“Então, o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o Senhor Deus tomou do homem formou uma mulher; e trouxe-a a Adão” (Genesis 2:21-22). Essa é uma das crenças a respeito da criação da mulher. Minha mãe me ensinou assim. E se a memória não me falha, ela adicionou o seguinte comentário: “é por isso que a mulher tem uma costela a mais que o homem”. É surpreendente que um mito como esse tenha sobrevivido de alguma forma através dos séculos.
Em 1646 foi publicado o volume Pseudodoxia Epidemica or Enquiries into very many received tenents and commonly presumed truths (“Pseudodoxia Epidemica ou Investigação de Muitas Crenças Aceitas e Verdades Comumente Presumidas”, em livre tradução), de autoria do polímata inglês Sir Thomas Browne. O livro, também conhecido como "Erros Vulgares", examina uma série de superstições, mitos e conceitos equivocados que circulavam na sociedade da época, abordando temas variados como história, ciência, biologia e religião.
Em um esforço pioneiro para combater a desinformação e promover uma abordagem mais racional e empírica do conhecimento, Browne usa a lógica, a observação empírica e a ciência emergente para corrigir equívocos, como a crença de que avestruzes podem digerir ferro ou de que unicórnios realmente existem. E também para desfazer o mito de que o homem tem uma costela a menos que a mulher. No segundo capítulo do livro VII do volume, Browne nos assegura que esse mito não sobrevive ao estudo anatômico de ambos os sexos. Lamento, mamãe.
Hoje sabemos (como Deus provavelmente já sabia), que não é uma boa ideia alterar o número de costelas de um mamífero. Principalmente, não é uma boa ideia acrescentar costelas no pescoço. Embora costelas cervicais – ligadas às vértebras da região cervical, isto é, do pescoço – não sejam comuns em mamíferos, elas são comuns em outros grupos de seres vivos, atuais ou extintos. Mas é sobre o eventual surgimento de costelas cervicais em mamíferos que eu quero falar hoje, dado que algumas lições evolutivas podem ser tiradas desse curioso fenômeno.
Cervos e costelas cervicais
Em setembro de 2024, foi publicado no periódico PNAS o artigo Increased Incidences of Cervical Ribs in Deer Indicate Extinction Risk ("Aumento na Incidência de Costelas Cervicais em Cervos Indica Risco de Extinção", em livre tradução). Este estudo analisou a presença de costelas cervicais (costelas anormais que se formam nas vértebras do pescoço) em espécies de cervos e relacionou essa característica a riscos de extinção. Os mamíferos geralmente têm sete vértebras cervicais, e mudanças nesse padrão são raras. Quando aparecem, indicam problemas genéticos ou ambientais que afetam o desenvolvimento embrionário. Como ressaltam os autores:
“Elevadas incidências de costelas cervicais foram encontradas em crianças com câncer [15% a 25%] e em fetos falecidos [aproximadamente 50%]. A presença de números cervicais anormais está associada a anomalias esqueléticas e a uma variedade de defeitos congênitos em uma ampla gama de mamíferos”.
Estudos anteriores já haviam encontrado uma alta incidência de costelas cervicais em espécies como o mamute-lanoso e o rinoceronte-lanoso, antes de sua extinção. O objetivo do estudo, então, foi testar se a presença de costelas cervicais está associada a populações de cervos que passaram por gargalos genéticos (quando o número de indivíduos de uma espécie é drasticamente reduzido) e endocruzamento (cruzamento entre parentes próximos), o que poderia indicar um risco maior de extinção.
Para tanto, os pesquisadores tiveram que analisar dados de diferentes espécies. O cervo-gigante irlandês (Megaloceros giganteus) — uma espécie extinta do final do Pleistoceno; o cervo de Père David (Elaphurus davidianus) — uma espécie que quase foi extinta, mas foi preservada em cativeiro; e, finalmente, cerca de 20 espécies de outros cervos modernos, incluindo a espécie mais próxima do cervo-gigante (35), o gamo (Dama dama) — usadas como comparação, já que têm populações saudáveis, nas quais o endocruzamento não é a norma.
Os principais resultados foram os seguintes:
Cerca de 28,6% dos cervos-gigantes irlandeses analisados tinham costelas cervicais.
Nos cervos de Père David, a taxa foi de 27,3%.
Em comparação, apenas 1,7% das espécies modernas saudáveis apresentaram essa característica.
As costelas cervicais são mais comuns em populações que passaram por gargalos genéticos e estão sujeitas a endocruzamento.
Os pesquisadores também observaram que essas costelas podem ser pequenas e assimétricas, ou até completamente fundidas à vértebra. Adicionalmente, o aparecimento dessas costelas cervicais estava associado a outras anomalias esqueléticas, como vértebras fundidas ou malformadas.
De acordo com o time de pesquisadores, esses resultados reforçam a hipótese de que populações em declínio sofrem com a perda de diversidade genética, o que aumenta a incidência de características prejudiciais, como as costelas cervicais. Isso é consistente com o que foi observado em espécies extintas, como mamutes. Finalmente, o estudo sugere que a presença de costelas cervicais pode ser usada como um indicador prático de endocruzamento e risco de extinção em populações de mamíferos. Esse indicador pode ser particularmente útil em situações onde a coleta de dados genéticos seja difícil ou impraticável.
Lições evolutivas
Em sua obra mais importante, Darwin (1859, p. 84) escreveu sobre o funcionamento do (em sua visão) implacável mecanismo que ele propunha:
“Pode-se dizer que a seleção natural está, diariamente e a cada hora, examinando minuciosamente, em todo o mundo, cada variação, mesmo as mais sutis; rejeitando o que é prejudicial, preservando e acumulando tudo o que é benéfico; trabalhando de forma silenciosa e imperceptível, sempre que e onde quer que surja uma oportunidade, para o aprimoramento de cada ser orgânico em relação às suas condições de vida, tanto orgânicas quanto inorgânicas”.
Se isso é verdade, como é possível que a frequência de costelas cervicais (com seus efeitos prejudiciais) tenha se elevado em populações de cervos, mamutes e rinocerontes? Ao contrário do que muito se diz por aí, a seleção natural não é implacável. Existe uma dança entre seleção natural e outros mecanismos, como a deriva genética. Em pequenas populações (mais especificamente, em populações onde o número de indivíduos efetivamente participando da reprodução é pequeno), é possível e bastante provável que a atuação desse mecanismo possa elevar a frequência de uma característica que não beneficia o indivíduo, e pode até mesmo prejudicá-lo. Isto é, a seleção pode ser vencida pela deriva.
Ainda, o fenômeno das costelas cervicais em mamíferos pode nos ensinar sobre as limitações na variação sobre a qual a seleção natural atua. Por razões provavelmente embriológicas, alterar o número de costelas cervicais em mamíferos é algo perigoso. Isso limita o tipo de variação disponível para a seleção natural filtrar. Por exemplo, torna mais difícil criar mamíferos com pescoços enormes, cujo tamanho dependa do número de vertebras — as girafas, apesar do enorme pescoço, têm apenas sete vértebras cervicais. Esse tipo de limitação não vale, por exemplo, para os répteis, como você pode constatar comparando o número bastante variável de vértebras em dinossauros saurópodes (aqueles pescoçudos). O fato de haver uma restrição no número de vértebras cervicais que um mamífero pode geralmente ter torna a evolução mais previsível ao longo de certos canais (no sentido de mudanças possíveis) do que outros.
Ou seja, qualquer viés na introdução de variação pode limitar os poderes da seleção natural em construir adaptações, mas também pode tornar alguns tipos de mudança mais prováveis que outros e, assim, até mesmo ter influência em escalas de tempo macroevolutivas. Por exemplo, este estudo mostra que vieses no desenvolvimento das asas de insetos preveem variação individual, efeitos de mutações e divergências macroevolutivas ao longo de aproximadamente 60 milhões de anos. Isso sugere que esses vieses são fortes preditores de diversificação a curto e longo prazo. Os vieses no desenvolvimento podem tanto limitar quanto apontar canais menos ou mais prováveis de mudança evolutiva.
É uma doce ironia que um osso tão simples e frequentemente negligenciado quanto uma costela possa nos fazer ponderar sobre questões tão complexas. O diabo está nos detalhes?
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade