Entre julho e setembro de 1882, Machado de Assis publicou na revista “A Estação”, em forma seriada, um conto chamado “O imortal”, que traz como protagonista um homeopata. Na época, a homeopatia era objeto de uma grande controvérsia nos jornais do Império – era o assunto da vez.
Nesse conto, o narrador machadiano relata uma história, inicialmente contada décadas antes, por um homeopata fictício, o Dr. Leão. É em sua boca que Machado põe a frase espetacular que abre a história: “– Meu pai nasceu em 1600”. Como o conto se passa em 1855, conclui-se que o pai do Dr. Leão – Rui de Leão, o “imortal” do título – teria vivido mais de duzentos anos!
Após dar a palavra ao protagonista, Machado toma as rédeas da história, para contextualizar a frase do Dr. Leão. Ele explica que este disse o que disse na ocasião de sua chegada a uma vila fluminense qualquer – “suponhamos Itaboraí ou Sapucaia”, como diz Machado –, onde “andava propagando o novo sistema”. Tendo chegado à vila “provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas”, era recebido pelo coronel e pelo tabelião locais – as autoridades a quem o Dr. Leão tinha de apresentar-se, se queria fazer proselitismo da doutrina homeopática por ali.
É diante dessa pequena, mas importante audiência que o Dr. Leão dispara a frase fantástica do início – recebida com um misto de descrença e curiosidade. Rui de Leão, segue narrando o homeopata, levava uma vida tranquila num convento pernambucano, quando este foi tomado de assalto pelos holandeses. Rui então deixa o convento, e foge sem rumo. Em suas andanças, encontra um povoado nativo, onde cai nas graças do chefe indígena. Tempos depois, o velho índio, no leito de morte, presenteia Rui de Leão com um misterioso elixir, que prometia tornar imortal a quem o bebesse.
Rui aceita o presente do moribundo – que não queria o elixir para si, por já ter visto “muita lua” –, mas de início descrê nos poderes a ele atribuídos pelo chefe. Seu ceticismo cai por terra quando Rui adoece e é desenganado pelos curandeiros locais. Em segredo, ele bebe metade do elixir, e a recuperação não tarda.
Daí em diante, o Dr. Leão narra a seus dois ouvintes, detalhadamente, as aventuras de seu pai pelos séculos. O coronel e o tabelião fazem questão de, de tempos em tempos, interromper o homeopata para expressar sua incredulidade, mas jamais perdem o interesse na história – a ponto de que Machado, a certa altura, intervém para advertir que seria melhor resumi-la. Para nós, fica o resumo do resumo – afinal, o texto de Machado está aí para o leitor tão curioso como o coronel e o tabelião –, e este é o seguinte: Rui teria eventualmente saído do Brasil para ir viver na Europa, de lá voltado ao Brasil, do Brasil de novo pra Europa, e de lá, pra cá outra vez; teria aprendido a “traduzir o padre-nosso em cinquenta idiomas”, dominado muitas ciências, amado milhares de mulheres; visto a guerra de Palmares, a revolução francesa, a vinda da família real ao Brasil; sobrevivido a facadas, tiros, golpes de guilhotina e tentativas de suicídio; trabalhado em inúmeros ofícios: de advogado a sacristão, de livreiro a traficante de escravos.
Mas a vida eterna acabaria cobrando seu preço, e disso teria sido testemunha o próprio Dr. Leão. A essa altura, ele morava só com o pai, “como dois solteirões”, no Rio de Janeiro. Rui de Leão tornara-se melancólico, amargurado por ver morrer todos a quem amava, e por saber que seria assim pela eternidade.
Seu filho já era então homeopata, e foi ouvindo-o falar da doutrina aos colegas, que o pai teve uma ideia. O resultado fica melhor narrado pelo próprio Dr. Leão:
“Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito isto, expirou.”
