Os negacionistas do registro fóssil

Artigo
30 set 2024
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Archaeopteryx, um fóssil de transição

 

O movimento criacionista nasceu nos Estados Unidos, mas há várias décadas que é exportado para outras partes do mundo, inclusive o Brasil. De fato, a literatura que tenta, de modo espúrio, vender a ideia de que o mito da criação tem respaldo científico conta até com um clássico instantâneo nacional: o livro Fomos Planejados: A Maior Descoberta Científica de Todos os Tempos (Editora Mackenzie, 2018), de autoria do químico Marcos Nogueira Eberlin, ex-professor da Unicamp, membro da Academia Brasileira de Ciências e detentor da Ordem Nacional do Mérito Científico, honraria que recebeu em 2005.

Mas, da mesma forma que um botânico de destaque não vai ser necessariamente um especialista em astrofísica (ou um astrofísico, em botânica), quaisquer que sejam os méritos do autor de Fomos Planejados em sua área de origem, a obra revela que, em se tratando de biologia evolutiva e paleontologia, a competência que comanda é especialmente limitada.

Considere o que o livro afirma sobre o registro fóssil e seu papel na confirmação das previsões da teoria da evolução. O leitor desavisado de Fomos Planejados encontra ali o seguinte, a respeito do registro fóssil:

“É incompleto de formas de vida que a evolução imaginou que um dia lá estariam, e não representativo de uma teoria que aparenta estar refutada pelo ‘museu da vida’, o qual, teimoso que só, se nega a revelar as formas transicionais imaginadas pelo processo evolutivo, enquanto suas características se moldam bem à hipótese de um designer a introduzir a vida neste planeta de uma forma rápida e completa”.

Se a teoria da evolução “aparenta estar refutada” pelo registro fóssil, só posso concluir que o autor não conhece o suficiente sobre o “museu da vida”. A verdade é que temos, sim, muitos exemplos de “formas transicionais” — organismos que possuem características de certa forma “intermediárias” entre diferentes organismos. Importante: estamos dizendo que as formas de transição exibem características que são transicionais, não que o fóssil em si é exatamente intermediário, no meio do caminho entre uma coisa e outra. Pensar isso é exigir a existência de “crocopatos” no registro fóssil, algo que certamente não é predito pela teoria evolutiva — se bem compreendida, é claro. Há toda uma discussão sobre se o termo “transicional” sequer deveria ser utilizado, mas isso fica para outro momento.

Fomos Planejados nos (des)informa ainda de que “você só vai encontrar tais ‘elos perdidos’ na web, no Google, nos blogs e na imaginação fértil dos biólogos evolucionistas, materializados – sem nenhum pudor – nos livros-texto de biologia via caricaturas da evolução” e se volta para um muito famosa citação de Darwin, onde ele diz que “a quantidade de espécies intermediárias deveria ser enorme, e o registro fóssil deveria estar repleto delas, e essa talvez seja a objeção mais grave e mais óbvia de minha teoria”. O raciocínio então se encaminha para a conclusão “inevitável”:

“A total, ampla e irrestrita ausência das espécies intermediárias, não só de chimpanzé-homem, mas de rato-morcego, de “dino-pássaro”, de ursobaleia, e tantos outros, ou melhor, literalmente de todos, lá no registro fóssil – o ‘museu da vida’ – parece escancarar, para quem tiver olhos e desejar ver, a falência de uma teoria que um dia revolucionou o mundo”.

Como paleontólogo, essa sequência de afirmações me choca. Na verdade, formas transicionais abundam no registro fóssil. Eu mesmo já vi. Aliás, divido a sala com um dos mais fantásticos (porém muito real) exemplos que conheço: o arcossauromorfo Teyujagua paradoxa. Um fóssil lindo, muito bem preservado, descoberto e descrito por pesquisadores brasileiros. Melhor ainda, está abrigado em uma coleção brasileira, ao contrário de muitos fósseis, que foram traficados para fora de nosso país e, portanto, estão infelizmente longe dos olhos dos brasileiros.

O “Teyu”, como carinhosa e informalmente nos referimos ao espécime aqui no Laboratório de Paleobiologia da Universidade Federal do Pampa (São Gabriel, RS), exibe um mosaico de características presentes nos arcossauromorfos mais antigos e também nos arcossauriformes. Calma, não é tão complicado de entender.

Os arcossauromorfos são todos os répteis mais aparentados aos crocodilos e aves do que aos lagartos, serpentes e ao tuatara. Os arcossauriformes, por sua vez, sãos os membros de um subgrupo dessa categoria que inclui muitas formas extintas, mas também os arcossauros, um grupo ainda mais restrito que inclui, entre outros organismos, os pterossauros, crocodilianos e parentes extintos, dinossauros e, necessariamente, as aves (já que elas são dinossauros!). A ideia geral é a de conjuntos e subconjuntos, grupos dentro de grupos, como as pastas, subpastas e sub-subpastas na estrutura de arquivos de um computador. No caso, vamos do menos inclusivo, ou mais restrito (Archosauria), passando pelo agrupamento um pouco mais abrangente (Archosauriformes), até o mais amplo (Archosauromorpha). Se uma imagem ajudar, clique aqui.

Se você inspecionar o crânio de um arcossauriforme (clique aqui), como o Proterosuchus, verá que, olhando de perfil, à frente da órbita (o espaço onde se encaixa o olho) há uma abertura — a chamada de fenestra anterorbital. Além disso, na mandíbula dos arcossauriformes você também verá uma outra abertura, chamada de fenestra mandibular externa. Por outra lado, os arcossauromorfos mais antigos não têm nenhuma dessas aberturas (“fenestras”).

Se a evolução é uma verdade, é razoável supor que devemos encontrar, no registro fóssil (especificamente do período Triássico, que é quando surgem esses grupos), algum organismo que apresenta uma das fenestras, mas não a outra — assumindo um cenário gradual de evolução. E é nesse ponto que o “Teyu” entra em ação!

Os fósseis do “Teyu” foram coletados em 2015 em depósitos da formação Sanga do Cabral (Triássico Inferior), num afloramento conhecido informalmente como “Bica São Tomé”, nas proximidades do município de São Francisco de Assis, Rio Grande do Sul. No ano seguinte, o material foi descrito e batizado em um estudo colaborativo liderado pelo Dr. Felipe L. Pinheiro (meu orientador, por sinal), professor e pesquisador da UNIPAMPA, e publicado no periódico Scientific Reports.

Como o crânio está excepcionalmente preservado, não há dúvidas: externamente, há na mandíbula do “Teyu” uma fenestra, como nos arcossauriformes. Porém, quando voltamos a atenção para a região anterior à órbita, onde deveria estar a fenestra anterorbital, notamos a sua ausência, como nos arcossauromorfos mais antigos!

E não para por aí. Em publicação posterior, Pinheiro e colaboradores realizaram uma tomografia computadorizada do crânio para analisar estruturas internas. Eles observaram que, internamente, na região anterior à órbita já havia um princípio de escavação, o que deu pistas adicionais sobre a evolução inicial da tal fenestra anterorbital dos arcossauriformes. Ah, vale lembrar: esse é um fóssil do período Triássico, mais especificamente da porção mais antiga desse período. Ou seja, o “Teyu” é um excelente exemplo de forma transicional, tanto em termos de forma quanto de localização na linha do tempo.

Parafraseando o meu amigo Pirulla: isso é justamente o que se esperaria encontrar no registro fóssil caso a evolução fosse uma verdade — porque ela é! Claro, um autor criacionista provavelmente vai dizer que os estudos não passam de “imaginação fértil dos biólogos evolucionistas”. “Imaginação”, no caso, é código para “evidência que prefiro ignorar”.

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

 

LITERATURA CIENTÍFICA

Pinheiro, F. L., França, M. A., Lacerda, M. B., Butler, R. J., & Schultz, C. L. (2016). An exceptional fossil skull from South America and the origins of the archosauriform radiation. Scientific reports6(1), 22817.

Pinheiro, F. L., De Simão-Oliveira, D., & Butler, R. J. (2020). Osteology of the archosauromorph Teyujagua paradoxa and the early evolution of the archosauriform skull. Zoological Journal of the Linnean Society189(1), 378-417.

De‐Oliveira, T. M., Da Silva, J. L., Kerber, L., & Pinheiro, F. L. (2024). The postcranial skeleton of Teyujagua paradoxa (Reptilia: Archosauromorpha) from the early Triassic of South America. The Anatomical Record307(4), 752-775.

 

LITERATURA POPULAR

https://revistapesquisa.fapesp.br/fossil-de-250-milhoes-de-anos-encontrado-nos-pampas/

https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2016/03/11/o-reptil-feroz-dos-pampas/

https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2016/03/fossil-de-250-milhoes-de-anos-achado-no-rs-revela-nova-especie-de-reptil.html

https://www.nytimes.com/2016/03/12/science/unearthing-a-reptilian-ancestor-of-dinosaurs.html

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