A insustentável maleabilidade da pseudociência

Apocalipse Now
28 jan 2023
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Ilusão

 

Um conceito que repito com alguma frequência em meus escritos é que, em termos de alcance e impacto, a falsidade e o erro sempre levam vantagem sobre a verdade, porque a mentira pode ser qualquer coisa que o mentiroso queira inventar e o público esteja predisposto a engolir, enquanto a verdade é delimitada, constrangida, pelo real. Para piorar a situação, mesmo esforços honestos e sinceros de determinar os fatos podem sair dos trilhos. O número de modos de chegar à conclusão errada está para o de caminhos que levam à verdade assim como o número de arranjos aleatórios de letras do alfabeto está para o dicionário. 

Levadas para o universo da exploração comercial de produtos de saúde, essas considerações sugerem que modismos pseudocientíficos, mesmo que tenham sido dotados pelo criador de algum tipo de lógica interna, não precisam se prender a ela e são, na verdade, infinitamente maleáveis. Uma doutrina cujo fundador falava em banhos de mar à luz da Lua pode ressurgir no marketing de cristais coloridos, dos chás mágicos, dos pêndulos dourados, das máquinas de ozonioterapia, sem que ninguém sinta falta de uma transição racional de uma forma para outra. Tudo é reconhecimento de marca, fumaça e espelhos. Nada é substância.

Caso: orgonite. A palavra mantém alguma semelhança fonética com "orgone" (ou "orgônio"), a suposta energia sexual universal postulada pelo médico, psicanalista, revolucionário, louco e/ou charlatão (mais sobre isso à frente) austríaco Wilhelm Reich (1897-1957); e apresenta o sufixo inglês "ite" (em português, "ita"), que costuma aparecer no nome de rochas e minérios (cassiterita, hematita, pirita etc.). Então, seria uma pedra relacionada ao orgone? Exatamente.

Mergulhar na vida e na obra de Reich em busca do momento em que ele cruzou a barreira entre pensador instigante e doido de pedra é assunto para teses universitárias (e imagino que deva haver algumas dúzias já a respeito). O químico Henry Bauer escreve, em seu livro “Science and Pseudoscience”, que “Reich estava intelectualmente errado nos anos 1930, se não antes, e já havia se tornado, provavelmente no fim dos anos 1940 e certamente bem antes do fim de sua vida em 1957, socialmente disfuncional e intelectualmente louco”.

No contexto deste artigo, o importante é lembrar que nenhum tipo de energia vital jamais foi descoberto pela ciência e, talvez o mais importante, a própria hipótese de que alguma energia desse tipo existe é desnecessária para explicar os fenômenos da vida.

“Todos os organismos vivos são compostos pelos mesmos quarks e elétrons que compõem uma rocha ou um rio”, escreveu o físico Victor Stenger (1935-2014) no artigo “The Physics of Complementary and Alternative Medicine” (“A Física da Medicina Alternativa e Complementar”). “Sofrem os efeitos das mesmas forças. Físicos conseguem medir os efeitos de forças eletromagnéticas em uma parte em um bilhão, mas não encontram a menor sugestão de forças vitais ou psíquicas especiais”.

 

 

Orgasmo e civilização

Discípulo de Sigmund Freud, Reich levou a ideia freudiana de que problemas psicológicos são causados por repressão sexual, e de que a civilização é fundada na repressão do desejo sexual, a extremos que o mestre nunca havia imaginado. A forte associação entre liberdade política e liberdade sexual - e repressão política e repressão sexual - que aparece em seus trabalhos no início dos anos 1930 deu-lhe a honra de ser perseguido e atacado tanto por comunistas quanto por fascistas (e psicanalistas ortodoxos). A premissa de que uma vida livre e saudável é impossível sem bons orgasmos também não agradou às lideranças religiosas, e Reich conquistou o galardão de ser detestado por, basicamente, todas as estruturas ideológicas de poder de sua época. A criação da frase "revolução sexual" é comumente atribuída a ele.

(Façamos uma pausa para lembrar que ser revolucionário, subversivo, inconveniente ou perseguido, a despeito do que sugere a imaginação romântica, não é, nunca foi, sinônimo de estar certo; a conexão entre uma coisa e outra é largamente aleatória. Essa é uma distinção que se tornará cada vez mais importante à medida que avançarmos na história da carreira peculiar de Reich.)

No final da década, já vivendo nos Estados Unidos, o pensador convenceu-se de que uma forma de energia cósmica, vital, que chamou de orgônio, manifestava-se nos orgasmos. Com o passar dos anos, veio a enxergar no orgônio e suas supostas manifestações a explicação para tudo - mesmo a meteorologia seria afetada pelo "campo orgônico" do planeta Terra (seria possível fazer chover sugando o orgônio presente nas nuvens). Os óvnis estariam aqui para roubar o nosso orgônio. Reich criou canhões de tecnologia orgônica para sugar a energia vital das naves alienígenas e, assim, derrubá-las.

O médico insistia que auras e partículas carregadas de orgônio e auras orgônicas ao redor de células vivas eram visíveis ao microscópio, mas os fenômenos descritos por ele são melhor explicados pelo movimento browniano (causado pela agitação térmica das partículas) e por aberrações cromáticas (distorções produzidas pela lente do instrumento).

Uma das ideias de Reich sobre o orgônio era o de que ele é atraído por matéria orgânica, e refletido por metais. Isso o levou a inventar câmaras acumuladoras de energia, cabines revestidas por camadas alternadas de metal e madeira. Uma pessoa sentada dentro de uma delas receberia uma carga orgônica extra. Ele pediu a Albert Einstein (1879-1955), no início da década de 1940, que testasse um acumulador em miniatura, e Einstein fez isso – sem encontrar nenhum efeito que não pudesse ser explicado por variações naturais de temperatura ambiente. Numa carta a Reich datada de 7 de fevereiro de 1941, Einstein declara considerar o assunto “completamente resolvido”.   

