of Mathematics, de David Darling, e The Math Book, the Clifford Pickover. De acordo com Pickover, o registro original, por escrito, da lenda foi feito em 1256 pelo sábio árabe Abul-Abbas Ahmad Ibn Khallikan (1211-1282), e ela é citada, de modo oblíquo, na Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321).
Do que se trata? Em resumo: Sessa, um sábio, apresenta ao rei da Índia um novo jogo, a ser jogado num tabuleiro dividido em 64 casas quadradas de cores alternadas. É o jogo de xadrez! O rei se encanta com o novo esporte, e pergunta o que Sessa gostaria de receber como recompensa. Ouro? Joias? Uma sinecura?
Nada disso, responde o inventor. Ele deseja apenas trigo: a saber, um grão a ser colocado na primeira casa do tabuleiro, dois na segunda, quatro na terceira, oito na quarta... dobrando o número de grãos a cada casa, até a sexagésima-quarta. O rei olha para Sessa como se o sábio fosse um idiota e manda trazer uma saca de trigo.
No relato de Darling: “Chegando ao vigésimo quadrado, a saca estava vazia. A casa seguinte exigiu uma saca inteira só para si. Mais vinte casas, e seria necessário um número de sacas igual ao número de grãos da primeira saca!” Se houvesse trigo suficiente no mundo, ao final da operação o tabuleiro conteria 18.466.744.073.709.551.615 grãos de trigo, ou 18,5 sextilhões.
Na prosa poética de Malba Tahan, “a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base a cidade de Taligana, seria cem vezes mais alta do que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades, não produziria em dois mil séculos a quantidade de trigo que, pela vossa promessa, cabe, em pleno direito, ao jovem Sessa!” No cálculo mais preciso de David Darling, o trigo devido ao criador do jogo de xadrez “preencheria um edifício de 40 km de largura, 40 km de comprimento e 300 metros de altura”.
Se substituirmos, na fábula acima, “grão de trigo” por “infectados pelo SARS-CoV2”, entenderemos a gravidade do problema que é uma doença que se espalha em progressão geométrica, e a idiotice que é, nessas circunstâncias, dar mais atenção ao número presente de casos do que à taxa de crescimento. Claro, no mundo real, a curva exponencial não tem como durar a longo prazo; se não por outro motivo, a população é finita. Mas ela pode durar tempo suficiente para causar uma tragédia sem precedentes.
Comparando com a dengue, como o pessoal negacionista parece gostar de fazer: segundo os números do DataSUS, em 2019, o número de mortes por dengue e dengue hemorrágica no Brasil dobrou duas vezes, em intervalos aproximados de 60 dias: primeiro entre janeiro (16) e março (36), e depois entre março (36) e maio (78), antes de começar a cair. Já as mortes confirmadas por COVID-19 multiplicaram-se por 100 ao longo de dez dias, passando de uma, em 17 de março, para 114 no dia 27, e o número segue aumentando.
O total de casos, que vinha dobrando a cada dois dias, parece ter desacelerado na última semana. Mas esse é, muito provavelmente, um efeito das medidas de contenção, incluindo a quarentena imposta no estado de São Paulo. A experiência internacional mostra que, sem essas medidas, o número de casos e de mortes cresce mais depressa do que a dívida do rei da Índia para com o sábio Sessa.
Em Paraíso, terceira e última parte de sua Divina Comédia, Dante escreve que as luzes do Céu eram “em soma tal, que a do xadrez passava/Dobrando-se o algarismo infindamente”. O risco por aqui é os cemitérios acabarem lotando da mesma forma.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência