Pseudociência não tem lugar no ensino de saúde

Editorial
24 abr 2021
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Negacionista talvez seja uma das palavras mais usadas da atualidade. Seu emprego, estimulado por uma pandemia que custa a ir embora, está frequentemente associado àqueles que insistem em apregoar ações que vão de encontro à ciência no combate à COVID-19. A utilização da palavra no contexto da pandemia não é exclusiva – ela também é utilizada de maneira genérica a todos aqueles que negam fatos bem estabelecidos pela ciência.

Uma analogia jocosa feita com negacionistas é compará-los a terraplanistas – as pessoas que acreditam que a Terra é plana. Textos e falas inconformados citando-os como o suprassumo da irracionalidade aparecem aos borbotões. Ocorre com frequência, porém, que as mesmas pessoas que criticam os negacionistas do formato de nosso planeta defendem ferrenhamente outras crenças, tão absurdas quanto a Terra plana. 

Inaceitável e escandaloso, porém, é quando esse negacionismo aparece de maneira institucional em uma universidade pública. Na ata da reunião ordinária do Conselho de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) consta a criação da disciplina "Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde, com caráter obrigatório, a ser oferecida no quinto semestre". Poderia até tratar-se de uma disciplina séria, se fosse abordar questões relacionadas a radioterapia ou ressonância magnética, por exemplo, mas a ementa descortina um léxico pseudocientífico que deixaria qualquer coach quântico excitado – e qualquer cientista sério que trabalhe com física quântica, desolado, quando não desesperado. “Energia”, “vibração”, “espiritualidade”, “fé”, “crenças”, “pensamentos”, “sentimentos” e “emoções” são as palavras que acompanham a disciplina na ata de criação.

Já escrevemos ad nauseam sobre a utilização indevida da mecânica quântica em contextos terapêuticos. O desconhecimento do que é a mecânica quântica pela maioria da população permite a terminologia da área seja utilizada para propagar falsas ideias, emprestando um verniz de sofisticação ao que, no fim, não passa de pensamento mágico, superstição e esoterismo. Os conceitos quânticos, que se aplicam ao mundo dos átomos, não podem simplesmente ser estendidos para o nosso cotidiano. O mundo macroscópico em que vivemos, apesar de nele usarmos diversas tecnologias baseadas na física quântica (GPS, ressonância magnética, radioterapias, etc.), é clássico - não existe um "salto quântico" na sua vida.

A história recente da hecatombe brasileira frente à COVID-19 pôs em dolorosa evidência a incapacidade que muitos profissionais de saúde têm em separar o que é informação válida, conhecimento sólido, daquilo que não passa de ilusão, pensamento desejoso, idolatria de “mestres” indignos e ideação supersticiosa. Nunca é demais lembrar que pessoas estão morrendo e sofrendo por causa dessa falha trágica do ensino brasileiro.

Deveria ser papel das faculdades dar a seus estudantes as ferramentas para enxergar a diferença, fazer a distinção entre o plausível, o provável e o meramente quimérico. É obsceno que uma instituição pública de ensino superior proponha-se a borrar essas diferenças ainda mais, criando uma disciplina – obrigatória! – que pode muito bem acabar por dissolvê-las de vez, na mente dos futuros profissionais.

A enfermagem é um trabalho exigente, onde o profissional está sempre em risco de exaustão tanto física quanto emocional. A empatia, tão necessária ao exercício eficaz da profissão, torna o trabalhador vulnerável ao apelo perverso de falsas curas e promessas de alívio “fácil”. Não é desprezível o número de pseudociências nascidas em seu seio, como foi o caso do “toque terapêutico”, uma terapia supostamente “energética” criada por enfermeiras nos Estados Unidos e provada inválida por uma criança de 11 anos.

Essa vulnerabilidade, facilmente reconhecida e que muitas vezes deriva, infelizmente, de um dos maiores méritos dos que atuam na área, sua capacidade para a compaixão, deveria tornar os responsáveis pelo ensino da enfermagem mais, e não menos, rigorosos quanto ao que passam para seus pupilos. Formar profissionais de saúde é uma responsabilidade que não deve ser jamais subestimada.

É verdade que as universidades públicas já convivem há um bom tempo com disciplinas que estariam melhor colocadas em consultórios de cartomantes: o “caso de amor” das escolas de farmácia com a homeopatia é já um escândalo antigo, que se perpetua. Durante décadas, essas disciplinas foram tratadas como um “mal menor”, uma excentricidade tolerável ou irrelevante. Mas essa avaliação condescendente já era desculpa esfarrapada para negligência (epistêmica e com o uso de recursos públicos), mesmo antes da pandemia. Nos dias atuais, é injustificável.

O nebulizador de cloroquina e a “cura quântica” diferem em termos de cenografia, figurino e (em geral) letalidade, mas não nos enganemos: o tema – o roteiro – é exatamente o mesmo.

 

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Para evitar uma repetição tediosa de dados e argumentos, listamos abaixo parte do material já publicado sobre os maus usos da física quântica em saúde:

 

A mentira das terapias quânticas

 

Livro sobre "memória da água" não chega nem a estar errado

 

Física quântica para "um mundo melhor"

 

Ciência de verdade passa longe de "feira quântica"

 

O mundo mágico e perigoso da superstição quântica

 

Caricatura de ciência: a "Quântica da Prosperidade"

 

Terapias “energéticas” são contos de fadas

 

O escândalo da pseudociência na universidade pública

 

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