Imagine que um país resolva construir uma grande hidrelétrica em um rio compartilhado com um vizinho para aumentar a geração de energia renovável e atender à demanda de sua população. O país vizinho decide opor-se ao projeto, argumentando que ele causará a fragmentação do ecossistema fluvial, deslocará comunidades locais e prejudicará a biodiversidade. O primeiro país decide, então, colar um selinho em algum relatório por se adequar ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 7 – energia limpa e acessível, meta 7.2: “aumentar substancialmente a participação de energias renováveis na matriz energética global”. O país vizinho, por sua vez, cola a figurinha referente ao ODS 15 – vida terrestre, meta 15.1: “assegurar a conservação, recuperação e uso sustentável de ecossistemas terrestres e de água doce”.
Suponha agora que o presidente de um país resolva que é importante levar à frente uma política de captação de águas subterrâneas para irrigação agrícola em uma área semiárida, em consonância com o ODS 2 – fome zero e agricultura sustentável, meta 2.4: “garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos”. Mas ao mesmo tempo o prefeito da cidade decide que deve proibir a captação de água subterrânea para preservar os aquíferos da mesma região, com base no ODS 6 – água potável e saneamento, meta 6.6: “proteger e restaurar os ecossistemas relacionados à água”.
As suposições apresentadas, no entanto, são mutuamente excludentes. Trata-se de uma questão de lógica: é impossível realizar e não realizar a mesma ação simultaneamente. Assim, qualquer iniciativa que considere igualmente válidas uma ideia A e sua negação, não-A, certamente apresenta algum equívoco.
Os ODS fazem parte do plano global adotado pela ONU em 2015 chamado Agenda 2030. Esta agenda consiste em 17 ODS e 169 metas. De acordo com o site da ONU, os ODS são “um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”.
A Agenda 2030, além de abrigar iniciativas por vezes incompatíveis entre si, parece flexível a ponto de permitir a execução de quase qualquer projeto imaginável, desde que não seja explicitamente ilegal ou prejudicial à Humanidade, como uma guerra, por exemplo. Uma brincadeira divertida é consultar inteligências artificiais como o ChatGPT, da OpenAI, ou o Gemini, do Google, sobre se atividades triviais, como jogar dominó após o almoço, podem ser relacionadas a algum Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – as respostas são afirmativas, acompanhadas de menções a várias metas que poderiam ser teoricamente alcançadas.
É compreensível que a participação de 193 Estados-membros da ONU torne desafiador criar algo verdadeiramente objetivo, sendo natural, portanto, que uma adesão tão ampla resulte em uma proposta mais voltada para intenções gerais, no estilo “vamos salvar o mundo”. É bom que se diga que, como efeito colateral positivo, essa ampla representatividade também reduz praticamente a zero a possibilidade de intenções insidiosas, desmentindo teorias conspiratórias defendidas por alguns chefes de Estado.
Matéria de El Diario, por exemplo, traz uma fala do presidente argentino Javier Milei sobre a Agenda 2030. Em tradução livre: “A Agenda 2030 nada mais é do que um programa governamental supranacional de natureza socialista, que visa resolver os problemas da modernidade com soluções que ameaçam a soberania do Estado Nação e violam o direito à vida, à liberdade e à propriedade dos povos”. Acreditar em um complô mundial socialista ou imaginar que a Agenda 2030 impõe restrições de qualquer tipo é algo digno de um chapéu de papel alumínio na cabeça.
Se a declaração destemperada do presidente da Argentina não surpreende, o que realmente chama a atenção é o peso dado por líderes e instituições a um projeto em que praticamente tudo é aceitável, inclusive medidas diametralmente opostas. Nesse contexto, a Agenda 2030 se assemelha a uma gincana de “caça ao tesouro” em que qualquer coisa conta como “tesouro” e, portanto, merece prêmio. Tal tipo de “reconhecimento” ou “exaltação” seria compreensível como parte de uma iniciativa destinada a distrair crianças, mantendo-as felizes e ocupadas, mas claramente não é esse o caso.
Apesar de toda a vastidão de ações contempladas nas 169 metas, em evento paralelo à última reunião do G20 Social foi lançado o ODS18, igualdade étnico-racial, pelo governo federal (embora a Agenda 2030 seja uma iniciativa da ONU, países podem, unilateralmente, criar ODS com base na realidade local. O Laos, por exemplo, tem um ODS específico para tratar de bombas, minas terrestres e munições não detonadas). Não dá para imaginar nenhuma ação – exceto atrocidades óbvias – que não possa ser interpretada como atendendo à meta 10.2, “até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra”, e que, portanto, requeira a criação do ODS18 (desconsiderando, obviamente, necessidades de cunho publicitário-passional).
Ao fim e ao cabo, embora a imensa maioria das pessoas esteja empenhada em fazer um mundo melhor (diga-se de passagem, segundo concepções pessoais do que é bom ou ruim), a Agenda 2030 não vai muito além do que uma coleção de selos de sinalização de virtude. Como escreveu Dostoiévski nas suas Memórias do Subsolo: “transformaria em belo e sublime tudo o que existe no mundo. Amo tudo o que é ‘belo e sublime’. E exigiria por isto respeito a mim mesmo, e perseguiria quem não me tributasse este respeito”.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência