Cinco anos mudando a conversa sobre ciência

Editorial
23 nov 2023
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Ha cinco anos nascia um projeto para defender a ciência, o pensamento crítico, e fomentar o uso de evidências cientificas para políticas públicas no Brasil. O Instituto Questão de Ciência surgiu da convergência de propósito de quatro pessoas que já trabalhavam, cada uma em seu nicho, para fazer com que a ciência fosse realmente levada a sério no debate público.

Essa convergência não aconteceu por acaso, foi precipitada por fatos históricos. O IQC não existiria sem o caos jurídico e midiático criado em torno da “fosfoetanolamina sintética”, a infame “pílula do câncer”, em 2015. Também não existiria sem a ampliação escandalosa da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) em 2017, inserindo mais e mais terapias sem base científica no orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS), e sua recepção acrítica pelos meios de comunicação.

Esses dois momentos funcionaram como um toque de despertar que chamou a atenção para um quadro maior: a promoção da homeopatia dentro das universidades públicas do Brasil. O estabelecimento de centros de promoção de Medicina Tradicional Chinesa, com o beneplácito, quando não a cooperação, de agentes públicos e da academia. A livre oferta de curas “milagrosas” para diabetes, doenças neurodegenerativas, pressão alta, depressão etc. O mercado de curas quânticas, energéticas, dos sucos detox. O espaço de prestígio reservado pelos jornais para as previsões astrológicas do ano seguinte.

O que uniu os quatro fundadores do IQC foi o desejo de fazer algo concreto, organizado e institucional, para dar ao público ao menos a oportunidade de não ser enganado por promessas sem fundamento, por curas baseadas em mentiras e fantasias, e de reconhecer quando, na formulação de políticas públicas, a ideologia fala mais alto do que a evidência. De evitar que dinheiro público, assim como economias (e esperanças) pessoais fossem desperdiçados com bobagens.

Nestes cinco anos desde sua inauguração em 2018, o IQC cresceu. Dos quatro fundadores iniciais, expandiu-se para um time de 14 pessoas. A diretoria ganhou um novo membro, Dr. Luiz Gustavo Almeida, que a partir de 2023 ficou responsável pelos projetos de educação. E só nestes primeiros meses de atuação, Almeida já organizou workshops em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), e Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). As oficinas foram direcionadas para profissionais de saúde, e trataram do tema da desinformação em vacinas. Da parceria com a SBP já surgiram mais projetos, incluindo uma revistinha produzida em parceria com a SBP e Instituto Mauricio de Sousa sobre fake news em vacinas.

Além dos quadrinhos protagonizados pela Turma da Mônica, a parceria com a SBP rendeu um projeto de pesquisa. O estudo, envolvendo mais de mil pediatras no Brasil levantou as principais dúvidas trazidas pelos pacientes sobre vacinação, e as principais dificuldades dos profissionais para atendê-los. O resultado está sendo preparado para publicação em periódico internacional.

E falando em gente nova no IQC, a jornalista Jaqueline Sordi, que também passou a integrar nossa equipe em 2023, como editora do Observatório de Políticas Científicas do Instituto Questão de Ciência e da Revista Questão de Ciência, foi um dos cinco profissionais brasileiros selecionados para participar de um programa de combate à desinformação científica, o investigathon, em Austin (EUA). O resultado do programa foi a publicação, em parceria com a revista Veja Saúde, da reportagem investigativa que desmontou o esquema de vendas e desinformação em saúde da empresa Jolivi.

O Observatório de Políticas Cientificas também cresceu, e agora conta com uma equipe de seis pessoas, entre cientistas de dados e jornalistas, sob o comando do diretor Paulo Almeida e da coordenadora Fernanda Meirelles. O Observatório traz uma plataforma online gratuita que oferece dados tratados sobre ciência, tecnologia, saúde pública e ensino superior, além de serviço de acompanhamento legislativo de projetos de lei e regulamentações que afetem políticas de ciência e saúde. Também produz textos jornalísticos próprios, relatórios aprofundados e verbetes sobre conceitos-chave para compreensão do cenário de C&T no Brasil, assim como um glossário de termos técnicos destas áreas.

Dos projetos do Observatório, merece destaque especial o lançamento da plataforma VacinaBR, previsto para dezembro de 2023. A plataforma oferecerá mapas, gráficos e tabelas referentes às taxas de imunização e disponibilizará indicadores como taxas de cobertura e de abandono e histórico de cobertura por doenças. Será uma ferramenta de valor inestimável para gestores, jornalistas e pesquisadores.

A Revista Questão de Ciência (RQC), iniciativa inaugural do Instituto, segue em sua missão de fazer com que a informação correta sobre temas científicos e de saúde tenha alguma chance de circular e competir pela atenção do público, num ambiente informacional saturado por mercadores de falsas promessas e hype. Nesses cinco anos, alguns marcos: a RQC foi a primeira publicação brasileira a criticar abertamente a aposta na cloroquina como panaceia durante a pandemia, e a analisar criticamente a “prática integrativa e complementar” machista e pseudocientífica da constelação familiar. Também instaurou um espaço de crítica de mídia em que notícias, reportagens e documentários sobre ciência e saúde são analisados com um olhar duro, e sem nenhuma condescendência. Nestes cinco anos, a RQC publicou cerca de 1.200 textos, entre reportagens, artigos e resenhas.

