O Mapa de Piri Reis e o Brasil

Apocalipse Now
19 nov 2022
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Mapa de Piri Reis

Quem quer já tenha se dado ao trabalho de folhear algum livro sobre supostos “mistérios do passado”, ou perdido valiosos momentos de vida assistindo a algum dos incontáveis documentários sobre o assunto, provavelmente já se deparou com o “Mapa de Piri Reis”, um documento do século 16 que é alvo das mais extravagantes interpretações pseudocientíficas, todas falsas, o que é uma pena.

A quantidade colossal de bobagens dita a seu respeito só vem a obscurecer os fatos que fazem do mapa uma relíquia histórica legítima: contém um desenho de partes do Caribe que provavelmente foi copiado de uma carta original, perdida, de autoria de Cristóvão Colombo (1451-1506); na costa da América do Sul, traz um toponímico que talvez seja a mais antiga menção cartográfica preservada ao “Rio de Janeiro” (“Sano Sanyero”); e uma de suas anotações apresenta uma breve história do descobrimento do Brasil, escrita por um comandante naval turco menos de duas décadas depois da viagem de Cabral. A ilustração deste artigo é um recorte do mapa mostrando a costa brasileira.

Mas não foram essas qualidades reais que tornaram o mapa famoso, e sim a associação espúria com continentes perdidos, civilizações pré-históricas e alienígenas do passado, construída ao longo de décadas por autores de pseudo-história que basicamente copiam as ideias e alegações uns dos outros e acrescentam seus próprios exageros particulares, sem se dar ao trabalho de conferir as fontes originais.

Charles Berlitz (1903-2013), em seu livro sobre Atlântida, diz que o mapa prova que os antigos gregos já conheciam a costa da América do Sul; Graham Hancock, numa minissérie recente, diz que o mapa preserva não só uma descrição fiel da costa da Antártida, como também misteriosas ruínas no Caribe; Erich von Däniken, em “Eram os Deuses Astronautas?”, diz que o mapa (datado de 1513) deve ter sido copiado de uma foto aérea – por implicação, tirada por “deuses” alienígenas.

Em “O Despertar dos Magos”, um livro que, por razões inexplicáveis, foi levado a sério por muita gente inteligente nos anos 1960-1970, os autores franceses Louis Pauwels (1920-1997) e Jacques Bergier (1912-1978) introduzem uma série de informações claramente falsas a respeito do documento.

Por exemplo, dizem que o mapa foi entregue à Biblioteca do Congresso americano pelo “oficial naval turco Piri Reis” no século 19 (Piri Reis é o autor do mapa, e viveu no século 16); que o mapa mostra os contornos perfeitos das Américas do Norte e do Sul – na verdade, o mapa mostra apenas o Caribe, parte da América Central e a América do Sul, e os contornos estão longe de ser “perfeitos” (Cuba, por exemplo, aparece como parte do continente, não como uma ilha; e a Ilha de Marajó, como uma península). E assim por diante. No fim de um extenso parágrafo, os autores questionam se os mapas teriam sido “traçados partir de observações feitas a bordo de uma máquina voadora ou veículo espacial?”

Muitos dos erros da dupla francesa foram copiados ao pé da letra (“plagiados” talvez seja o termo técnico) por Von Däniken, e aparecem na edição original de “Deuses Astronautas”, assim como a inferência de participação alienígena (em edições posteriores, o autor suíço afastou-se um pouco do original francês e retratou-se de parte das alegações).

 

O documento

Mas, afinal, o que é esse mapa? Trata-se de um pedaço de couro de camelo de forma irregular, um retângulo imperfeito, com aproximadamente um metro de altura e meio metro de largura, de autoria do almirante turco Muhiddin Piri (1465-1553), uma figura importante na história marítima do Império Otomano. O nome pelo qual ficou conhecido, “Piri Reis”, é na verdade seu título militar – “Reis” significa algo como “comandante naval”. Era também cartógrafo, e nessa capacidade sua principal obra foi o “Livro dos Mares”, um guia detalhado de navegação do Mar Mediterrâneo, apresentado em 1526 ao sultão Suleiman o Magnífico (1495-1566).

O “Mapa de Piri Reis” discutido por Von Däniken, Berlitz et caterva é o único fragmento sobrevivente de um mapa muito maior, provavelmente um mapa-múndi, desenhado em 1513. O mapa inclui diversas caixas de texto, uma das quais apresenta as fontes consultadas:

“Cartas do tempo de Alexandre o Grande, que mostram o quarto habitado do mundo (...) quatro mapas portugueses recentes, e também de um mapa desenhado por Colombo na parte ocidental...”

O engenheiro e cartógrafo Gregory McIntosh explica em seu livro “The Piri Reis Map of 1513”, “tempo de Alexandre o Grande” reflete uma confusão entre o faraó Ptolomeu I (general do exército de Alexandre que se tornou rei do Egito em 304 AEC) e Cláudio Ptolomeu (100-170 EC), o astrônomo greco-egípcio cujo tratado “Geografia” serviu de base para boa parte da cartografia no mundo islâmico e, a partir do Renascimento, na Europa também. Já “o quarto habitado do mundo” refere-se ao “mundo conhecido” mapeado por Cláudio Ptolomeu, das Ilhas Canárias a Oeste até a Índia e o Norte da África.

Como documento histórico, sua maior importância vem do fato de incorporar, no desenho do Caribe, não só as observações, mas também as preconcepções de Colombo. Convencido de que havia chegado à Ásia, o navegador genovês tentou, ao desenhar seus mapas do Novo Mundo, conciliar o que via com o que esperava: os resultados são intrigantes – por exemplo, a Ilha de Hispaniola (que hoje abriga as nações do Haiti e da República Dominicana) aparece girada em 90º , de modo que seu eixo principal passa a ser o norte-sul, e não (como é na realidade), leste-oeste. O motivo provável é que Colombo acreditava que Hispaniola era o Japão, um arquipélago que se estende no sentido norte-sul. Cuba, por sua vez, incorporada ao continente, é apresentada como parte da costa chinesa.

 

Terra Australis

Uma vez que a alegação de que a apresentação das Américas no mapa seria “perfeita” não resiste a dois segundos de inspeção visual cuidadosa (Marajó, uma península?), o que resta de “misterioso” no Mapa de Piri Reis é a suposta representação “exata” da costa da Antártida, algo inexplicável porque impossível em 1513, já que o continente gelado foi avistado por navegantes, pela primeira vez, em 1819.

O que o pessoal dos deuses astronautas/mistérios do passado interpreta como “Antártida” no Mapa de Piri Reis é uma dobra abrupta na costa sul-americana, que de repente cessa de avançar para o sul e começa a se prolongar em direção ao leste. O primeiro ponto a destacar, quando se analisa essa estranha curvatura, é que ela ocorre na altura do Trópico de Capricórnio. O que, se aceitarmos a ideia de que ela representa a Antártida, põe todo o sul do Brasil, a partir da cidade de São Paulo, no continente gelado.

O segundo ponto é que o suposto continente antártico aparece ligado à América do Sul – não é um novo continente, mas uma continuação da costa brasileira. Uma explicação possível é que Piri Reis viu que o comprimento couro estava acabando, e por isso começou a desenhar de lado, aproveitando a largura.

Outra, proposta por McIntosh, é que o almirante turco estava seguindo duas previsões teóricas de Cláudio Ptolomeu: primeira, a de que deveria existir uma grande massa continental no Hemisfério Sul, para equilibrar o peso da Europa e da Ásia e manter a Terra estável em seu eixo; segunda, a de que os oceanos da Terra seriam na verdade um grande lago, cercados de massas continentais por todos os lados. Nesse sentido, tem lógica ligar o continente (teórico) de Terra Australis à América do Sul, para garantir o fechamento do lago (também teórico).

Essas convenções ptolomaicas perduraram por muito tempo: mesmo depois da primeira navegação do Cabo Horn, no início do século 17, ter demonstrado que a América do Sul não estava ligada a outra massa de terra ainda mais meridional, destruindo assim a tese do grande lago, mapas-múndi e atlas continuaram a apresentar, ao redor do polo sul, um continente hipotético

Quanto à alegação de que a costa da Terra Australis de Piri Reis reproduz fielmente a costa da Antártida, ela é simplesmente falsa. A minissérie de Hancock traz uma animação em que os dois traçados parecem sobrepor-se de forma perfeita, mas é muito fácil fazer com que dois contornos de mapa pareçam idênticos: para isso, basta ignorar diferenças de escala e ser generoso nas distorções de projeção.

 

Brasil

O Mapa de Piri Reis traz vários toponímicos ao longo da costa brasileira que parecem refletir tentativas do cartógrafo em traduzir foneticamente para o turco nomes provavelmente encontrados em mapas portugueses da época, como Abrakok (Abrolhos), Kay Fryio (Cabo Frio), Sano Sanyero (Rio de Janeiro; McIntosh especula que ”sano” pode ser uma referência a “enseada”, no caso a Baía de Guanabara) e Katino (Cananeia). Como já foi dito, a menção ao Rio de Janeiro é a mais antiga conhecida a aparecer num mapa – a carta portuguesa que Piri Reis copiou perdeu-se.

O mapa também traz um relato do descobrimento, onde se lê que, “a caminho da Índia”, um navio português “foi soprado por uma tempestade” na direção de uma terra onde havia “pessoas andando, todas nuas”.

Para quem estuda desinformação em geral, e vieses cognitivos em particular, a história do mapa de 1513 é rica em vários sentidos, a começar pelos erros de Cristóvão Colombo, preservados na carta do almirante turco. São exemplos cabais da advertência de Sherlock Holmes sobre o risco de deixar a teoria contaminar os dados: Colombo estava tão convencido de que Hispaniola era o Japão e Cuba, a China continental, que essa convicção nublou até mesmo a evidência dos próprios olhos.

A fama que o mapa conquistou no século 20, por sua vez, exemplifica o caráter infeccioso e daninho do erro. A descrição falsa oferecida por Pauwels e Bergier, reproduzida e repetida acriticamente por dezenas de autores que vieram depois, cimentou o Mapa de Piri Reis no imaginário ocidental como artefato atlante ou alienígena e abafando, assim, todas as características reais e concretas que fazem dele um artefato histórico fantástico – sem a menor necessidade de apelar para a fantasia.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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