Quando Baby das Nações (ex-Baby do Brasil, ex-Baby Consuelo) decidiu pregar a iminência do apocalipse durante o carnaval deste ano, ela estava – talvez inadvertidamente – marcando o aniversário de cinco séculos de uma onda de profunda preocupação (incluindo alguns momentos de pânico generalizado) com a iminência de um Segundo Dilúvio, uma loucura coletiva aguda que tomou conta de partes da Europa em – veja só – fevereiro de 1524.
Há relatos de pânico generalizado na Alemanha, que passava pelas convulsões culturais e religiosas que iam desembocando na Reforma Protestante, e de milhares de pessoas fugindo das ruas de Londres em busca de terreno elevado. Charles Mackay (1814-1889), no sempre instrutivo “Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds”, relata que “A cidade fervilhava na época com videntes e astrólogos, que eram consultados diariamente por pessoas de todas as classes sociais”, e que “em junho de 1523, vários deles vieram a prever que, no primeiro dia de fevereiro de 1524, as águas do Tâmisa subiriam de tal forma que inundariam toda a cidade e arrasariam dez mil casas”.
Mackay segue descrevendo o resultado:
“Em janeiro, viam-se multidões de trabalhadores, seguidos por mulheres e filhos, dirigindo-se a pé para aldeias quinze ou trinta quilômetros distantes, para aguardar a catástrofe. Também se viam pessoas de classe superior, em carroças e outros veículos, na mesma missão. Em meados de janeiro, pelo menos vinte mil pessoas tinham abandonado a cidade condenada, deixando apenas as paredes nuas das casas para serem varridas pelas cheias”.
O jornalista acrescenta que, quando ficou claro que não haveria enchente, os astrólogos e videntes escaparam de ser linchados ao pedir desculpas por um erro de cálculo – a tragédia do Tâmisa na verdade iria ocorrer em 1624, um equívoco de meros 100 anos, portanto; e numa data em quem nenhum deles estaria por perto para ser cobrado caso o rio permanecesse (como permaneceu) em seu leito.
Voltaire e as arcas
A perda do controle sobre a própria reputação é um pesadelo que atormenta a todos, anônimos e celebridades, neste mundo de redes sociais, em que fofocas e insinuações maldosas se propagam pelo globo à velocidade da luz. Em menor escala, também podia ser um problema no século 16, quando a imprensa, recém-introduzida na Europa, fazia voar panfletos de todo tipo. Vejamos, por exemplo, o caso de Johannes Stöffler (1452-1531), matemático, astrônomo e geógrafo alemão, professor da Universidade de Tubinga, onde teve entre seus alunos o futuro líder da Reforma Philipp Melanchton (1497-1560).
Em 1499, Stöffler e outro astrônomo, Jacob Pflaum, publicaram o livro “Almanach Nova”, que registrava a posição prevista de todos os planetas então conhecidos pelos 33 anos seguintes. Uma das informações contidas na obra era a de que, em fevereiro de 1524, todos os planetas estariam juntos na constelação de Peixes. Sendo Peixes um signo de água, alguém – crucialmente, não Stöffler – decidiu que o encontro planetário marcaria um Segundo Dilúvio e a destruição do mundo.
De acordo com a “Biographical Encyclopedia of Astronomers”, entre 1499 e 1524 mais de 160 panfletos foram publicados na Europa debatendo e discutindo o apocalipse aquático iminente, muitos deles usando o nome de Stöffler, e sua reputação como professor de matemática e astronomia, para escorar o alarmismo. Só que Stöffler não havia dito nada sobre o fim do mundo, apenas registrado a conjunção. A despeito disso, seu nome e reputação ficaram de tal forma amarrados ao vaticínio que ele teve de escrever outro livro, “Expurgatio”, publicado em 1523, para repudiar formalmente qualquer associação com a profecia. Diz o verbete na “Biographical Encyclopedia”:
“Stöffler destacou, no ‘Expurgatio’, que em suas aulas de astronomia sempre criticara as previsões vãs e frívolas, desprovidas de base científica, feitas por alguns astrônomos de seu tempo. Negou que a Grande Conjunção em Peixes de 1524 significaria o fim do mundo ou um Dilúvio Universal, fenômenos que não são previstos no ‘Almanach Nova’”.
Que efeito teve o esclarecimento? Virtualmente, nenhum. Há relatos de que em 1524, em partes da Europa, nobres e outras figuras abastadas começaram a construir arcas e barcos para escapar do dilúvio que “o grande matemático” havia predito: algumas fontes dão conta de que um certo conde alemão mandara fazer uma luxuosa arca de três andares para si. Afinado ao espírito dos tempos, Martinho Lutero (1483-1546) fazia pregações exortando o povo a usar o medo do fim do mundo como combustível para a conversão.
Mais de duzentos anos depois, em 1764, Stöffler ainda era citado por Voltaire (1694-1778), no “Dicionário Filosófico”, como grande exemplo da tolice da astrologia e “profeta do dilúvio universal”. Até hoje, diversos artigos e livros sobre profecias seguem incluindo Stöffler no rol dos apocalípticos frustrados. O que só vem a mostrar que, seja em tipo móveis ou em ondas de WiFi, o erro tende a viajar melhor e a chegar mais longe do que a errata.
Carnaval
O furacão apocalíptico que se formou em torno do nome de Stöffler era parte de uma sensação generalizada de crise social e espiritual que fervilhava na Alemanha da época e que viria a desembocar na Reforma (Lutero havia sido excomungado da Igreja Católica em 1521). O historiador Robin Barnes, no livro “Astrology and Reformation”, menciona “vários milhares de documentos, desde registos municipais a cartas privadas e panfletos de grande circulação, que refletem diretamente ou fazem referência à percepção comum de colapso, a previsões de desastre e a visões de um Juízo iminente”.
Embora a profecia atribuída a Stöffler tenha circulado por toda a Europa, Barnes comenta que o pânico mais profundo ficou limitado à esfera de cultura germânica. Na Itália, segundo a historiadora Ottavia Niccoli, as notícias do fim do mundo viraram brincadeira e foram assimiladas ao carnaval (naquele ano, a Quinta-Feira Gorda, primeiro dia da festa, caiu em 4 de fevereiro).
Niccoli, em “Profecia e Povo na Itália Renascentista”, conta que em 1524 o dilúvio foi adotado como tema do carnaval de Roma, que pôs na rua uma alegoria da Arca de Noé. Uma das músicas compostas especialmente para a festa tinha versos que, numa tradução não muito inspirada (minha), diziam algo assim:
“Lindas mulheres, rogamos/Vinde conosco ficar/Porque o que não podemos/Sozinhos fazer/Convosco faremos/Não percais tempo, pois/O dilúvio está a chegar/Temos instrumentos/Para vosso coração no seio alegrar/Se neles deleitar-vos/Felizes ficaremos”.
Em Florença, Nicolau Maquiavel (1469-1527), aquele mesmo, compôs alguns versos carnavalescos de qualidade duvidosa fazendo duplo sentido com a expressão “ficar por cima” (em terreno elevado, fugindo do dilúvio; ou no ato sexual).
O que mostra que o espírito das marchinhas e da festa cruza séculos e mares. Além disso, o que também parece ter cruzado meio milênio, e o Oceano Atlântico, é a constatação de que nenhuma profecia apocalíptica é levada a sério, no lugar e hora em que se leva a sério o carnaval.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)