A agricultura das formigas

Artigo
7 out 2024
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Alex Wild/Divulgação

 

Sempre de olho em um bom negócio, o grupo HBO não perdeu a oportunidade de adaptar para o seu serviço de streaming o aclamadíssimo jogo The Last of Us (partes I e II), um sucesso de vendas e crítica. A série The Last of Us tem uma temática apocalíptica, onde os protagonistas precisam enfrentar as ameaças postas pelos humanos ao mesmo tempo em que lidam com as criaturas do mundo criado por Neil Druckmann. Na trama, o mundo virou de pernas para o ar quando uma infecção fúngica se espalhou pelo planeta e destruiu as sociedades como as conhecemos. Na narrativa, um fungo chamado de cordycepsé o causador da patologia que transforma seres humanos em infectados (não confundir com zumbis, por favor).

O “cordyceps” de The Last of Us foi baseado na espécie Ophiocordyceps unilateralis, que é capaz de infectar, manipular e transformar formigas em “zumbis” (um exagero, para ser sincero). Aliás, você pode encontrar por aí que foi Alfred R. Wallace, o naturalista codescobridor da seleção natural, quem descobriu o “fungo da formiga zumbi” em 1859, na Indonésia. Pelo que pude apurar, isso não é verdade. Mas, voltando aos fungos e formigas... A relação de parasitismo é fascinante e merece uma discussão aprofundada. Contudo, não é a única possível entre fungos e formigas. Há interações mais harmoniosas e menos tirânicas (ao menos inicialmente). É delas que trataremos a seguir.

Por exemplo, você sabia que existem formigas agricultoras? A atividade agrícola parece tão complexa e humana que nos esquecemos de que é um fenômeno cujo surgimento se deu em mais de 20 linhagens, independentemente. Numa dessas linhagens estão centenas de espécies de formigas que cultivam fungos. E não só um tipo de fungo, mas diferentes espécies de diferentes grupos de fungos — cultivares, pode-se dizer. Sendo uma característica relativamente comum entre formigas, seu surgimento provavelmente se deu há bastante tempo, no ancestral comum das 247 espécies atuais de formigas agricultoras.

Estudo publicado na Science recentemente traçou a origem dessa atividade agrícola ao final do período Cretáceo, quando ocorreu um dos cinco grandes eventos de extinção em massa da história da Terra, famoso por aniquilar quase todos os dinossauros. Na época desse evento, sugere a pesquisa, um fascinante exemplo de coevolução — o processo pelo qual duas ou mais espécies evoluem em resposta mútua às pressões seletivas que exercem umas sobre as outras — surgiu e tem se desenrolado por pelo menos 66 milhões de anos. O estudo é uma colaboração internacional e conta com a participação de pesquisadores brasileiros da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais.

Enquanto as relações de parentesco entre as formigas agricultoras são relativamente bem estabelecidas, a situação é mais complicada quando falamos dos cultivares de fungos. O estudo é uma grande contribuição nesse sentido, ao analisar o genoma de centenas de fungos (a maioria cultivares) e inferir uma filogenia (“árvore de parentesco”) calibrada temporalmente com a ajuda de fósseis de formigas e fungos.

Nessas árvores calibradas é possível ter uma melhor ideia de quando determinadas linhagens podem ter surgido. O time de autores fez o mesmo para as 247 espécies de formigas agricultoras. Assim, torna-se possível comparar quando os cultivares de fungo se diferenciaram evolutivamente, e comparar com o que estava acontecendo com as formigas ao mesmo tempo.

Emergiu da análise um resultado surpreendente: os grupos de formigas agricultoras e cultivares de fungos surgiram por volta de 66 milhões de anos atrás (há sempre uma margem de erro e não devemos ignorá-la). Os autores comentam:

“Esses resultados sugerem que a agricultura das formigas surgiu coincidentemente, ou quase ao mesmo tempo, com a fronteira Cretáceo-Paleógeno (K-Pg) — quando um bólido colidiu com a Terra, causando tempestades de fogo de dias a semanas, e interrompendo a fotossíntese por vários meses —, período durante o qual os fungos proliferaram e extinções em massa ocorreram globalmente”.

Em face a um evento de extinção de grandes proporções, geralmente os animais mais propensos à sobrevivência são pequenos detritívoros (“comedores de detritos”) semissubterrâneos ou seus predadores, enfatiza o time de autores. Os detritívoros, como os fungos, especializados em localizar e consumir matéria orgânica em decomposição, teriam se dado muito bem nessa situação.

Nesse contexto, as formigas agricultoras de fungos e alguns grupos de fungos formaram uma forte relação mutualística. Enquanto as formigas encontravam materiais orgânicos, os fungos os digeriam, compartilhando os nutrientes com as formigas. Em tempo: mutualismo é uma interação ecológica em que duas espécies se beneficiam mutuamente; cada uma contribui de alguma forma para a sobrevivência ou reprodução da outra. O grupo sumariza:

“Isso teria permitido que ambos os parceiros persistissem e coevoluissem durante um período de extinções em massa e, finalmente, se diversificassem em um ecossistema de floresta tropical neotropical completamente reestruturado, há cerca de 59 milhões a 59,5 milhões de anos”.

Embora do ponto de vista da genealogia das formigas o surgimento da agricultura de fungos tenha se dado uma única vez, a história é diferente quando nos debruçamos sobre a filogenia dos cultivares de fungos. No final do Cretáceo, duas linhagens de fungos Leucocoprinaeae desenvolveram uma relação mutualística com formigas, mas os cultivares de fungos não são restritos a esse grupo. Os resultados do estudo demonstram que há cerca de 21 milhões de anos o mesmo ocorreu a duas linhagens de fungos do grupo dos Pterulaceae.

Esse padrão é curioso e requer uma explicação. Afinal, temos duas origens independentes de uma mesma característica ocorrendo em dois pontos diferentes do tempo e em duas diferentes linhagens de fungos. O time de pesquisadores sugere uma resposta: fungos ancestrais não cultivados por formigas dos grupos Pterulaceae e Leucocoprinaeae provavelmente estavam “envolvidos em associações simbióticas protoagrícolas e, assim, estavam pré-adaptados para o cultivo”.

Segundo os autores, é plausível que, antes do advento da agricultura entre as formigas, os ancestrais dos fungos cultivados fossem levados para montes de resíduos e paredes de detritos situados nas imediações de seus ninhos. “Os fungos, por sua vez, provavelmente evoluíram para estimular esse transporte, possivelmente oferecendo recompensas alimentares, o que resultou em um aumento do consumo de fungos pelas formigas”, escreve o grupo de pesquisadores.

O estudo ainda tem implicações sobre a “domesticação” dos fungos pelas formigas. Embora as definições sejam muitas, uma forma rigorosa de defini-la é restringir a domesticação àqueles casos em que há modificação genética do ser domesticado, de tal maneira que o domesticador é favorecido, mas o domesticado é prejudicado em seu ambiente natural. Se aceitarmos essa definição, então há fungos que podemos dizer que foram domesticados pelas formigas. Esses fungos domesticados são incapazes de viver sem suas formigas “fazendeiras” e são conhecidos como cultivares superiores. Um exemplo são os fungos da espécie Leucoagaricus gongylophorus, muito apreciados pelas formigas cortadeiras.

O evento de domesticação teria ocorrido há cerca de 27 milhões de anos, segundo a pesquisa. Não é uma data qualquer, mas após o Evento Terminal do Eoceno, quando havia um resfriamento global e a seca na América do Sul transformou vastas áreas de floresta em grandes extensões de gramados áridos. À medida que as formigas agricultoras de fungos se adaptavam às condições mais secas, é provável que transportassem seus fungos para novos habitats.

Um passo fundamental na formação de novas espécies é o isolamento geográfico de uma população. Sendo assim, o transporte para novos habitas favoreceu a formação de novas espécies de fungos (e formigas), que divergiam de seus ancestrais, ao mesmo tempo em que intensificavam a interação entre fungo e formiga. Em alguns casos, o balanço foi assimétrico e resultou não no mutualismo, mas na domesticação dos fungos.

Por enquanto, considero cedo demais para dizer que o impacto de um bólido há 66 milhões de anos é um dos principais responsáveis pela fantástica história agrícola e coevolutiva de formigas e fungos. Afinal, há uma margem de erro de 13,28 milhões de anos para mais, ou para menos. Contudo, com ou sem bólido, é uma história ímpar e que certamente ainda tem muitos segredos a revelar. Enquanto aguardo os próximos capítulos, torço para que o “cordyceps não tome conta do mundo...

 

PARA SABER MAIS

Ted R. Schultz et al. The coevolution of fungus-ant agriculture. Science 386,105-110(2024). DOI:10.1126/science.adn7179

Asteroid impact may have turned ants into fungus farmers 66 million years ago:

https://www.science.org/content/article/asteroid-impact-may-have-turned-ants-fungus-farmers-66-million-years-ago

 

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