Com a proximidade das festas de fim de ano, nada mais apropriado do que um tema que se alinha com o período: o consumo de álcool. O mais comum nessas ocasiões é o consumo exagerado de comidas deliciosas – e aqui faço uma defesa do arroz com uvas-passas –, o reencontro com familiares nem sempre agradáveis e, claro, a ingestão de algumas taças de vinho.
Vale ressaltar que, se considerarmos o relatório Canada’s Guidance on Alcohol and Health: Final Report, publicado em 2023 pela ONG Canadian Centre on Substance Use and Addiction (CCSA), podemos observar que o único nível considerado seguro ali é “zero drinks por semana”. No entanto, o consumo de uma pequena quantidade de álcool (uma a duas bebidas-padrão por semana, equivalente a não mais do que 26,90 gramas de álcool puro, ou uma a duas latas de cerveja ou uma a duas taças de vinho) provavelmente não causará efeitos prejudiciais em pessoas saudáveis.
Entretanto, a crença antiga, baseada em alguns estudos observacionais que associaram o consumo diário de uma taça de vinho - geralmente tinto - a desfechos positivos para a saúde, ainda persiste. Essa ideia continua a circular na mídia e a influenciar leitores desavisados.
Por exemplo, o jornal O Globo, em junho de 2023, publicou matéria intitulada “Os 10 benefícios do consumo de vinho tinto”, que afirmava que o consumo moderado da bebida (duas taças para homens, uma taça para mulheres) poderia ajudar a reduzir o risco de desenvolvimento de diversas doenças, desde Alzheimer até diabetes tipo 2, além de promover melhorias no sistema cardiovascular, imune e na cognição.
Em teoria, esses benefícios seriam atribuídos ao resveratrol, uma substância encontrada principalmente na casca das uvas de coloração preta e roxa e, em menor quantidade, em alguns outros vegetais, frutas e sementes (como o amendoim e frutas vermelhas). Nesses alimentos, o resveratrol atua como uma defesa contra a invasão de fungos, estresse e lesões. Para nós, seres humanos, ele é estudado principalmente por sua atividade antioxidante.
Curiosamente, menos de um ano após essa publicação, o próprio O Globo publicou “Vinho: mitos e verdades sobre a relação da bebida com a saúde”, matéria indicando que, apesar de o vinho, por quase duas décadas, ter sido a bebida favorita da medicina devido aos seus supostos benefícios à saúde, evidências recentes apontam que o álcool nele contido poderia, além de anular qualquer benefício do resveratrol, aumentar o risco de hipertensão e de arritmia cardíaca.
De onde veio a ideia?
Durante minha pesquisa para entender as raízes da alegação de que o vinho pode fazer bem para a saúde, encontrei o trabalho de Leger, A.; Cochrane, A. e Moore, F., publicado em 1979, intitulado “Factors Associated with Cardiac Mortality in Developed Countries with Particular Reference to The Consumption of Wine”, aparentemente um dos primeiros a sugerir a hipótese de que o consumo de vinho poderia proteger contra doenças cardiovasculares.
Este trabalho, na verdade, é uma continuação de outra pesquisa conduzida pelos mesmos autores, intitulada “Health service ‘input’ and mortality ‘output’ in developed countries”, na qual os pesquisadores buscaram identificar alguns fatores que poderiam explicar as diferenças na mortalidade e nos custos de saúde per capita em 18 diferentes países desenvolvidos.
Um ano após a publicação original, o trio de pesquisadores conduziu uma nova pesquisa – aquela citada no início desta seção –, com o intuito de investigar quais seriam as variáveis possivelmente relacionadas à mortalidade por doenças cardiovasculares nos 18 países.
O consumo de cigarros apresentou uma forte associação positiva com a mortalidade por bronquite e uma associação significativa, em ambos os sexos, para mortes por doenças hipertensivas. Curiosamente, o consumo de álcool seguiu uma direção contrária e apresentou uma forte relação negativa com a mortalidade por doença cardíaca isquêmica em ambos os sexos. Além disso, dentre as bebidas analisadas, o vinho foi a que apresentou a associação negativa mais forte com a mortalidade por isquemia cardíaca. O efeito observado do vinho foi consistente, independentemente das outras variáveis, como consumo de cigarros, ou mesmo fatores econômicos.
Quase na mesma época em que esses resultados vieram à tona, os pesquisadores franceses Ducimetière, Cambien e Richard cunharam o termo "Paradoxo Francês" após compararem os níveis de doenças cardíacas com dados de ingestão de gordura fornecidos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). "Paradoxo Francês" refere-se à observação de que a França, em comparação com outros países, apresenta baixas taxas de mortalidade por doenças cardíacas coronarianas (DCC), apesar do alto consumo de colesterol alimentar e gorduras saturadas.
Dentre as inúmeras hipóteses sugeridas para explicar o “paradoxo”, uma se destacou mais do que as outras: o consumo de álcool, e mais especificamente de vinho.
Antes de usar isso como desculpa para embebedar-se de vinho, há algumas considerações feitas pelo pesquisador Jean Ferrières em seu artigo “French Paradox: Lessons for Other Countries”. Ferrières explora outras hipóteses que poderiam explicar o paradoxo francês.
Uma dessas hipóteses é a possibilidade de uma subdeclaração de mortes por DCC na França, o que, obviamente, poderia ter afetado os resultados. No entanto, é importante destacar que as taxas de óbitos analisadas são baseadas em dados validados e padronizados, o que diminui a plausibilidade dessa hipótese.
Outra explicação alternativa considera que os estudos que verificaram a relação entre consumo de vinho e doença isquêmica são do tipo observacional, ou seja, esses estudos conseguem apenas identificar correlações entre a intervenção e o desfecho, mas não estabelecem causalidade.
Uma terceira explicação – e talvez a mais provável – atribui o efeito a níveis baixos de homocisteína, um aminoácido que, quando elevado, está associado a problemas de saúde cardiovascular, ao aumento do risco de coágulos sanguíneos e à demência. Níveis baixos de homocisteína foram observados em algumas cidades francesas, como Toulouse, que apresentam alto consumo de frutas e vegetais, fontes ricas em folato (vitamina B9), que interage diretamente com a homocisteína, ajudando a reduzir seus níveis na corrente sanguínea.
A partir desses levantamentos, Ferrières conclui que os dados atualmente disponíveis apontam que as tendências nas taxas de incidência e mortalidade por DCC são diretamente influenciadas por fatores ambientais e comportamentais. Ele aponta que o conceito do paradoxo francês aborda fatores de risco clássicos, mas não leva em consideração os fatores de proteção específicos, e amplamente não identificados, de cada região.
Por conta disso, destaca-se que esse paradoxo não oferece lições para outros países – e nem deve ser utilizado como uma diretriz –, visto que cada nação provavelmente possui suas próprias soluções preventivas adequadas.
Mas é possível que o vinho seja um desses “protetores específicos”?
Sim, embora eu não aposte nisso. Minha posição, neste caso, se assemelha ao do médico, e diretor do Instituto de Saúde, Política de Cuidados de Saúde e Pesquisa sobre Envelhecimento da Faculdade Rutgers, Xinqi Dong, que, em matéria publicada no site da própria instituição, relatou que estudos sobre o tema apresentam resultados conflitantes, o que impede um parecer definitivo do efeito do vinho – ou do resveratrol – na saúde cardiovascular.
Dong afirma: “Se você não consome vinho ou outras bebidas alcoólicas, não há necessidade de começar para alcançar ou manter a saúde. Além disso, quaisquer benefícios potenciais da ingestão da bebida podem não ser os mesmos para diferentes populações, como a dos idosos, cujos organismos podem levar mais tempo para metabolizar o álcool, ou para pessoas com outras condições ou que utilizam certos medicamentos”. E continua: “Se você consome vinho ou outras bebidas alcoólicas, é melhor fazê-lo com moderação e de forma responsável. Lembre-se de que isso não compensará outras escolhas de dieta e estilo de vida pouco saudáveis”.
Álcool e saúde
Deixando o vinho de lado para obter uma visão mais abrangente do papel do álcool nos desfechos de saúde, temos o artigo de Zhao, J. e colegas intitulado “Association Between Daily Alcohol Intake and Risk of All-Cause Mortality: A Systematic Review and Meta-analyses”. Como o nome sugere, trata-se de uma revisão sistemática com metanálise atualizada – esses mesmos pesquisadores haviam investigado a questão em 2016 – que teve o objetivo de responder à seguinte pergunta: qual é a associação entre o consumo médio diário de álcool e a mortalidade por todas as causas?
Foi um trabalho complexo, envolvendo diversos tipos de controles (por exemplo, para sexo e idade) e de comparações entre grupos (abstêmios, bebedores leves, bebedores pesados, bebedores ocasionais), mas o resultado geral é claro: o consumo de álcool traz perigos para a saúde.
Vale ressaltar que, em todos os níveis de consumo de álcool, as mulheres apresentaram um risco relativo maior de mortalidade por todas as causas em comparação aos homens. Ainda mais significativo, ao comparar as mulheres que nunca consumiram álcool com as que bebiam – independentemente da quantidade –, observou-se que as mulheres que consumiam álcool apresentaram um aumento significativo no risco de mortalidade. Por exemplo, o aumento significativo do risco foi de 21% nas consumidoras de 25g a 44g/dia; 34% nas consumidoras de 45g a 64g/dia; e 61% nas consumidoras de 65g ou mais.
No sexo masculino, observou-se que, em comparação com os abstêmios ao longo da vida, houve um aumento significativo do risco de mortalidade por todas as causas entre homens que consumiam 45g a 64 g/dia e 65g ou mais (15% e 34%, respectivamente).
O trabalho não encontrou uma redução significativa no risco de mortalidade por todas as causas associada ao consumo de álcool em baixa quantidade, pondo em xeque a ideia de que um pouco de álcool pode “fazer bem” para a saúde.
Como esperado, este estudo apresentou inúmeras limitações importantes. No entanto, acredito que a maior delas seja o fato de a medição do consumo de álcool, na maioria dos estudos, ter sido realizada em apenas um único ponto no tempo. Além disso, o consumo de álcool autorrelatado é frequentemente subestimado na maioria dos estudos epidemiológicos, e até mesmo a classificação de consumo de álcool, variando de abstêmios ao longo da vida até consumidores de altas doses, pode ser pouco confiável, visto que inúmeros estudos verificaram que a maioria dos autodeclarados abstêmios são, na verdade, ex-consumidores. Se este for o caso, os riscos associados a diferentes níveis de consumo de álcool em relação aos presumidos abstêmios podem estar subestimados.
Com sorte, no futuro, teremos uma posição mais assertiva, especialmente se considerarmos que este ano foi protocolada uma nova revisão sistemática da Cochrane, que investigará os efeitos do consumo de álcool na progressão para insuficiência cardíaca sintomática em pessoas com risco para insuficiência cardíaca ou em pessoas com pré-insuficiência cardíaca. A revisão também avaliará os efeitos do consumo de álcool no desenvolvimento da insuficiência cardíaca a curto, médio e longo prazo.
No entanto, com base nos resultados, limitações e, em alguns casos, adendos dos estudos disponíveis hoje, acredito que podemos extrair algumas lições valiosas sobre o consumo de álcool, que provavelmente seriam ditas por uma mãe zelosa. Você não precisa beber álcool para ser mais saudável, os dados são mais obscuros do que parecem, e ainda não temos uma resposta conclusiva sobre se a ingestão traz algum benefício. Contudo, caso queira beber, beba com moderação (um a dois drinks-padrão para homens, e um para mulheres). Uma bebida ocasional, apesar de não trazer benefícios, provavelmente não trará malefícios para pessoas saudáveis.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
PARADIS, C. et al. The Low-Risk Alcohol Drinking Guidelines Scientific Expert Panels (2023). Canada’s Guidence on Alcohol and Health: Final Report. Disponível em: https://www.ccsa.ca/canadas-guidance-alcohol-and-health-final-report.
GLOBO. Os 10 benefícios do consudemos do vinho tinto para a saúde. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/06/os-10-beneficios-do-consumo-do-vinho-tinto-para-saude.ghtml.
GLOBO. Vinho: mitos e verdades sobre a relação da bebida com a saúde. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2024/02/22/vinho-mitos-e-verdades-sobre-a-relacao-da-bebida-com-a-saude.ghtml.
LEGER, A.; COCHRANE, A. e MOORE, F. Factors associated with cardiac mortality in developed countries with particular reference to the consumption of wine. Lancet. 1979 May 12;1(8124): 1017-20. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/86728/.
LEGER, A.; COCHRANE, A. e MOORE, F. Health service ‘input’ and mortality ‘output’ in developed countries. J Epidemiol Community Health (1978). Sep;32(3): 200-5. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/711980/.
ALUN, E. The French Paradox and Other Ecological Fallacies. Int J Epidemiol. 2011;40(6): 1486-1489. Disponível em: https://www.medscape.com/viewarticle/755549.
FERRIÈRES, J. The French Paradox: Lessons for other countries. Heart. 2004 Jan; 90(1): 107 - 111. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC1768013/.
DONG, X. Modern Myths of Aging: Red Wine and the ‘French Paradox’. Disponível em: https://ifh.rutgers.edu/highlight/modern-myths-of-aging-red-wine-and-the-truth-behind-the-french-paradox/.
ZHAO, J. et al. Association Between Daily Alcohol Intake and Risk of All-Cause Mortality: A Systematic Review and Meta-analyses. Jama Netw Open. 2023;6(3):236185. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2802963.