Nosso braço de “advocacy”, atuando diretamente junto aos Três Poderes, cresceu consideravelmente no último ano. O IQC foi chamado diversas vezes para participar de reuniões e audiências públicas como consultor e/ou expositor. Algumas participações merecem destaque, como a presença da presidente Natalia Pasternak e do diretor Marcelo Yamashita em Brasília no final de 2022, a convite da equipe de transição do novo governo na área de saúde e de ciência. Os representantes do IQC levaram propostas que destacavam a importância de fortalecer o Programa Nacional de Imunizações, que foi de fato elevado a Departamento no novo organograma do Ministério de Saúde.

Não menos importante foi a atuação do IQC no combate ao uso da constelação familiar no Judiciário, sob a forma de Direito Sistêmico. Além das publicações denunciando a prática desde 2019, na RQC e na grande imprensa, o Instituto encaminhou um manifesto - assinado em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia e diversos cientistas independentes – para o ministro de Direitos Humanos, denunciando a prática como anticientífica, e prejudicial aos direitos humanos e da mulher. O manifesto foi acolhido pelo ministro Silvio Almeida, e encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Diretores do IQC também participaram em 2022 do Conselho Superior de Combate às Doenças Infecciosas do governo do estado de São Paulo, para o qual produziram um manual de comunicação de risco em saúde, e participaram da redação de um manual de notificação de bactérias multirresistentes em ambiente hospitalar.

Ainda em 2022, realizamos em São Paulo o IQC Day, com participação do médico Drauzio Varella e do jornalista e cientista politico Leonardo Sakamoto. A presidente Natalia Pasternak foi agraciada com o prêmio Balles, oferecido pelo Comitê de Investigação Cética nos EUA (CSI) para pessoas que se destacaram na promoção do pensamento critico e ceticismo. Também foi escolhida pelo Jerusalem Post como uma das 50 personalidades judias mais influentes do mundo em 2022.

No Brasil, Pasternak recebeu o prêmio Mulheres na Ciência Amélia Imperio Hamburger, iniciativa da Câmara dos Deputados; e o Prêmio Mulheres em Ação da Federação Israelita do Estado de São Paulo, e receberá em dezembro o Prêmio Ruth Sonntag Nussenzweig, oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo. Em 2023, foi convidada como palestrante para o evento do Nobel Prize Summit em Washington DC (EUA), para falar sobre desinformação na América Latina, e tornou-se membro fundador da Lilienfeld Alliance, para conectar professores universitários que ministram cursos sobre pseudociência e pensamento critico.

Os diretores do IQC também contribuem de forma indireta para a missão do Instituto. O lançamento do livro Que Bobagem!, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, pela Editora Contexto, penetrou de tal forma o debate público sobre ciência e saúde no Brasil que provocou até reação do Conselho Federal de Medicina, que pela primeira vez em 40 anos, mostrou-se disposto a rever a homeopatia como especialidade médica. O livro se tornou um best-seller, ficando durante algumas semanas em primeiro lugar entre os mais vendidos na categoria de não ficção.

Mudar políticas públicas não é algo que acontece em um vácuo. Decisões, tanto do cidadão como do gestor público, são afetadas pelo contexto cultural, histórico e político. O respeito às evidências cientificas precisa ser construído dentro deste contexto. O processo requer, por exemplo, reconhecer a existência de temas vistos como “controversos” ou, inversamente, como “fatos científicos estabelecidos” pelo público, mas que na verdade são apenas narrativas articuladas por interesses (políticos, ideológicos, comerciais) ou opiniões baseadas em senso comum.

Qualificar o debate requer, portanto, expor as estratégias de desinformação dos interesses entranhados e desconstruir  “verdades” do senso comum. Estimular o pensamento crítico e racional, e comunicar ciência de forma didática e clara, é uma maneira de perseguir esses objetivos e convidar a população a se acostumar a exigir e considerar evidências de qualidade tanto no dia a dia quanto na interação com agentes públicos.

O IQC mostrou nestes cinco anos que é possível mudar contextos culturais. Nunca tivemos tantas reportagens e artigos, na grande imprensa, questionando a eficácia da homeopatia e de outros tipos de medicina alternativa. O IQC trouxe este tema para o debate público, construindo espaço para um debate que estava bloqueado por uma mistura de corporativismo e complacência.

Nunca tivemos tantas reportagens sobre constelação familiar. Nunca antes a validade da psicanálise como prática terapêutica e de análise social foi tão abertamente debatida. O IQC criou o espaço cultural que tornou essas conversas possíveis. Nunca tivemos tantas reportagens, análises e debates sobre o uso de evidências cientificas em políticas públicas no Brasil. O IQC introduziu a expressão “política pública baseada em evidências” na linguagem corrente, e é com um certo orgulho maternal que vemos a preocupação ser abraçada por outros grupos e organizações.

Foram cinco anos, com um time inicial de quatro, e um atual de 14 pessoas. Revista, eventos, workshops, cursos para jornalistas, prêmios, livros, relatórios, pareceres, participações em audiências públicas, participações em CPIs, participações em congressos internacionais, publicação de artigos científicos, publicação de artigos em grandes veículos de imprensa nacionais e internacionais.

Foi meia década de trabalho, dedicação e muitos resultados. Nossa maior recompensa é saber que hoje o cidadão brasileiro que nutre alguma curiosidade sincera sobre homeopatia, astrologia, teorias de conspiração e outras pseudociências ou modismos irracionais tem uma boa chance de encontrar informação cientifica acessível, e não somente a narrativa de quem faz o marketing dessas práticas e ideias. O IQC fez a informação embasada em ciência circular. E isso mudou a conversa no Brasil.

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