A Sociedade Criacionista Brasileira emitiu nota, nos últimos dias, distanciando-se do movimento terraplanista. Imagino que para o público regular desta Revista Questão de Ciência o fato, em si, produz uma espécie de alívio cômico, algo muito necessário nestes dias tão conturbados. Mas, para além do potencial memético do evento, há algumas questões históricas, filosóficas e teológicas envolvidas aí que não deixam de ser interessantes.
O primeiro é que, a despeito das negativas dos criacionistas, existe sim uma ala do movimento terraplanista que retira suas convicções de uma leitura literal da Bíblia, o que é também o motor principal do criacionismo, ainda que as versões mais sofisticadas da doutrina (como o “design inteligente”) tentem disfarçar o fato.
O pai do terraplanismo contemporâneo, o britânico Samuel Birley Rowbotham (1816-1884) citava a fidelidade à palavra do deus cristão como uma de suas principais motivações. Sua obra-prima, Earth Not a Globe, é pródiga em citações da Escritura, como o Salmo 136 (135, na Bíblia católica), onde se lê que deus é “Aquele que estendeu a terra sobre as águas” (Salmos, 136:6, versão protestante) ou "Ele estendeu a terra sobre as águas” (Salmos, 135:6, versão católica).
“Estender”, vai o raciocínio, sugere uma superfície plana. O que pode parecer uma leitura um pouco estrita demais de um texto poético, mas gente que acha que o mundo foi criado em seis dias, só porque a Bíblia diz, não está em boa posição para reclamar da falta de senso poético e excesso de literalismo dos outros.
Além disso, o clássico Atlas da Terra Plana (estilizado no alto deste texto), publicado em 1893 pelo americano Orlando Ferguson (1846-1911), está todo baseado em citações bíblicas, por exemplo: “pois ele firmou o mundo para que não se abale” (1 Crônicas 16:30), “se abale” aqui interpretado como “se mova”; “E o sol se deteve, e a lua parou até que o povo se vingou de seus inimigos” (Josué 10:13); “Depois disto, vi quatro anjos em pé nos quatro cantos da terra” (Apocalipse 7:1).
Enfim, não seria difícil argumentar que o mesmo movimento ideológico fundamentalista anglo-americano do fim do século 19, que serve de base para o criacionismo moderno, também está na raiz do terraplanismo.
Curiosamente, no entanto, os criacionistas não estão de todo errados quando se referem à associação entre seu movimento e o terraplanismo como uma espécie de “calúnia” anticristã.
A ideia de que, durante a Idade Média, o dogma cristão exigia crença numa Terra plana é falsa. A teologia dominante na época abraçava as ideias do filósofo grego Aristóteles (384-322 AEC), que estava muito feliz com uma Terra esférica, ainda que a preferisse imóvel, localizada no centro do Universo.
É verdade que teólogos importantes, como Agostinho de Hipona (354-430), preocupavam-se com a questão da habitabilidade das antípodas: em outras palavras, se o hemisfério terrestre oposto à Europa seria habitado por seres humanos. Mas a preocupação tinha mais a ver com o que isso diria a respeito da misericórdia divina (se deus teria feito a “maldade” de colocar almas humanas fora do alcance da mensagem de Jesus e dos apóstolos) do que com o formato preciso do planeta.
Agostinho não parece muito convencido de que a Terra é redonda (“mesmo se fôssemos acreditar, ou por algum meio racional demonstrar, que a Terra é redonda ou um globo...”, escreve o teólogo em Cidade de Deus, Livro XVI, capítulo 9), mas a questão, para ele, não tem importância doutrinária.
Existiu, é verdade, um par de pensadores cristãos da Antiguidade tardia e da era medieval que defendeu a necessidade teológica de a Terra ser plana. Um deles foi Lactâncio (250-350), que em seu livro Institutos Divinos se refere à redondeza da Terra como uma “ficção maravilhosa” e “tolice”.
Outro foi Cosmas, monge grego que viveu por volta do ano 550. Esse monge viajou pela Ásia e desenhou alguns mapas muito apreciados em sua época, mas mesmo os contemporâneos que respeitavam seu trabalho como cartógrafo achavam suas ideias terraplanistas meio malucas.
Duas opiniões isoladas, no entanto, não definem dogma ou doutrina. O mito de que o cristianismo medieval implicava, por necessidade, o terraplanismo parece ter sido lançado, de início, por protestantes que pretendiam ridicularizar a educação oferecida em escolas católicas, no século 18. Mas ateus e secularistas logo se apropriaram do mote.
Em uma biografia de Cristóvão Colombo publicada em 1828, o escritor Washington Irving (1783-1859) diz que a questão da terra plana havia sido um obstáculo para o navegador genovês vender sua ideia, de chegar às Índias navegando a oeste, à monarquia da Espanha. Irving cria uma cena em que Colombo é sabatinado por sábios católicos da corte espanhola e “à sua proposição mais simples, a forma esférica da Terra, foram opostos textos da EscrItura”.
O livro de Irving foi um best-seller, e a fábula dos sábios monges terraplanistas entrou não só no senso comum, como na literatura acadêmica, aparecendo, por exemplo, num influente artigo francês, “As Opiniões Cosmológicas dos Pais da Igreja”, de Jean Antoine Letronne (1787-1848).
Mas a principal figura da construção do mito da Terra plana como pedra angular da cristandade foi o americano Andrew Dickson White (1832-1918), cofundador e primeiro presidente da Universidade Cornell.
Diferentemente de outras instituições privadas de ensino superior dos Estados Unidos, como Harvard ou Yale, Cornell não foi fundada por religiosos e nem constava, de seu mandado original, a missão de propagar alguma fé. White tinha a intenção de deixar esse diferencial muito bem marcado, e em 1896 publicou um monumental tratado em dois volumes, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, que se tornou o paradigma do chamado “modelo do conflito” como chave para a compreensão das relações históricas entre ciência e religião.
Escrito em tom polêmico e agressivo, o tratado de White pinta, em cores forres, diversos momentos históricos em que alguma autoridade religiosa disse alguma bobagem sobre ciência (por exemplo, vetos religiosos ao uso de para-raios e a medidas de saúde pública), e concentra fogo na tentativa de demonstrar que a cristandade medieval tinha o terraplanismo como dogma.
A influência de Cosmas, principalmente, é exagerada para além de qualquer proporção com a realidade. Retomando o mito criado por Irving, White afirma ainda que “o terror” que os marinheiros sentiam de cair pela borda da Terra “foi um dos principais obstáculos à grande viagem de Colombo”.
Então, como vimos, há dois terraplanismos vinculados ao cristianismo: um, falso, inventado por secularistas no século 19 e projetado sobre a Idade Média; outro, real, consubstanciado no movimento terraplanista da atualidade, que nasceu também no século 19, só que pelas mãos de fundamentalistas cristãos: o mesmo caldo de cultura que nos deu o criacionismo. A Sociedade Criacionista Brasileira está certíssima em renegar e denunciar o primeiro, mas sua tentativa de se descolar do segundo soa mais como briga de família do que qualquer outra coisa.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência