O melhor lugar para esconder um livro é numa biblioteca. Para esconder um diamante, um balde de cacos de vidro. Uma verdade esconde-se melhor numa enxurrada de mentiras. Para esconder o resultado legítimo de uma eleição, portanto, nada melhor do que apurações paralelas. Os truques são antigos, baseados em princípios que podem ser encontrados em romances policiais e contos de fadas, mas a aplicação recente é de potencial explosivo.
Tenho pesquisado e escrito muito sobre desinformação, fabricação deliberada de ignorância e teorias conspiratórias nos últimos anos – em geral, no contexto da pesquisa científica e de saúde. É espantoso ver algumas velhas conhecidas, técnicas usadas há décadas para tentar sequestrar a credibilidade das ciências e transferi-la para bobagens lucrativas, serem adaptadas para corroer a democracia.
Neste domingo, o último antes das eleições que renovarão parte do Congresso, os Legislativos estaduais, os governos dos estados e a Presidência da República, gostaria de deixar com vocês um checklist que, de minha parte, realmente preferiria ver como capítulo de livros sobre paranormalidade, medicina alternativa e pseudociência, e não como manual de construção do fascismo. Mas a realidade é o que é. Então, mesmo se você tem pouco interesse na retórica da pseudociência, pode valer a pena prestar atenção.
As ferramentas
Inversão do ônus da prova: no fluxo normal dos assuntos humanos, quando a conversa é honesta e os debatedores trocam ideias em boa-fé, o ônus da prova cabe a quem faz alegações extraordinárias. Se lhe digo que os Incas Venusianos me ungiram o Messias do Novo Milênio, não é razoável de minha parte esperar que você aceite essa afirmação pelo valor de face, sem que eu lhe ofereça nenhuma prova – e prova robusta; não vale uma folha arrancada de caderno com o rabisco “é verdade esse bilhete”.
Assim como minha reivindicação de autoridade messiânica interplanetária, a alegação de que o sistema eleitoral eletrônico brasileiro, usado de forma bem-sucedida há décadas, pode ser facilmente adulterado (que, de fato, existiriam ações em curso neste momento para adulterá-lo) é extraordinária, na medida em que contraria toda a experiência prévia não só com o sistema, mas com as autoridades responsáveis por ele, e com resultados de testes e auditorias. É de se esperar que quem produz a alegação, se o faz de boa-fé, apresente provas do que diz.
Quem é desonesto faz o oposto. Exige, em tom indignado, que sua alegação extraordinária seja aceita até que apareça prova em contrário – e, neste caso: cadê a prova de que os Incas Venusianos não me ungiram? De joelhos, terráqueos!
Em situações extremas, em que a parte desonesta é confrontada com evidência clara de que suas alegações são falsas (ou de que se envolveu em comportamento antiético ou criminoso), a inversão do ônus da prova pode evoluir para a estratégia DARVO, acrônimo para a expressão em inglês “Deny, Attack, Reverse Victim-Offender” ou “Negue, Ataque, Inverta Vítima e Agressor”.
A receita é autoexplicativa: nega-se a evidência apresentada, ataca-se quem a apresentou e tenta-se inverter os papéis de acusado e acusador. Foi usada na defesa das indústrias do tabaco e dos combustíveis fósseis (“não há prova de que causamos câncer/mudança climática”, “esses cientistas não sabem do que estão falando”, “querem destruir nosso modo de vida/nossos empregos”). É muito utilizada pela família e pelos aliados do atual presidente, principalmente contra o Judiciário e a imprensa.
Expectativa inatingível: outra arma comum da desonestidade intelectual é a construção de falsas dicotomias em que sistemas, propostas, métodos, produtos etc. são ou perfeitos, ou inúteis. E como nada é perfeito – não há vacina 100% livre de efeitos colaterais, não há sistema eleitoral 100% inexpugnável, não há processo de investigação que gere certeza absoluta – alavancam-se argumentos pela rejeição de medicamentos, sistemas, métodos que, com as limitações que têm, são bons o suficiente para o fim a que se propõem.
Com isso, busca-se instaurar uma espécie de vale-tudo niilista: se nada presta, então não há base para afirmar que o meu sistema é pior do que o seu. Ou a minha apuração, menos válida do que a sua. E daí que a exploração espacial mostrou que não existem incas na atmosfera ou na superfície de Vênus? Como você define “inca”? E alguém já investigou o subsolo do planeta, por acaso?
Dúvida irrazoável: ao mesmo tempo em que exige perfeição do adversário, o desonesto reivindica para si todo o benefício da dúvida, mesmo quando a questão já está bem resolvida. Por que não conduzir só mais um teste? Será que é porque a ciência ortodoxa (ou o TSE) tem medo do resultado? Sei que estou acusando sem provas, mas e seu eu estiver certo? E por que eu mentiria sobre meu encontro com os Incas Venusianos?
Essa técnica de certa forma complementa a da expectativa inatingível e, usadas em conjunto, as duas reduzem o que deveriam ser questões objetivas de avaliação de riscos e benefícios, adequação entre meios e fins, de sopesar a evidência disponível, em guerras de slogans dominadas por factoides irrelevantes: cria-se, por assim dizer, um pânico em torno de tubarões e águas-vivas no meio do deserto. Ninguém nunca provou que não existem cavernas habitadas por incas no centro de Vênus, você não tem evidência de que minha unção é só coisa das vozes na minha cabeça e, afinal, como explica o fato de eu ter adivinhado que ia chover hoje?
O objetivo
Essas ferramentas são aplicadas com o propósito de gerar Caos epistêmico: vivemos num mundo complexo que nos força a confiar em autoridades epistêmicas – pessoas e instituições que sabem mais do que nós sobre temas especializados, e cujos pronunciamentos devemos levar em consideração, se desejamos ser racionais. É por isso que vamos ao médico quando ficamos doentes e contratamos engenheiros para calcular a estrutura de edifícios.
O caos epistêmico se instaura quando a confiança nessas autoridades é minada ou quando os símbolos dessa autoridade – títulos, diplomas, cargos, posições oficiais – são distribuídos de forma indiscriminada; também, quando detentores legítimos dessa autoridade, num dado campo, buscam estendê-la indevidamente para outras áreas, ou quando vozes alternativas e autoridades paralelas se erguem com discursos que, por suas qualidades retóricas, soam convincentes para setores significativos da população.
A inversão do ônus da prova, as expectativas irrealizáveis e a dúvida irrazoável são instrumentos para a construção desse estado de coisas. Com a utilização delas, o caos se produz, de forma deliberada, a partir da cooptação de vozes de autoridade ostensivamente legítimas, da multiplicação de narrativas alternativas contraditórias e da amplificação das vozes alternativas convenientes.
Usado estrategicamente, o caos epistêmico cria espaço – psicológico e social – para que comportamentos descolados da realidade sejam vistos como racionais, ou até mesmo necessários, dentro de determinados públicos. O caos epistêmico em torno do resultado da eleição presidencial americana de 2020 levou ao atentado de 6 de janeiro no Capitólio. Os ataques ao TSE e a construção das Forças Armadas como voz alternativa e autoridade paralela sobre o resultado legítimo do pleito de 2 de outubro militam na mesma direção.
O que fazer?
A melhor medida contra o caos epistêmico é preveni-lo, deixando as pessoas que poderiam ser tragadas por ele de sobreaviso, preparando-as para reconhecer e descartar as falácias que serão usadas na tentativa de manipulá-las. A segunda melhor forma de enfrentá-lo, aceitando a realidade de que medidas preventivas provavelmente jamais cobrirão toda a população, é contê-lo: evitar que transborde de suas bolhas e contamine setores mais amplos da opinião pública.
Intuitivamente, a contenção parece requerer alguma forma de engajamento em debate com os promotores do caos, mas debates diretos devem ser evitados ao máximo, porque sugerem ao público que existem pontos de vista igualmente legítimos em discussão, o que não é o caso. Debates são disputas retóricas, e é muito fácil manipulá-los de modo a enquadrar, indevidamente, o que deveriam ser questões de fato como questões de opinião. Não se debate de que lado do horizonte o Sol nasce toda manhã.
A forma ideal de contenção é manter ativas, circulando, as mensagens de prevenção, e somar a elas uma exposição simples e direta dos fatos – o que é a verdade, como sabemos que é verdade, porque as narrativas alternativas estão erradas e como sabemos que estão erradas. Incertezas devem ser reconhecidas de forma serena e tratadas com a ênfase cabível – seu significado não deve ser nem exagerado, nem minimizado.
Uma refutação eficaz de minhas pretensões messiânicas interplanetárias deveria começar expondo, de forma breve e objetiva, o que a ciência sabe de mais importante sobre o planeta Vênus e o povo inca, o fato de que seis décadas de exploração do Sistema Solar jamais mostraram nenhum sinal de vida inteligente na vizinhança, e só então engajar minhas alegações específicas. Chamar atenção de imediato para elas é me conceder espaço grátis de propaganda.
A batalha do fato e do argumento contra a impostura e a frase de efeito é inglória – há um motivo para a publicidade preferir slogans a silogismos –, mas é também crucial para a democracia, especialmente agora.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)