Décadas atrás, um estudo mostrou que pessoas versadas em astrologia tendiam a preencher questionários de personalidade de forma compatível com o estereótipo de seus signos solares (capricornianos frios, arianos ousados, virginianos perfeccionistas e assim por diante), efeito não observado quando os questionários eram preenchidos por gente que entendia muito pouco, ou nada, do suposto “poder” dos astros.
O trabalho (descrito em “Astrology: Science or Superstition”, de Eysenck e Nias) exemplifica a tendência humana de internalizar e expressar – ao menos, em certas condições e situações – características que talvez não sejam autênticas, mas que de algum modo são “esperadas” de acordo com o grupo em que nos colocamos (ou somos colocados), mesmo que a caracterização seja totalmente arbitrária, como no caso dos signos astrológicos.
Suspeito que algo muito parecido começa a acontecer no momento em que o jovem vestibulando se declara “de Humanas”, “de Biológicas” ou “de Exatas”: o estereótipo passa a penetrar por baixo da pele, para aflorar mais tarde em resposta a estímulos, demandas, irritações e provocações. E incluído no estereótipo de cada área encontramos uma visão e um afeto – ambos estereotipados, é claro – das demais.
No caso das Humanas, o molde de visão e afeto embute um aspecto negativo que mistura ressentimento, desprezo e paranoia em relação aos outros campos. Ressentimento porque, frente ao senso-comum, Exatas e Biológicas são “mais levadas a sério”, consideradas “mais importantes” e, objetivamente, recebem mais atenção (e verbas). Desprezo porque são as Humanas, afinal, que se debruçam sobre As Grandes Questões da Humanidade, enquanto os outros apenas constroem brinquedos e se divertem com vidrinhos coloridos. E paranoia porque, volta e meia, parece que querem se meter na “nossa” área, com uma conversa esquisita de números, testes controlados, equações e (vade retro!) genes.
Como a linguagem de denúncia do colonialismo anda em voga, até circulam por aí denúncias de “imperialismo” epistêmico.
Dividir para conquistar
Essa face obscurantista do estereótipo é facilmente ativada quando algum setor dentro das Humanas recebe cobranças de rigor metodológico que considera indevidas. A psicanálise é especialmente adepta do truque, principalmente porque alguns de seus grandes teóricos não hesitam em apontá-la como a chave fundamental de todo o conhecimento humanístico (tendência, diga-se de passagem, inaugurada por Sigmund Freud em suas tentativas de fazer “antropologia de poltrona”, como no infame “Totem e Tabu”). Nos anos 1960, Kurt Eissler escrevia, sem uma ponta sequer de ironia, que
“... se a sociedade, a ciência e a pesquisa fossem organizadas segundo o princípio da maximização do retorno sobre o investimento, uma Academia do Homem já teria sido fundada há tempos, na linha indiretamente sugerida por Freud. É aparente que todos os vários ramos das Humanidades precisam ser reescritos de acordo com o novo conhecimento que a psicanálise trouxe à luz...”
Pois é. Mas, a despeito do entusiasmo – e de essa conversa aparentemente ter colado em departamentos de Humanas de diversas partes do Brasil –, o fato é que dentro das Ciências Humanas e Sociais há modelos teóricos, técnicas, métodos de avaliação de evidência e padrões de rigor empírico totalmente independentes da psicanálise, e muito superiores a qualquer coisa que ela já tenha oferecido ou, provavelmente, possa vir a oferecer. Existem manuais brasileiros de métodos quantitativos em Ciência Política, por exemplo; e a própria Psicologia extra-psicanalítica mantém uma relação riquíssima (ainda que às vezes conturbada) com a inferência estatística.
A atitude científica – de respeito pelo que a realidade diz quanto interrogada, de busca honesta e imparcial por evidência, adaptando teorias aos fatos, e não o contrário – não exige, necessariamente, números, gráficos e tabelas. Um de meus livros favoritos é “The Esoteric Scene, Cultic Millieu and Occult Tarot”, em que o antropólogo americano Danny Jorgensen descreve sua pesquisa etnográfica numa comunidade esotérica do interior dos Estados Unidos.
O fascinante é que Jorgensen parte de um ponto de vista que poderia ser chamado de pós-moderno. “Não existem fatos ou realidades objetivas para além da interpretação humana deles. Nesse sentido, todas as interpretações são igualmente reais”, escreve ele. Mas logo em seguida, emenda: “Isso não é o mesmo que dizer que todas as interpretações e perspectivas são igualmente plausíveis”. E aí define seus critérios: “A plausibilidade e adequação de uma interpretação sociológica são avaliadas, portanto, em termos de o quanto são boas em descrever e exibir as interpretações da realidade [do grupo estudado]”.
Como se mede esse “o quanto são boas”? Alguns pontos, todos empiricamente verificáveis: “Descrições baseadas na experiência direta de, participação em, e observação em primeira mão das crenças, práticas e atividades são melhores que outras derivadas por outros meios (...) Descrições que permitem a um forasteiro agir como, e se fazer passar por, um membro [do grupo] sugerem plausibilidade e adequação consideráveis”.
Mesmo num enquadramento aparentemente relativista e pós-moderno, portanto, é possível construir critérios de adequação empírica que permitem preservar o que há de essencial no ethos científico: dado um mapa (isto é, a descrição de uma parte da realidade), deve haver ao menos a indicação de um modo imparcial e objetivo de verificar se, de fato, corresponde ao território – e a disposição honesta de redesenhá-lo, caso necessário.
