O fiasco da “carta psicografada” do julgamento dos responsáveis pelo incêndio da Boate Kiss me lembrou de que em breve estreia aqui nos Estados Unidos a nova versão cinematográfica de ”Nightmare Alley”, romance de 1946 filmado originalmente em 1947 com Tyrone Power no papel principal. Na produção nova, dirigida por Guillermo de Del Toro, o protagonista é vivido por Bradley Cooper (a imagem que ilustra este artigo é baseada numa foto de Cooper no filme).
O que o filme tem a ver com psicografia? “Nightmare Alley” é um clássico do romance noir americano que gira em torno de um mágico de circo que vira primeiro mentalista, evolui para pastor evangélico picareta e, então, médium, enriquecendo com as doações "espontâneas" de fiéis embasbacados. Em se tratando de um romance noir, tudo é muito sórdido, há uma mulher fatal e a coisa toda termina em tragédia, claro.
O autor, William Lindsay Gresham, era jornalista, especializado em "true crime stories", ou narrativas romanceadas de crimes verdadeiros. Ele depois viria a escrever um livro de não-ficção sobre os circos de aberrações norte-americanos, "Monster Midway", e uma biografia de Harry Houdini. Antes de virar escritor, Gresham lutara ao lado dos republicanos na Guerra Civil espanhola, e durante alguns anos foi casado com a poeta Joy Davidman, que viria a abandoná-lo para se casar com C.S. Lewis.
"Nightmare Alley" é um livro importante na história do ceticismo porque expõe de modo muito didático o funcionamento da leitura fria (ou "a frio") o método usado por médiuns, cartomantes, quiromantes, astrólogos e outros adivinhos para oferecer leituras de personalidade e previsões do futuro que, embora óbvias e genéricas, tendem a soar impressionantes e específicas para quem as ouve.
Segundo a introdução da edição do livro que li, assinada pelo jornalista Nick Tosches, foi em "Nightmare Alley" que a expressão "cold reading" apareceu pela primeira vez, registrada por escrito, na língua inglesa. Para o público contemporâneo, há ainda a curiosidade de ver a palavra "geek" usada em seu sentido original: um sujeito fantasiado de aborígene ou homem das cavernas que decapita galinhas vivas com os próprios dentes. Uma atração de circo de aberrações.
O protagonista do romance, Stanton Carlisle, é um tipo bastante didático: depois que abandona a mágica e se torna um líder religioso, passa a recusar-se a cobrar por seus serviços, mas "a obra, que é maior do que eu, sempre precisa de doações"; e sempre que os espíritos que invoca sugerem aos consulentes que o ajudem com bens materiais, recusa-se a aceitá-los – logo de cara.
Também de acordo com o que costuma acontecer no mundo real, suas vítimas são seus maiores defensores: quando um jornal publica uma nota venenosa sobre como uma senhora viúva teria sido convencida a doar um imóvel para a igreja, a autora da doação responde, em tom indignado, exaltando a humildade do pastor.
(A realidade é pródiga em precedentes famosos: em outubro de 1866, espíritos instruíram uma rica viúva inglesa, Jane Lyon, a considerar o médium D.D. Home seu “filho” e lhe dar um presente de 24 mil libras – quase 3 milhões em dinheiro atual. Um mês depois, ela fez de Home seu herdeiro único e universal, obedecendo sempre a espíritos canalizados pelo próprio beneficiário).
Num aparente sinal do período em que a obra foi escrita (e do pedigree ideológico do autor), as únicas figuras imunes ao charme e à fala mansa de Carlisle são uma psicóloga (Cate Blanchett, no filme mais recente) e um operário ateu comunista.
Se há algo na descrição que o livro faz das rotinas de seu protagonista que parece exagerado, é a extrema elaboração: Stanton vai a extremos como usar um transmissor de rádio oculto no colete (isso, em 1946!), além de oferecer drinques drogados a consulentes.
Mas efeitos como os obtidos pelo reverendo Carlisle poderiam ser produzidos de maneiras muito mais simples: de fato, as técnicas mais comuns de mentalismo – truques de mágica que simulam efeitos como telepatia ou leitura de mente –, deslocadas para fora do contexto do circo e da sala de espetáculo, bastam para fazer o sucesso de qualquer médium que se deixe guiar por um espírito empreendedor.
Sendo um romance noir, o livro também contém uma trama policial – Carlisle comete pelo menos três homicídios –, além de traições, subtramas e traições duplas. Se há uma falha no romance é seu uso, pesado, do freudianismo na construção dos personagens: todos parecem atormentados, quando não moldados, por um tesão pecaminoso por algum parente do sexo oposto. Nisso, o livro lembra outro exemplar da literatura policial sórdida da época, "Kiss Tomorrow Goodbye", de Horace McCoy, descrito por um crítico americano como "o livro mais torpe publicado neste país".
O título, "beco do pesadelo", vem do insight que o protagonista tem logo no início do romance, e que o leva a buscar uma carreira no mentalismo, primeiro, e depois na religião: todas as pessoas, ele conclui, vivem num beco de pesadelo, correndo de um monstro que se aproxima, rumo a uma luz que nunca chega. Quem consegue acesso ao beco que os outros têm em suas cabeças – descobrir de qual monstro estão fugindo, qual a luz que buscam – e oferece um pouco de paz e de segurança, ainda que falsa, tem nas mãos o maior poder do mundo.
Uma inspiração que, mais uma vez, faz do livro uma peça de grande valor didático. E que ajuda entender como, mesmo depois do escândalo João de Deus, ainda há quem trate com complacência, ou mesmo simpatia, tentativas de trazer pensamento mágico para assuntos sérios e de ampla repercussão, como doenças graves e processos judiciais.
A ideia parece ser que, se uma crença consola algumas pessoas ou é importante para um grupo social (se os ajuda a navegar seus “becos de pesadelo”), é falta de educação chamar atenção para realidades incômodas – por exemplo, de que a crença não tem base em fatos.
O que é até verdade em alguns contextos, mas quando essas pessoas ou grupos tentam forçar suas “crenças de conforto” goela abaixo do resto da sociedade – por exemplo, requerendo que sejam aceitas como evidência válida em processos de homicídio ou como terapias disponíveis no serviço público de saúde – exigem, enfim, que as tratemos como se tivessem o mesmo grau de plausibilidade, verificabilidade e validade universal que a teoria dos germes ou o heliocentrismo, bem, aí alguém está, com certeza, sendo arrogante, ofensivo e mal-educado – e não são os céticos.
No caso específico da psicografia, não há nenhum motivo – além de uma eventual predisposição religiosa ou preferência pessoal – para imaginar que qualquer tipo de produção do tipo seja fruto de “contato com espíritos”, como já mostrei neste artigo de 2019.
Para terminar: se queremos reduzir o dano causado por charlatões de todos os tipos – e é notável como o pessoal do “é feio desfazer a ilusão dos outros” esquece que ilusões que confortam também deixam vítimas –, torna-se muito importante que cada um de nós seja extremamente crítico em relação aos espertos carismáticos, vivos ou mortos, que aparecem prometendo ensinar o caminho para fora do “beco de pesadelo”. Até deve ter gente sincera nesse meio. Mas mentir de modo convincente para si mesmo também é uma forma de sinceridade.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)