Entre as décadas de 1950 e 1980 existiu na cidade de Nova York um grupo de pessoas que decidiu abandonar a monogamia e a noção tradicional de família: mulheres que queriam ter filhos eram estimuladas a fazer sexo com um grande número de parceiros, de modo a obscurecer ao máximo a identidade dos pais. Integrantes de casais que se mostravam muito apegados e que preferiam fazer sexo apenas entre si eram advertidos e criticados. Crianças eram criadas de forma comunal e, de preferência, o mais longe possível dos pais biológicos.
No início, esse modelo alternativo de vida era adotado e mantido de forma mais ou menos livre e voluntária. Mas, com o passar do tempo e a concentração cada vez maior de carisma e poder nas mãos do líder, a pressão psicológica, emocional e dos pares para obediência e conformidade às regras do grupo foi assumindo um tom cada vez mais autoritário.
A liderança passou a arrogar-se a prerrogativa de autorizar (ou não) os membros a ter filhos; as mulheres que se recusavam a fazer sexo com qualquer colega da comunidade que solicitasse (e, especialmente, com o líder) eram ostracizadas. Uma garota reticente ouviu a seguinte ordem: “Fecha a boca e abre as pernas”.
Os integrantes tinham vidas normais durante o dia – médicos, advogados, artistas, escritores –, mas à noite retornavam para os apartamentos comunitários do coletivo. Nesses ambientes, desvios das normas e expectativas do grupo eram registradas e apontadas por delatores. Delinquentes corriam o risco de execração pública ou expulsão.
Soa como uma seita religiosa. Mas era psicoterapia. A comunidade era composta por pacientes, estudantes e terapeutas ligados ao Instituto Sullivaniano de Pesquisa em Psicanálise, grupo estabelecido em Manhattan em 1957, dissolvido em 1991, com a morte de seu fundador e guru supremo. A história é contada num livro lançado recentemente, “The Sullivanians”, de Alexander Stille, professor de Jornalismo na Universidade de Columbia.
Seus fundadores, a psiquiatra e psicanalista Jane Pearce e seu colega (e, em diferentes momentos, amante, marido e adversário) Saul Newton, tiraram o nome do grupo e sua inspiração inicial do trabalho do psicanalista americano Harry Stack Sullivan, falecido quase dez anos antes de o Instituto Sullivaniano abrir as portas.
Mamãe
Sullivan, um neo-freudiano, enfatizava a importância psicológica das relações adultas de amizade e coleguismo, para além do relacionamento com os pais na infância, foco da ortodoxia freudiana. Na descrição sucinta oferecida por Stille, “Sullivan acreditava que o crescimento pessoal vinha dos relacionamentos com terceiros, mesmo na vida adulta”. Ainda nas palavras de Stille, Pearce e Newton “levaram essas ideias muito além”. Basicamente, afirmavam que a família era uma estrutura tóxica, e que a pior coisa que pode acontecer com uma criança é ser criada pela própria mãe biológica. “Pearce e Newton acreditavam que a família nuclear causa a maioria dos problemas psicológicos e que a mãe, inevitavelmente, esmaga a vitalidade dos filhos”.
Lida assim, no texto objetivo do jornalista-historiador, a frase “a mãe, inevitavelmente, esmaga a vitalidade dos filhos” soa como a velha piada cansada de que, do ponto de vista da tradição psicanalítica, todos os problemas acabam, sempre, deixando um rastro que leva até a genitora. Mas isso não é exatamente um clichê ou uma piada. É muito mais uma redução ao absurdo, aquilo que resta depois que o papo furado e os floreios retóricos são postos entre parênteses e, finalmente, temos uma visão clara do quê está, de fato, sendo dito, sem rodeios.
Considere-se, por exemplo, este trecho de uma resenha de 1964, extremamente positiva, do livro de Pearce e Newton, “The Conditions of Human Growth”, publicado em 1963:
“...o sistema-self é apresentado aqui agindo (...) na tentativa de impedir a erupção das ansiedades insuportáveis causadas ao bebê pelo inevitável afastamento e rejeição, pela mãe, de certos aspectos de sua vitalidade. Assim, desde o início, a socialização torna-se uma forma de hipocrisia inconsciente e dolorosa (...). O clichê de não jogar fora o bebê junto com a água do banho não é muito divertido para os bebês, principalmente se suas mães são sensíveis à sujeira ou à nudez”.
Lembremo-nos de que nada – absolutamente nada – disso tem a menor base em evidência. Como sói acontecer na tradição psicanalítica, o que se têm são elucubrações de poltrona, supostos insights introspectivos baseados em conceitos que derivam de elucubrações de poltrona e insights anteriores, às vezes ilustrados por relatos de caso, sempre de credibilidade duvidosa e escolhidos a dedo.
Cultura analítica
Boa parte de “The Sullivanians” é composta por depoimentos de ex-membros do grupo, alguns, sobreviventes traumatizados, outros, com memórias mais positivas. Todos, no entanto, apontam a inflação do ego de Saul Newton, o caráter autocrático, cruel e misógino de sua personalidade, sua megalomania e paranoia. Há o momento em que passa a exigir sexo oral das pacientes, durante as sessões de terapia, declarando a violação parte da terapia. Há o momento em que aplica um “golpe de Estado” que exclui Jane Pearce da liderança do Instituto.
O colapso da comunidade sullivaniana começou nos anos 1980, depois que uma jovem mãe, incapaz de aceitar a separação do bebê imposta pela doutrina do grupo, “sequestrou” a própria filha e em seguida foi à imprensa, em busca de apoio popular e das autoridades.
Uma questão que Stille apenas tangencia em seu livro é até que ponto a cultura psicanalítica facilitou, viabilizou ou impulsionou a seita sullivaniana. Por “cultura psicanalítica” me refiro ao milieu formado pelos artistas, intelectuais, profissionais etc., unidos pela reverência à imagem, acadêmica ou popular, do que a psicanálise é ou deve ser, sua aura de autoridade e suas pretensões infladas de validade; uma atmosfera onde o que se respira são ideias e palavras de Sigmund Freud, tal como filtradas por outros intelectuais, pensadores e pela cultura popular; um ambiente em que essas ideias, palavras e suas múltiplas versões passam a fazer parte do léxico cotidiano e são aceitas como parte do senso-comum da sociedade culta.
“Não é coincidência que o experimento sullivaniano tenha começado numa época em que a psicanálise estava no auge de seu prestígio”, escreve o jornalista. E mais adiante: “Em meados do século 20, a psicanálise atingiu o ponto culminante de seu prestígio, popularidade e autoridade, especialmente nos Estados Unidos (...) a revista Time pôs Freud na capa três vezes entre 1924 e 1956”.
Logo no início, nos anos 1950, os sullivanianos tiveram seu momento de moda cultural: em 1955, Clement Greenberg, então o mais influente crítico de arte de Nova York, começou a se tratar com um discípulo de Saul Newton e ficou encantado.
Numa época em que era – parafraseando uma historiadora de arte entrevistada por Stille – quase impossível ser levado socialmente a sério, como artista ou intelectual, sem passar por um divã, o selo de aprovação de Greenberg deu aos sullivanianos, antes mesmo de o instituto ser formalizado, um ar chique, “hip”. Jackson Pollock, enfrentando uma crise criativa, resolveu se tratar com um terapeuta sullivaniano, seguindo o que pode ser descrito como uma enfática sugestão de “Clem” Greenberg.
Descrevendo a cena do Upper Wset Side, uma parte de Manhattan preferida por músicos, artistas e jornalistas na década de 1950, Stille escreve: “A área estava apinhada de intelectuais e psiquiatras: uma piada comum era que se você jogasse algo pela janela no Upper West Side, era provável acertar um analista”.
À direita do Pai
Fanatismo, isolamento, desconexão da realidade, obediência cega e abjeta ao líder-guru – essas são patologias normalmente associadas à religião, ao esoterismo ou à ideologia política. A ideia de psicoterapia como matéria-prima de uma seita fanática parece difícil de processar. Mas a psicanálise tem características que a tornam vulnerável a esse tipo de degeneração.
O psicólogo Robert Jay Lifton, um estudioso dos sistemas de “reforma de pensamento” – “lavagem cerebral” seria um termo mais melodramático – identifica duas características que sempre são encontradas, de modo conjunto ou separado, na formação de movimentos sectários. Um é o totalismo ideológico, definido como “conjunto de ideias tudo-ou-nada, e que alegam conter nada menos do que a verdade e a virtude absolutas”. Outra, a presença do guru onisciente e infalível ou, na definição de Lifton, um “predador mental”.
Que a doutrina psicanalítica – tanto a original de Freud quanto suas dissidências mais populares – tem pretensões totalistas é muito difícil de negar. Para quem realmente a leva sério, a psicanálise é a chave interpretativa que abre não apenas as portas da psicopatologia, mas de todos os comportamentos humanos, da conjuntura político-econômica e da própria essência da civilização.
A predisposição da psicanálise em produzir gurus venerados como oniscientes, alvos de idolatria, é também dado histórico, a começar pelo próprio Sigmund Freud, mas não se limitando a ele. A estenógrafa encarregada de anotar os seminários de Jacques Lacan, Maria Pierrakos, descreve, num opúsculo autobiográfico (“A ‘Batedora’ de Lacan”) e em termos dignos de uma narrativa do Novo Testamento, o clima que cercava as falas do teórico francês: “... o Mestre chega, sobe no palco e começa a falar; um silêncio místico se instala (...) seria possível perder uma única palavra? (...) Sobre o palco, apenas uns poucos privilegiados (...) vi subir à direita do Pai um discípulo muito querido...”.
Bula
Em uma famosa série de palestras proferida em 1975 (“A Nostalgia pelo Absoluto”), um dos grandes intelectuais do século 20, George Steiner, pôs o trabalho de Freud em sua lista de “meta-religiões” ou “mitologias”, sistemas intelectuais usados para preencher o vácuo emocional e social deixado pela perda de prestígio do dogmatismo cristão no Ocidente.
Steiner elenca as características dessas meta-religiões: são “totalizantes”; têm, em sua concepção, uma “visão profética”, uma narrativa de origem com um gênio-herói como protagonista; esse gênio-herói estabelece um grupo de discípulos fiéis, do qual se desprendem alguns hereges; são sistemas dotados de um esquema simbólico próprio, com jargão, emblemas e metáforas que lhes são específicos.
“Esses grandes movimentos, esses grandes gestos da imaginação, que tentaram substituir a religião no Ocidente, e o Cristianismo em particular, são muito semelhantes às igrejas, à teologia que buscam substituir”, aponta.
Steiner não está sozinho. O filósofo e antropólogo Ernest Gellner, em seu livro “O Movimento Psicanalítico”, também acusa a psicanálise de ser uma religião disfarçada: com ironia, diz que a história oficial do movimento poderia muito bem se chamar “A Vida e a Paixão de São Sigmund” (a casa em que Freud viveu em Londres, convertida em museu, certamente lembra um santuário repleto de relíquias. A foto que ilustra este artigo é do consultório, preservado hoje como era nos anos 1930). Não deve nos espantar, portanto, que a semelhança entre psicanálise e religião, detectada por Steiner, Gellner e tantos outros, inclua a tendência, encontrada no Cristianismo, no Islã e nos mais variados credos de, vez ou outra, inspirar fanatismos.
De qualquer modo, trata-se de um risco curioso para algo que se apresenta como proposta terapêutica. Se psicoterapia viesse com bula, poderia entrar na lista de possíveis efeitos adversos a observar com cuidado.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)