
A dor, apesar de evidentemente incômoda, tem um papel importante. A dor alerta, faz com que evitemos o perigo - ou deveria ser assim, pelo menos. A dor é a antítese do prazer, e existe sob diversas formas. Uma das piores - falo por experiência - é dor de dente. Só quem teve, sabe. É insuportável! Se pensarmos nos dentes como estruturas construídas para lidar com alimento, faz sentido uma dor tão intensa? Um novo estudo traz pistas que podem explicar o enigma.
Utilizando tomografias computadorizadas de altíssima resolução no Laboratório Nacional de Argonne, Illinois (EUA), uma equipe liderada por Yara Haridy e Neil Shubin (autor de Your Inner Fish, cuja leitura recomendo), da Universidade de Chicago, analisou fósseis de peixes primitivos e invertebrados dos períodos Cambriano e Ordoviciano, revelando que os primeiros tecidos dentários sensíveis — compostos por um material chamado dentina — não surgiram dentro da boca, mas sim na armadura sensorial externa de peixes sem mandíbula há cerca de 465 milhões a 470 milhões de anos.
Pequenos calombos mineralizados, chamados de odontódeos, cobriam o exoesqueleto de peixes primitivos. Essas estruturas, também encontradas em animais viventes, sobretudo peixes, são formadas por uma polpa macia cercada por dentina e coberta por uma substância mineralizada, como o esmalte, sendo estruturalmente semelhantes aos dentes. Contudo, em geral não têm a mesma função que os dentes.
Ancestralmente, longe de servirem para mastigar, sua principal função era sensorial: permitiam detectar mudanças na pressão da água, variações de temperatura ou até o contato com objetos no ambiente — uma adaptação crucial em mares rasos repletos de predadores como escorpiões-do-mar e cefalópodes gigantes. Um exemplo atual que ajuda a compreender isso é o peixe-gato-sugador, cujos odontódeos ainda hoje transmitem informações ao sistema nervoso, como mostram os estudos com animais desenvolvidos por Haridy.
Durante as análises, os pesquisadores também notaram semelhanças entre os odontódeos e estruturas sensoriais chamadas sensilas, que existem até hoje no exoesqueleto de animais como caranguejos, camarões e besouros. Essas estruturas são capazes de detectar estímulos do ambiente externo, funcionando como sensores táteis ou químicos. A semelhança entre essas estruturas sensoriais em grupos tão distintos — vertebrados e artrópodes — é um caso claro de convergência evolutiva, ou seja, quando duas linhagens evoluem soluções semelhantes para problemas parecidos, mesmo sem relação de parentesco próxima.
Ao investigar o fóssil Anatolepis, inicialmente visto como o mais antigo vertebrado com estruturas dentárias, a equipe ficou eufórica, num primeiro momento, ao identificar, debaixo de estruturas similares aos odontódeos, o que pareciam ser túbulos preenchidos com dentina. Contudo, análises comparativas com fósseis de artrópodes e animais modernos — como caranguejos, camarões e besouros — mostraram que essas estruturas eram mais semelhantes às sensilas, órgãos sensoriais típicos de invertebrados. Assim, Anatolepis foi reclassificado como um artrópode, não um vertebrado, resolvendo uma longa controvérsia taxonômica. A confusão se deu em parte pelo tamanho diminuto dos fósseis (cerca de 3 milímetros), o que tornava difícil observar suas estruturas internas sem o auxílio da tomografia.
A descoberta de que tanto artrópodes quanto vertebrados desenvolveram estruturas sensoriais mineralizadas de forma independente é um exemplo clássico de evolução convergente. Segundo Haridy, isso mostra que esses grupos, embora tenham evoluído de um ancestral comum sem partes duras, chegaram a soluções semelhantes para lidar com ambientes desafiadores — como a integração de sensores diretamente em suas armaduras externas.
Além disso, o estudo fornece suporte adicional à hipótese “de fora para dentro” (outside-in) sobre a evolução dos dentes: estruturas sensoriais externas teriam sido posteriormente internalizadas na boca, onde foram reaproveitadas ao longo do tempo para alimentação. “Primeiro vieram os sensores sensíveis na armadura; depois, com o surgimento das mandíbulas, tornou-se vantajoso desenvolver estruturas pontiagudas ao redor e dentro da boca — e algumas dessas acabaram virando dentes de fato”, explicou Haridy.
É um cenário que faz muito sentido evolutivo. Os vertebrados podem ser separados em vertebrados sem mandíbula e com mandíbula (há uma certa discussão se isso é válido do ponto de vista da sistemática, mas essa questão está fora do escopo do presente texto). Exemplos atuais de vertebrados sem mandíbula são as lampreias e feiticeiras. Sabemos, graças ao registro fóssil, que os primeiros vertebrados não tinham mandíbula, o que talvez não cause surpresa. Mas esses vertebrados sem mandíbula tinham armaduras ou exoesqueleto.
Essa reinterpretação tem implicações para como entendemos o desenvolvimento dos primeiros vertebrados com mandíbula. Ao que tudo indica, estruturas que originalmente serviam para sentir o ambiente — como as sensilas dos artrópodes e os odontódeos dos peixes — foram sendo recrutadas ao longo da evolução para outras finalidades, incluindo processar de alimento. Essa reutilização de estruturas pré-existentes é um tema recorrente na biologia evolutiva, e nos ajuda a compreender como inovações complexas podem surgir a partir de partes já disponíveis, que surgiram por outros motivos — um conceito que Stephen Jay Gould e Elisabeth Vrba popularizaram sob o termo exaptação.
Como já expliquei em outra ocasião, exaptações são características que desempenham uma determinada função atualmente, mas que não foram originalmente moldadas para isso pela seleção natural. Se a nova pesquisa for corroborada com mais estudos, então os dentes como os conhecemos é que são exaptações. Originalmente, a função seria sensorial. E aí estão as raízes profundas da dor de dente!
A hipótese rival para a origem dos dentes é a “de dentro para fora” (inside-out), segundo a qual os dentes surgiram primeiro e só depois é que foram utilizados para construir o exoesqueleto dos peixes primitivos. De acordo com essa hipótese, portanto, já em sua origem, os dentes tinham função de... bem, dentes. Assim, os dentes seriam adaptações propriamente ditas, enquanto os exoesqueletos seriam exaptações.
Por fim, embora a equipe não tenha confirmado o primeiro vertebrado conhecido, como esperava inicialmente, os resultados abriram uma nova e promissora linha de investigação. Para Neil Shubin, “foi decepcionante descobrir que Anatolepis não era um vertebrado, mas ficamos maravilhados com as novas ideias que surgiram. Isso nos levou em uma direção completamente diferente — e isso é a ciência”.
E você, gosta desse legado evolutivo – a sensibilidade dos dentes – ou, assim como eu, acha desnecessário?
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade