Recentemente, uma jornalista do Instituto Federal de Santa Catarina, onde trabalho, me apareceu com uma pergunta sobre como poderíamos perceber, através experiência cotidiana mesmo, que a Terra é redonda, uma vez que é surpreendente como as alegações terraplanistas têm se propagado e ganhado adeptos nos anos recentes. Responder à questão não é uma tarefa simples, basta olhar para o céu: podemos jurar, se confiarmos cegamente (aproveitando o trocadilho) nos nossos sentidos, que a Terra está parada, e que são os astros que giram ao nosso redor, cruzando o céu de leste a oeste, dia após dia e noite após noite: o Sol, a Lua e as estrelas.
Teorias científicas por vezes vão fazer afirmações que entram em rota de colisão com aquilo que concluímos intuitivamente, e não há dúvidas de que esse é um obstáculo importante que precisa ser enfrentado quando queremos ensinar ciência a alguém. Uma dessas afirmações é a de que o movimento diário dos astros é fruto do movimento de rotação da própria Terra: um planeta redondo que gira de oeste para leste e completa uma volta a cada cerca de 24 horas.
No contexto da Terra plana, esse apelo à supervalorização dos nossos sentidos, em detrimento de bons experimentos científicos, está no cerne de muitos dos argumentos apresentados. Em um dos exemplos, o rapper norte-americano B.o.B. levanta dúvidas sobre a forma da Terra justamente por não conseguir perceber a curvatura do planeta; outro exemplo aparece em uma entrevista de Danilo Gentili com um grupo de terraplanistas, na qual um deles prontamente afirma que água derramada sobre uma bola simplesmente escorre sobre ela, o que implicaria na impossibilidade de o nosso planeta ser redondo e conter imensos oceanos de água “grudada” na superfície.
Com base no que muito bem já argumentou Carlos Orsi, boa parte dos convertidos ao terraplanismo, em particular, ou a muitas outras pseudociências, no geral, aderiram a essas ideias justamente porque lhes pareceram corretas, uma consequência do fato de que realmente não é fácil estruturar um pensamento científico capaz de refutar rapidamente as asneiras a que o cidadão desavisado é exposto nesses contextos, como a da água na bola e da tentativa inútil de “ver” a curva da Terra redonda.
Portanto, a missão é nobre. Vale a pena dedicar alguns parágrafos para (tentar) indicar um meio relativamente simples e cotidiano para perceber os efeitos da rotação do nosso planeta redondo. Mas, primeiro, é preciso fazer uma rápida reflexão para gerar pelo menos um pouco de insegurança naqueles que acham que são apenas os nossos sentidos os juízes absolutos para dizer o que é certo e o que não é.
Sentidos sem sentido
Nossos sentidos são limitados e se mostram instrumentos imperfeitos para desvendar como o mundo funciona. Nossos olhos não podem perceber objetos menores que uma frações de milímetro; nossos ouvidos não escutam o som que é gerado por um aparelho de ultrassom, durante um exame de imagem.
Para descobrir os fatos do Universo, a impressão imediata dos sentidos precisa ser complementada por instrumentos – telescópios, microscópios, sondas, satélites etc. – e pelo uso da razão. No mundo antigo, séculos antes da invenção dos telescópios, vários filósofos, depois de considerar logicamente diversas observações feitas a olho nu – da sombra da Terra na Lua durante eclipses ao fato de que estrelas diferentes aparecem no céu à medida que um viajante se desloca para o norte ou para o sul – já haviam deduzido, por exemplo, que a Terra é redonda.
O fato de nossos sentidos serem incapazes de, sem ajuda, perceber certas coisas, como a curvatura da Terra, ou seu movimento ao redor de si, ou ao redor do Sol, não deve, então, soar assim tão importante na hora de decidir sobre se essas afirmações são verdadeiras ou falsas. Essa conversa deveria ser suficiente para abrir as portas (e, para muitas pessoas, de fato abre) para se receber mais facilmente uma série de evidências em favor da Terra redonda.
Explorei várias delas em um dos capítulos de um livro que escrevi sobre pseudociências. Por exemplo: um sistema heliocêntrico – com o Sol no centro do Sistema Solar, e não a Terra – é mais simples para explicar os movimentos planetários; o experimento de Eratóstenes, por meio do qual foi possível determinar o tamanho da Terra há mais de 2 mil anos, mas que depende de medidas em locais distantes para se perceber seus resultados; as diferenças e as semelhanças nas estrelas visíveis no céu noturno em diferentes locais do planeta, na mesma época do ano e/ou na mesma noite; a recepção de sinais de GPS no celular, algo que só ocorre porque existem satélites em órbita ao redor de nossa Terra redonda; os efeitos de eclipses lunares ao longo do tempo, que sempre mostram a mesma forma para a sombra da Terra projetada na Lua; e até as inúmeras fotos, vídeos e relatos de astronautas e de missões espaciais.
Só para deixar claro: todas essas evidências são esmagadoras em favor da Terra redonda, e suficientes para determinar, de forma conclusiva, o formato do planeta. Mas, como cerca de 11 milhões de brasileiros (segundo estimativas publicadas em 2019) acreditam que a Terra é plana, não me surpreenderia que alguém exposto a tudo isso ainda retrucasse algo como: “mas eu não vejo os satélites, não viajei para o espaço, não tenho como ir a diferentes lugares do planeta fazer fotos do céu e também não vou esperar um século para acompanhar todos os eclipses lunares exibindo a mesma forma da sombra da Terra projetada na Lua”.
