“Para câncer, homeopatia
Para dor de dente, âmbar
Para ansiedade, floral
Para a fome no mundo, agroecologia
Para a mulher que aborta, repolho”
(Em referência à letra da belíssima música “Diariamente”, de Jose Reis e Jose Fernando Gomes dos Reis)
O editorial do dia 17 de fevereiro de 2019, O Escândalo da pseudociência na universidade pública, da Revista Questão de Ciência, remete a algo que tem sido constatado na agronomia brasileira: a tentativa de desqualificar os esforços da agricultura moderna para se tornar cada vez mais amigável ao ambiente, e de enaltecer a agroecologia como proposta capaz de substituí-la, sem que para isso se apresente uma proposta de programa experimental comparativo, ou mesmo que se tenha qualquer estudo de viabilidade microeconômica. Portanto, supomos que, da mesma forma que os tratamentos alternativos invadem a medicina com cursos, disciplinas etc., a agroecologia tem feito o mesmo com a agronomia.
O primeiro artigo instigante com a tentativa de demonstrar que falta estatura de ciência à agroecologia é de autoria do sociólogo rural Zander Navarro, Agroecologia: as coisas em seu lugar (A agronomia brasileira visita a terra dos duendes), publicado em 2013, onde se encontra um detalhado estudo sobre o termo e a atividade no Brasil. Trata-se de um trabalho sociológico que ajuda a compreender como algo que não é ciência consegue tanto espaço nas políticas públicas brasileiras. Como o artigo expõe as fragilidades da dita “agroecologia”, o editor da revista convidou mais de uma dezena de defensores da prática para integrar um dossiê com trabalhos que analisassem o texto de Navarro. Nenhum aceitou.
No entanto, um dossiê com vários artigos de militantes da agroecologia foi publicado na revista Ciência e Cultura da SBPC. Em seguida, Navarro foi convidado a organizar um dossiê com vários artigos de autoria de diversos pesquisadores, em resposta.
Aos desavisados, a palavra agroecologia sugere uma bela união entre a ecologia e a agronomia. No entanto, não há uma definição precisa do termo. O que se tem, no máximo, é uma definição que aparece no estatuto de uma associação composta por inúmeras ONGs: “define-se como ciência, movimento político e prática social”. A confusão é tamanha que é possível encontrar, militando na área, “polidoutores” em “Sociologia e Agroecologia” profetizando sobre um hipotético “mundo melhor”.
De acordo com essa definição mambembe, agroecologia é um tripé no qual conhecimentos universais elementares que se aplicam a hortas de fundo de quintal são associados a dogmas políticos e a uma hipotética e utópica “dinâmica transformadora das relações sociais nos sistemas agroalimentares”.
Mas é possível também encontrar algumas outras tentativas de definir o que se quer dizer com “agroecologia”: “é um campo de conhecimento que articula e integra saberes populares e científicos”; é a própria resistência dos camponeses; “sem feminismo não há agroecologia”. Agroecologia é amor; agroecologia é democracia. Ou que:
[...] Agroecologia ou agricultura natural é antes de tudo um sentimento bom, um sentimento de agradecimento a Deus, um sentimento de estar vivo e amar todas as formas de vida desse planeta [...]. Agroecologia não é plantar para vender, e sim plantar para si e sua família, e para não ter que comprar produtos contaminados por agrotóxicos. Vender sim, mas vender somente o excedente [...]. Praticar agroecologia é respeitar os nossos antepassados, e respeitar o conhecimento e práticas agrícolas utilizadas pelos primeiros agricultores desse planeta. É olhar para o céu todos os dias, ver a lua, e escutar o que ela quer nos falar [...]. Agroecologia é isso, é respeito a Deus e todas as formas de vida de sua criação, é não caçar, é não derrubar e queimar as matas, é não fazer carvoeiras, é não usar agrotóxicos, adubos químicos e qualquer produto industrial que contamine o meio ambiente [...]. Praticar Agroecologia é agradecer a Deus, quando ocorrem pragas e doenças na nossa lavoura (pulgão, cochonilha, lagarta, formiga...), pois essas pragas estão aí para nos alertar que tem alguma coisa desequilibrada na nossa lavoura por erros que estamos cometendo com o solo, práticas e técnicas inadequadas [...]. Pronto, é só isso, daí pra frente é só utilizar em seu benefício e da sua família todos os recursos naturais que estão ao seu redor [...] (EBDA, 2011, citado aqui, na página 16).
Esse tipo de abordagem seria impensável em outros campos como a fitopatologia e a entomologia, mas como não envolve maiores riscos, a não ser o da sublimação e do desperdício de dinheiro público, é permito na agroecologia. Alguns exemplos estão relacionados com educação em ciências agrárias, com pesquisa e com a assistência técnica e extensão rural.
A crítica à agricultura moderna é extremamente necessária. Ocorre há quase 60 anos, se considerarmos a obra Primavera Silenciosa, de Rachel Carson. E, por isso mesmo, pesquisadores vêm se empenhando para obter um nível de maior sustentabilidade na produção agrícola, com especial foco na conservação dos recursos naturais e na redução do consumo de energia. No entanto, é sempre fundamental reafirmar que a verdadeira ciência agrária é conduzida pelo método científico (com reprodutibilidade, controle de variáveis, análise estatística etc.).
E a agroecologia? Que dizer de uma suposta área de conhecimento que abstrai problemas como abastecimento da população e obtenção de saldos de alimento exportáveis? Que define entre seus objetivos interferir na correlação de forças de uma luta de classes imaginária entre o agronegócio e o “campesinato”, que só adquire expressão numérica e social em hipóteses jamais testadas? Que defende uma paridade em parcerias de pesquisa entre profissionais de ciência e habitantes do meio rural, demonstrando incapacidade de perceber tanto os limites e quanto a importância do senso comum para a pesquisa científica? Que se recusa a proceder qualquer avaliação econômica de seus sistemas à luz do mercado, e considerando os custos de oportunidade? Que rejeita a ideia de apresentar critérios de validação de suas “pesquisas”, recusa-se a descrever com clareza métodos e limites de aproximação que permitam julgar o significado dos resultados? Que mistura tudo, como numa salada – lua, feminismo, campesino e deus?
Essas condutas retiram da agroecologia qualquer validade universal e toda a possibilidade de se apresentar claramente como ciência, pelo menos pelos critérios globalmente aceitos do que seja ciência. Parece mais uma religião. Aliás, há associação com religiões, conforme se verifica no artigo “Cosmovisão Bantu e natureza: elementos para compreender a Agroecologia nos terreiros”, apresentado no Tema Gerador: Construção do Conhecimento Agroecológico do 10º Congresso Brasileiro de Agroecologia em 2017, que contou com a presença de 5.000 pessoas.
Por fim, o que dizer dos seus militantes, que, sistematicamente, fogem do debate, fundamental para o avanço da ciência? Preferem debater entre si, quando se reúnem em eventos nacionais e regionais e tentam legitimar essa militância como ciência, sempre contando com recursos públicos e agradecendo aos deuses da agroecologia com suas danças sagradas.
Num cenário como o atual, de escassez e estrangulamento de recursos para a educação e a pesquisa, é cada vez mais essencial que cada real acabe bem aplicado -- seja no desenvolvimento de práticas bem embasadas na melhor ciência disponível, seja na pesquisa em torno de temas bem definidos e de boa estatura teórica. A aplicação de verbas públicas na promoção de pseudociências não só subtrai recursos da pesquisa e do ensino realmente necessários, como ainda traz o risco de criar, na opinião pública, um nivelamento perigoso e uma sensação generalizada de desperdício de tempo e dinheiro.
Maria Thereza Macedo Pedroso é pesquisadora da Embrapa Hortaliças, doutora em ciências sociais pela Universidade de Brasília (UnB)
Amilcar Baiardi é professor da Universidade Católica do Salvador e professor titular aposentado da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, engenheiro agrônomo e doutor em ciências humanas pela Universidade Estadual de Campinas