Retrospectivo
Nesse aspecto, a psicanálise não tem nada – absolutamente nada – a ensinar às Humanas ou às Ciências em geral, a despeito de alegações grandiloquentes em contrário. Morris N. Eagle, ex-presidente da Divisão de Psicanálise da Associação de Psicologia dos Estados Unidos, em capítulo publicado em 2019 no “Oxford Handbook of Philosophy and Psychoanalysis”, lamenta que:
“...a atitude quanto à pesquisa (...) geralmente vai da indiferença à hostilidade; ela é buscada apenas por seu valor demonstrativo e de relações públicas (...) em suma, no que diz respeito ao ethos psicanalítico, o conjunto de atitudes e hábitos mentais dominante entre psicanalistas e normativo nos institutos psicanalíticos é de resistência à investigação sistemática de processos e desfechos terapêuticos. Tais investigações, quando acontecem, limitam-se à busca de confirmações”.
E, mais adiante:
“Infelizmente, a literatura psicanalítica está repleta de formulações que são tão vagas e/ou obscuras que é difícil imaginar qualquer evidência que poderia desempenhar algum papel em sua avaliação. E é especialmente lamentável que os autores dessas formulações sejam não figuras obscuras, mas incluam os teóricos psicanalistas mais influentes e famosos do mundo atual”.
O autor também deplora a preferência do campo psicanalítico em privilegiar, na avaliação de teorias e hipóteses, a chamada experiência clínica: estudos de casos individuais e séries de casos, sem controles de qualquer espécie. “Não é incomum encontrar alegações na literatura de que dados clínicos de pacientes adultos são não apenas adequados, mas os únicos dados legítimos para formulações psicanalíticas do desenvolvimento”, aponta. “A insistência de que apenas dados clínicos são relevantes para testar hipóteses psicanalíticas é apenas um exemplo da postura que obstrui a possibilidade de refutação”.
Ele, em seguida, aponta os três problemas fundamentais do uso exclusivo desse tipo de dado: sugestão (o paciente produz “insights” ilegítimos, induzidos pelas preferências teóricas do analista); viés de confirmação (o analista presta atenção apenas nas instâncias que confirmam suas preferências teóricas); e o uso de dados retrospectivos para produzir inferências de causa e efeito. Eagle ilustra o terceiro ponto com um exemplo.
Imagine-se que, de 100 pessoas que sofrem um trauma T, dez desenvolvem um sintoma S. E que essas dez vão procurar terapia, e viram estudos de caso. Com base nos dados retrospectivos de consultório, pode-se concluir que 100% das vítimas de T desenvolvem S (de dez pacientes com S, todos sofreram T), quando a taxa real é 10% (de 100 vítimas de T, apenas dez desenvolveram S).
E o problema pode ser ainda mais profundo. Como os psiquiatras Kenneth Colby e Robert Stoller (ambos treinados como psicanalistas) escrevem em seu livro “Cognitive Science and Psychoanalysis”, os registros de caso (a formalização da “experiência clínica”) “consistem em seleções, paráfrases e omissões idiossincráticas do clínico. O campo não oferece ao clínico nenhum conjunto consensual de regras para decidir qual informação fornecer como relevante e qual o nível de detalhamento em reportá-la (...) a fidelidade, que tende a zero, dos relatos indisciplinados das observações do clínico é a razão central pela qual o campo é incapaz de fazer progresso empírico”.
Carismáticos
Eagle resume assim as dificuldades da psicanálise: suposto “progresso” teórico provocado não por acúmulo de evidências, mas pelo surgimento de lideranças carismáticas que lançam ideias cada vez mais distantes de qualquer possibilidade de verificação empírica; quando algum tipo de evidência mais ou menos concreta enfim é admitida na discussão, preferência pela “experiência clínica”; falta de interesse genuíno em testes científicos, que quando são conduzidos têm mais caráter de “operações de relações públicas” do que de pesquisa adequada (algo que uma recente lista de estudos pró-psicanálise divulgada no Brasil só faz confirmar).
E esse autor não é um inimigo da psicanálise, muito pelo contrário. Seu livro “Core Concepts in Classical Psychoanalisys” (“Conceitos Centrais da Psicanálise Clássica”) oferece um veredicto generoso, concluindo que conceitos popularizados pela psicanálise, como inconsciente, conflito e defesa são frutíferos e seguem sendo importantes na discussão sobre saúde mental – embora reconheça que precisam ser reformulados: “a natureza dos processos inconscientes foi significativamente modificada, bem como as ideias sobre o que exatamente nos conflita, os perigos internos contra os quais nos defendemos e os processos que usamos para aplicar essas defesas”. O que, ao menos para mim, soa como um caso de “vinho novo em odres velhos” que, como na parábola bíblica, em algum momento vão acabar estourando. Mas não é essa a inferência de Eagle. Para ele, os velhos odres seguem firmes e fortes, renovando-se junto com o vinho que contêm.
De volta ao “Oxford Handbook”: ali, Eagle escreve que “muitas ideias psicanalíticas foram úteis no contexto de descoberta” – isto é, sugeriram hipóteses e estimularam pesquisas, ainda que os resultados mais promissores e cientificamente robustos tenham vindo de fora do campo. No fim, seu olhar para a psicanálise é afetuoso, o que só vem mostrar que a cobrança de rigor metodológico e de critérios claros de verificação empírica não é desrespeito ou desfeita – nem à psicanálise em particular, nem às Humanas em geral. E nem sequer caracteriza algum tipo de “imperialismo” por parte de outras áreas do conhecimento.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)