Bem, então, se você é destes que quer colocar a mão na massa para fazer algo que indique o movimento de rotação da Terra bem diante dos seus olhos, tudo o que você precisa construir é um pêndulo.
O pêndulo de Foucault
Um pêndulo simples é constituído por um fio preso a um suporte (no teto, por exemplo) e uma massa pendurada na ponta livre. Se a massa for deslocada levemente da vertical de repouso e abandonada, ela começa um movimento oscilatório, um “vai-e-vem” cíclico que pode ser medido para se determinar, por exemplo, o valor da gravidade no local onde o sistema está montado. Essa é uma das maneiras de se obter o valor médio para a superfície da Terra em torno de 9,8 m/s2 que aprendemos na escola (e que, como sei bem, costumamos arredondar usando a famosa expressão “g igual a 10”).
Para além disso – e aí chegaremos ao sistema pendular proposto pelo francês Jean Bernard Léon Foucault no século 19 –, se o pêndulo for afixado no teto usando um sistema que lhe permita oscilar em qualquer direção, e se as suas características e as do ambiente forem tais que lhe permitam permanecer pendulando por horas a fio (e, aqui, há um guia inicial de como você pode fazer isso), o que se perceberá é que o plano da oscilação vai se alterando ao longo do tempo, um movimento conhecido por “precessão”. E, ainda mais curioso: construindo esse aparato no Hemisfério Sul, a precessão será em sentido anti-horário; se for no Hemisfério Norte, será ao contrário; e quanto mais próximo dos polos você construir um, mais rapidamente a precessão ocorre; finalmente, se você mora sobre a Linha do Equador, não testemunhará a precessão.
Isso acontece justamente porque a Terra é redonda, com dois hemisférios, e gira ao redor de si mesma. Por consequência, surge a chamada “Força de Coriolis”, um efeito que também se pode perceber no cotidiano, bastando, para isso, se aventurar em um carrossel, em um parque de diversões: depois que o brinquedo entrar em movimento, tente caminhar em linha reta do centro até a borda, ou vice-versa; você vai sentir que, enquanto tenta seguir em frente, parece surgir uma força que insiste em empurrá-lo para o lado. É essa força que nos interessa aqui: um efeito aparente que surge sobre objetos que se movem enquanto acoplados a sistemas girantes, como você, no carrossel, ou como o pêndulo de Foucault, no planeta Terra.
Sabendo disso, podemos finalmente usar esse efeito para investigar a plausibilidade do cenário da Terra plana, aquele em que nosso planeta é simplesmente uma “pizza” estática sobre a qual pairam o Sol e a Lua, movendo-se circularmente sobre a superfície para fazer surgir o dia e a noite.
Caso a Terra fosse mesmo plana e estática, os pêndulos simplesmente não sofreriam precessão. Fim da história. Mesmo se terraplanistas passassem, de repente, para tentar “salvar as aparências”, a sustentar que “a pizza” terrestre gira, como um disco de vinil na vitrola, então o movimento de precessão de fato surgiria, mas ainda não seria da forma como já sabemos que acontece no mundo real, ou seja, não deveria acontecer a inversão do sentido do movimento em diferentes regiões da “pizza”.
Por outro lado, partindo de equações que assumem que a Terra é redonda e que gira em torno de si mesma, Foucault calculou quanto tempo seria necessário para que a precessão de seu pêndulo completasse uma volta quando fosse montado em Paris, obtendo um resultado de um pouco menos de 32 horas. Em 1851, o sistema foi posto à prova: uma massa de cerca de 30 kg foi presa para oscilar junto a um fio de quase 70 metros, em um ambiente fechado, livre de correntes de ar. O sistema completou uma volta de precessão em sentido horário e no período de tempo de acordo com o previsto.
Ou seja, é justamente com base nas equações relacionadas à dinâmica de um planeta redondo e giratório que o comportamento de precessão pendular pode ser previsto para qualquer lugar da Terra, inclusive aí onde você mora. Para quem gosta de matemática, basta dividir o número 24 pelo seno do ângulo de latitude da sua cidade (algo que você acha facilmente no Google) para obter o período de precessão em horas – o tempo necessário para o plano de oscilação do pêndulo completar uma volta. Aqui onde moro, em Florianópolis, levaria um pouco mais de 2 dias.
Portanto, ainda que não precisemos “ver para crer”, aqueles que relutam em abandonar o ditado, e querem diante de si um aparato capaz de mostrar que a Terra é mesmo redonda e está girando, podem, agora, construir seu próprio pêndulo. Ou, caso procurem por uma alternativa mais simples, podem sair de casa para explorar um museu de ciências que abrigue um, como o Museu da PUC/RS, em Porto Alegre. A vantagem disso é que, além de poderem testemunhar com os próprios olhos o efeito de rotação da nossa Terra redonda, podem aproveitar o passeio para aprender sobre muitos outros aspectos da natureza que seus sentidos nunca serão capazes de ensinar.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)