Prisão e ficção

A insistência de Reich em oferecer terapias baseadas em seus acumuladores orgônicos colocou-o em rota de colisão com a FDA (a Anvisa dos Estados Unidos) e, finalmente, com o FBI. Em 1956, uma ordem judicial para a destruição dos acumuladores ilegais e de material promocional relacionado levou a uma queima de livros de autoria de Reich e, acredita-se, a um agravamento de seu estado mental. Acabou morrendo numa penitenciária, preso por desrespeitar a ordem judicial que proibia a venda de acumuladores de orgônio.

E onde a orgonite entra nisso? Bom, essas "pedras de orgônio" na verdade são estruturas artificiais, em forma de cubo, cilindro ou pirâmide e que alternam, numa matriz de fibra de vidro, camadas de metal e matéria orgânica e, num aceno à sensibilidade New Age, alguns cristais, como quartzo ou ametista, supostamente para "filtrar" o orgônio ruim.

Até para quem leva as teorias orgônicas de Reich a sério, a utilidade e a legitimidade da orgonite deveriam ser, para dizer o mínimo, duvidosas: o paciente reicheano deveria ficar dentro do acumulador, recebendo a carga energética, não contemplar um adorno colocado em cima da mesa.

A ideia de que um objeto isolado (em oposição, digamos, à blindagem do teto e das paredes) poderia filtrar todo o orgônio que penetra um aposento também soa estranha diante da hipótese original, já que a energia cósmica, em tese, viria de todas as direções ao mesmo tempo. Sem falar que nem a fibra de vidro, nem os cristais, fazem parte da visão reichiana ortodoxa. Mas, e daí? De um ponto de partida falacioso pode-se, afinal, derivar qualquer coisa.

 

Através do Espelho

E já que o orgônio não existe, as regras que regem seu comportamento podem mudar a qualquer momento ou assumir qualquer forma e descrição, já que não há nada na realidade capaz de servir de baliza, oferecer um tira-teima entre diferentes versões, demonstrar qual sistema está certo ou errado. A ciência legítima corrige seus rumos consultando a realidade, buscando amealhar dados ou produzir resultados experimentais.

Como, no caso das pseudociências, o apelo à realidade não é uma opção, o que se vê é a multiplicação de “escolas” ou “linhas” cujo nível de tensão mútua é determinado não por curiosidade intelectual ou diferenças de adequação empírica, mas por disputas de mercado. Quando o recurso aos fatos não está disponível, o desempate é feito por dinheiro, poder, popularidade e vaidade.

Assim, para desfrutar dos supostos benefícios do orgônio, o cliente pode requerer uma cabine, um enfeite de mesa ou de uma massagem, dependendo do que o terapeuta à mão tem para vender. Não é raro que, dentro de uma mesma pseudociência, diversos conjuntos de leis e regras, incompatíveis entre si, coexistam, operando em paralelo e ao mesmo tempo, como se fossem realidades alternativas habitando um mesmo Universo.

A homeopatia, por exemplo, pode seguir o princípio do remédio único, dos remédios misturados, incorporar a isopatia e até abrir mão do princípio dos semelhantes, dependendo  do gosto do médico, do farmacêutico ou do cliente - e ninguém parece ligar para a implicação lógica de que qualquer uma dessas hipóteses, se fosse realmente capaz de produzir e explicar resultados clínicos reais, provaria que todas as outras estão erradas.

Quiropatas podem ser mixers ou straights; psicanalistas podem ser freudianos, jungianos, lacanianos, reicheanos ou qualquer outra coisa; astrologia pode ser tropical, sideral, chinesa, védica, uraniana etc.; e assim por diante, com diferentes escolas oferecendo ao público serviços e terapias baseados em elaborações teóricas inconsistentes entre si – o que, enquanto houver mercado para todos, ninguém vê como problema. Abandonado o compromisso com a realidade, o que resta é o compromisso com o aplauso dos colegas, com a carteira do cliente e com uma retórica ensebada, amorfa, oleaginosa.

Exemplo: no Brasil, o Ministério da Saúde inclui um filhote da teoria reichiana, a bioenergética, entre as Práticas Integrativas e Complementares (PICs) que o SUS está autorizado a oferecer. Vamos ver um pouco de como a bioenergética dá conta de si, segundo PDF explicativo produzido pelo próprio ministério.

O texto uma hora dá à palavra “energia” um sentido que evoca a realidade físico-biológica (“... da respiração ser a principal fonte de energia do organismo após o rompimento do cordão umbilical...”) e logo depois, sem aviso, outro, de sabor místico-metafórico (“todo ser humano é um campo vibratório de forças com intenso trânsito energético”), para em seguida misturar os dois como se fossem uma coisa só (“A dinâmica energética do organismo estabelecida pelo movimento de ir em busca... de alimento e oxigênio, revela que o processo de fazer contato com o ambiente é um processo energético”).

Deformar o significado dos termos no meio do argumento, sem avisar o leitor, reflete incompreensão, falta de domínio de conceitos básicos ou pura e simples desonestidade. Vale ressaltar ainda que a afirmação “biológica” de que a respiração é “a principal fonte de energia do organismo”, está errada. Ninguém tira calorias do ar.

Pseudociências são construídas com o dicionário e a gramática de Humpty Dumpty, onde as palavras significam o que quer que os autores queiram que signifiquem no momento em que são usadas – “nem mais, nem menos”. O descompromisso com a realidade permite que a linguagem se dissolva no ar.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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