A homeopatia, enfim, teria curado seu pai do mal da vida eterna. Pra fechar a história, o narrador machadiano retoma a palavra:
“O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que pensassem da famosa história; mas a seriedade do médico era tão profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também definitivamente na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos.”
Vamos combinar: as “histórias” que os homeopatas desde Samuel Hahnemann – o criador da homeopatia – contam para convencer os coronéis e tabeliães deste mundo raramente são tão fantásticas quanto a do Dr. Leão. Mesmo assim, quando o assunto é persuadir os outros de que a homeopatia seria uma boa ideia, é preciso sempre ter uma “história” pra contar.
Pra ser mais exato, os homeopatas cultivam uma pluralidade de “histórias” diferentes – ou, agora sem aspas, de racionalizações que conferem plausibilidade à doutrina, aos olhos deste ou daquele espectador. O gosto do público, claro, muda com o contexto. Assim, as “histórias” que os homeopatas contam estão ligadas a tendências mais gerais, no âmbito da história das ideias.
Machado ainda estava vivo nos primeiros anos do chamado “período áureo” da homeopatia, que corresponde às três primeiras décadas do século 20. Nesse período, a capital chegou a ter um hospital e uma faculdade homeopáticas, vinculadas ao Instituto Hahnemanniano do Brasil (IHB); as revistas de homeopatia eram publicadas mensalmente, uma regularidade inédita por aqui; e alguns homeopatas chegaram a posições de relevo na política, como Joaquim Murtinho, que foi senador da República e ministro da Fazenda.
Mas nem tudo reluzia no período áureo da homeopatia. Havia inúmeras divergências entre eles. Umas das principais envolvia uma questão bem prática: a homeopatia seria ou não “coisa de médico”? Seria ou não preciso ter diploma de medicina, para exercê-la?
Muitos dos que achavam que sim já eram, claro, médicos formados. Era o caso de Murtinho, que, antes de se tornar um figurão da política, fez sua fama como “o médico de Santa Teresa” – famoso bairro carioca, onde teve um consultório homeopático da moda. Também era o caso de Licinio Cardoso, presidente do IHB em boa parte do período áureo da homeopatia; ou Nilo Cairo, influente homeopata paranaense. Além de serem homeopatas e de terem formação médica, os três tinham outra coisa comum: foram, em alguma medida, influenciados pela ideologia científica que foi moda entre nossas elites intelectuais – o positivismo. Esse mesmo, de Auguste Comte.
Em vez de contar histórias fantásticas para os coronéis e tabeliães deste mundo, homeopatas como Murtinho, Cardoso e Cairo ocupavam-se de tentar mostrar, para os seus colegas da elite médica e política, que a homeopatia seria uma “ciência positiva”, conforme a cartilha comteana. Cardoso, por exemplo, escreveu um livro em que relacionava as ideias de Hahnemann às de Comte, que chegou a ser traduzido para o francês. O período áureo da homeopatia foi também a era da homeopatia positivista – e essa “história”, ou estratégia de justificação, se decerto não convenceu a todos, bastou para convencer alguns membros da elite médica e política a crer, se não definitiva, ao menos provisoriamente na homeopatia.
Hoje, a ideia de uma “homeopatia positivista” pode causar estranheza. “Positivista” é o nome que muitos dão a quem, como eu, afirma que não há evidência confiável de que os preparados homeopáticos seriam mais que placebos. Mas os homeopatas do período áureo da homeopatia nada viam de estranho nisso. Antes, para alguns dos mais eminentes dentre eles, a verdadeira homeopatia era positivista. As outras seriam enganação.
E havia outras, claro. O período áureo da homeopatia também foi o período da homeopatia espírita – em boa medida graças ao legado de um médico chamado Bezerra de Menezes (1831-1900).
Bezerra de Menezes, apesar de ser médico de formação, ensinava a doutrina para terapeutas leigos, adeptos do kardecismo. Para eles, o diploma de medicina não fazia falta: no momento da consulta, eles se diziam capazes de receber o espírito dos grandes homeopatas do passado, como Benoît Mure e Vicente Martins. Nascia então a figura do médium receitista, que, instruído pelos homeopatas do além, receitava homeopatia para seus pacientes.
Os médiuns receitistas fizeram sucesso no país. Só em 1904, a Federação Espírita Brasileira, que Bezerra de Menezes chegou a presidir, distribuiu gratuitamente mais de cem mil prescrições homeopáticas; em 1910, esse número praticamente quadruplica. As farmácias homeopáticas, não raro vinculadas a centros espíritas, floresceram no período.
Para os homeopatas positivistas, os espíritas seriam “charlatães”. A verdadeira homeopatia seria científica, conforme a ideia comteana de ciência. Mas isso não importava para os discípulos de Bezerra de Menezes: seus pacientes, muitos dos quais vinham das camadas populares, não estavam nem aí pra Comte. Só mesmo os membros da elite médica e política importavam-se com Comte; só pra eles podia colar a “história” da homeopatia positivista. Num tempo em que ser atendido por médicos era um privilégio, os seguidores de Bezerra de Menezes convenceram muitos pacientes com uma “história” diferente da contada por Licinio Cardoso e companhia – uma “história” estruturada em torno das ideias de Allan Kardec.
Hoje, as ideias de Kardec, e principalmente, as de Comte já não têm a força que tiveram no período áureo da homeopatia. Mirraram tanto a homeopatia positivista como a espírita. Pra ser mais exato, a afinidade entre homeopatia e kardecismo sobrevive: o atual presidente da Associação Médico-Espírita do Brasil é um médico homeopata, e há editoras espíritas que publicam livros sobre homeopatia. No entanto, a figura do médium receitista saiu de cena faz tempo.
O que persiste é a necessidade do homeopata de convencer não só os coronéis e tabeliões deste mundo, como também os próprios pacientes – o que é crucial, num contexto em que estes têm alguma liberdade pra escolher sua abordagem terapêutica.
Com a mudança dos tempos, mudam também as histórias que os homeopatas contam, pra tentar convencer os outros de que a homeopatia seria uma boa ideia. Ora a homeopatia é uma “medicina do sujeito”, com sua “episteme” própria (em alusão mais ou menos vaga às ideias de Foucault); ora funciona até pra fazer as vaquinhas darem mais leite, ou engordar frangos e torná-los mais rentáveis (como garantem alguns homeopatas veterinários). Ora é uma terapêutica mais “natural”, contrastando com os medicamentos “artificiais” da indústria farmacêutica; ora pode ser testada em ratos Wistar e placas de Petri (ainda que os artigos que relatam tais experimentos só costumem ser aceitos pra publicação em revistas de homeopatia). E há, claro, os relatos de curas fantásticas, e as fotos impactantes de crianças antes e depois do tratamento com homeopatia.
Por mais diferentes que sejam tais “histórias”, elas sempre convergem num ponto: visam nos convencer de que a cura dos nossos males estaria em substâncias como o ouro, o sal de cozinha ou a beladona diluídos várias vezes em álcool e água – tantas vezes, que no fim já não resta um traço sequer de ouro, sal de cozinha ou beladona na solução obtida –, e depois impregnados em bolinhas de açúcar de leite.
E o ponto é que talvez essa simplesmente talvez não seja uma boa ideia. Más ideias, claro, podem render boas histórias – o que se aplica não só à história de Machado, mas também às gestadas pela imaginação dos próprios homeopatas, que se aventuraram por mundos conceituais afinal tão diversos como os de Comte, Kardec ou mesmo Foucault, em busca dos meios pra salvar sua doutrina do esquecimento.
Podemos muito bem aprender a apreciar essas histórias, e preservar dessa forma a memória da homeopatia. Mas se prezamos por um senso crítico mais aguçado que o do coronel e do tabelião machadianos, já é hora de deixar de pôr em prática essas ideias.
Lenin Bicudo Bárbara é pesquisador de pós-doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo