Criacionistas se tornam obsessivos quando o assunto é “ícones da evolução”, os exemplos clássicos que são boas demonstrações da lógica darwiniana. Existem textos e mais textos “refutando” a importância do Archaeopteryx para a compreensão da evolução das aves, ou do Tiktaalik para a evolução dos tetrápodes (vertebrados terrestres), ou o caso da adaptação das mariposas à poluição industrial no século 19. Há um livro inteiro dedicado a “desmantelar” esses grandes exemplos — Icons of Evolution: Science or Myth?, de autoria do falecido Jonathan Wells. Fui (des)informado recentemente de que outro ícone está “prestes a cair”: a aquisição de características mamalianas (isto é, de mamíferos) como observada no registro fóssil. Aliás, já falamos disso aqui.
Günter Bechly é um paleo-entomólogo alemão especializado na história fóssil e na sistemática de insetos (especialmente libélulas). Atuou como curador de âmbar e insetos fósseis no departamento de paleontologia do Museu Estadual de História Natural (SMNS) em Stuttgart, Alemanha. Bechly também é Senior Fellow no Centro de Ciência e Cultura do Discovery Institute, famoso “think tank” criacionista. Escreve para o Evolution News, a voz diária do Design Inteligente. Bechly diz que novos estudos não trazem boas novas para a evolução, já que mais um ícone parece estar sendo destronado. Segundo ele:
“Quando questionados sobre o que, em sua opinião, representa a melhor evidência para a narrativa darwiniana de descendência comum com modificação, os evolucionistas geralmente se referem ao registro fóssil, especialmente às supostas séries transicionais, como as de cavalos, elefantes, baleias, hominídeos, de peixes com nadadeiras lobadas para tetrápodes, de dinossauros para aves e, sobretudo, a transição de répteis para mamíferos. Esta última alegadamente demonstra uma transformação inequívoca da articulação da mandíbula, de um estado reptiliano primitivo para a condição derivada dos mamíferos, correlacionada com a redução de ossos e a incorporação da articulação original da mandíbula no ouvido dos mamíferos, como ossículos auditivos”.
Bechly, contudo, ressalta que o cenário tem se revelado mais complexo, e cita estudo recente publicado na revista Nature. Antes de discutir as principais conclusões do estudo, contudo, é preciso contextualizar. Entre os vertebrados terrestres viventes, os mamíferos têm a característica exclusiva de apresentar a mandíbula formada por um único osso, o osso dentário, que se articula com o osso esquamosal do crânio, formando a junta dentário-esquamosal (D-SQ daqui em diante). Nessa junta, a parte do dentário que articula com o esquamosal é arredondada (chamada “côndilo”), e a parte do esquamosal em que o côndilo encaixa forma uma cavidade (a glenóide).
Essa condição é diferente da dos ancestrais mais longínquos dos mamíferos, pois neles a mandíbula é composta por vários ossos, não só o dentário, e o contato entre crânio e mandíbula se dá entre os ossos articular (da mandíbula) e quadrado (do crânio). Em alguns parentes mais próximos dos mamíferos, como Morganucodon, há duas juntas, uma D-SQ e uma articular-quadrado, o que em si já é uma boa evidência de como se deu a “transição” para a condição particular da mandíbula e ossos do ouvido dos mamíferos — uma das juntas assumiu o papel de articulação, enquanto os componentes da outra puderem derivar para outras morfologias, no fim dando origem ao ouvido interno dos mamíferos.
O novo estudo, liderado por James Rawson, da Universidade de Bristol, examinou fósseis importantes para entender a evolução do aparato mandibular dos mamíferos. Entre os fósseis examinados, destacam-se espécimes de Riograndia guaibensis e Brasilodon quadrangularis, ambas espécies que viveram onde hoje é o Rio Grande do Sul, há cerca de 225 milhões de anos. Além dos pesquisadores de Bristol, o estudo conta com a fundamental participação de Agustín Martinelli (CONICET, Argentina) e dos paleontólogos brasileiros César Leandro Schultz (UFRGS) e Marina Bento Soares (Museu Nacional).
O time de pesquisadores usou tomografia computadorizada para avaliar com precisão a morfologia dos espécimes. Entre as principais conclusões, destaca-se que Riograndia agora detém o título de gênero mais antigo conhecido com uma articulação D-SQ, pelo menos 20 milhões de anos antes dos tritelodontes africanos, que apresentam tanto a articulação D-SQ quanto a articular-quadrado, e pelo menos 17 milhões de anos antes do mamífero mais antigo conhecido com uma articulação D-SQ. O Riograndia tem parentesco mais próximo com os tritelodontes do que com os mamíferos. Isso sugere que o contato D-SQ evoluiu pelo menos duas vezes independentemente, uma na linhagem que daria origem as mamíferos, e outra na linhagem de Riograndia e dos tritelodontes.
Vale ressaltar, contudo, que as articulações entre dentário e esquamosal observadas em Riograndia e em mamíferos não são idênticas. No caso dos mamíferos, o encaixe se dá “de baixo para cima”, com o côndilo entrando na cavidade. Já no Riograndia, o contato entre mandíbula e crânio é lateral.
São aquisições diferentes e independentes de uma mesma característica. Portanto, não consigo compreender por que Bechly acha que “definitivamente, parece que estamos testemunhando o início da desconstrução de mais um ícone da evolução”. Pelo contrário, o cenário só reforça alguma “facilidade” na evolução de uma característica, já que surgiu, de modo independente, mais de uma vez. Não é como se a evolução estivesse tentando construir mamíferos, mas, talvez por razões de desenvolvimento embriológico e exigências funcionais, algumas conformações tenham se mostrado mais prováveis do que outras. O que observamos aqui é a evolução (de modo nem um pouco surpreendente) construindo o que é mais fácil.
E por falar nisso, cabe ainda ressaltar que, além do contato D-SQ, Riograndia também exibe o contato ancestral entre articular e quadrado. Ou seja, temos mais um exemplo de como se pareceria um estágio intermediário dentre a condição observada nos mamíferos (D-SQ, apenas) e aquela observada em seus ancestrais mais distantes (articular-quadrado, apenas). O que só torna mais difícil de compreender como um criacionista pode imaginar que o novo estudo de alguma forma desgasta este “ícone” da evolução.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
PARA SABER MAIS
Rawson, J. R., Martinelli, A. G., Gill, P. G., Soares, M. B., Schultz, C. L., & Rayfield, E. J. (2024). Brazilian fossils reveal homoplasy in the oldest mammalian jaw joint. Nature, 1-8. https://www.nature.com/articles/s41586-024-07971-3
Luo, Z. X. (2024). A jaw-dropping discovery about early mammals. https://www.nature.com/articles/d41586-024-03038-5