Para quem perdeu, no fim da parte 1 da nossa conversa sobre o que é evolução, apresentamos a definição minimalista. Nesse recorte, a evolução é a alteração na frequência dos alelos (“versões” de genes) em populações, ao longo das gerações. Mas essa não é a única forma de definir evolução, nem está livre de problemas.
Um dos maiores naturalistas desde Darwin, o alemão Ernst Mayr, não poupou críticas à visão reducionista da genética de populações da evolução. Por exemplo, em seu livro What Evolution Is (“O que é evolução” em português), Mayr (2001, p. xiv) expôs seu descontentamento:
…a maioria das abordagens da evolução são escritas de uma maneira reducionista em que todos os fenômenos evolutivos são reduzidos ao nível do gene. Em seguida, é feita uma tentativa de explicar o processo evolutivo de nível superior pelo raciocínio "ascendente". Essa abordagem falha invariavelmente. A evolução lida com fenótipos de indivíduos, com populações, com espécies; não é uma "mudança nas frequências dos genes". As duas unidades mais importantes na evolução são o indivíduo, o principal objeto de seleção, e a população, o estágio de evolução diversificadora.
Perceba que Mayr nega diretamente a utilidade dessa definição, já que para ele evolução não é uma mudança na frequência dos alelos. Para Mayr, indivíduos e populações são realmente o que importa, já que o que evolui são os atributos dos indivíduos, sempre no contexto populacional. Para Mayr, não devemos esperar explicar a evolução em grande escala (macroevolução) simplesmente extrapolando o que ocorre nas pequenas escalas (microevolução).
Outra crítica à definição minimalista é encontrada na obra Natural Selection in the Wild (“Seleção Natural na Natureza Silvestre”, em livre tradução), por J. A. Endler (1986). Ele escreveu (p. 7-8):
Os geneticistas de populações usam uma definição diferente de evolução: uma mudança nas frequências dos alelos entre gerações. Esse significado é bastante diferente do original; agora inclui mudanças aleatórias, bem como direcionais..., mas não requer a origem de novas formas. É aproximadamente equivalente à microevolução (evolução subespecífica; macroevolução envolve tendências principais ou evolução trans-específica ...). Infelizmente, o uso da definição da genética de populações frequentemente resulta em uma ênfase excessiva nas mudanças nas frequências dos alelos e uma ênfase insuficiente (ou nenhuma consideração) na origem dos diferentes alelos e suas propriedades.
Alguns, portanto, sentem que a definição minimalista é restritiva, pois lida sobretudo com o domínio microevolutivo. É por isso que há propostas de definição mais amplas, que abracem outros aspectos igualmente relevantes, como a origem das novidades evolutivas (“a origem de novas formas”, como destacado acima), bem como os padrões de mudança na escala de tempo geológico. Por exemplo, Douglas Futuyma definiu evolução da seguinte forma (1986, p. 551):
Evolução orgânica, ou evolução biológica, é uma mudança ao longo do tempo nas proporções de organismos individuais que diferem geneticamente em uma ou mais características; tais mudanças ocorrem pela origem e subsequente alteração das frequências de alelos ou genótipos de geração em geração dentro das populações, pelas alterações das proporções de populações geneticamente diferenciadas de uma espécie, ou por mudanças no número de espécies com diferentes características, alterando assim a frequência de uma ou mais características dentro de um táxon superior.
Perceba que, ao invés de considerar o nível genético como o mais fundamental, Futuyma expande a ideia para vários níveis da hierarquia biológica. Como paleontólogo, me encanta principalmente a parte final a respeito da alteração na “frequência de uma ou mais características dentro de um táxon superior”. Esse é um dos possíveis significados do termo “macroevolução”. “Táxons” são níveis de classificação biológica como espécie, gênero e família.
A macroevolução não se resume apenas à origem de novidades biológicas, como o surgimento de novas estruturas (por exemplo, asas ou flores), mas também abrange a forma como essas inovações se tornam mais ou menos comuns em um grupo biológico ao longo do tempo.
Um exemplo claro é a diversificação dos mamíferos após a extinção dos dinossauros, quando novas formas corporais e modos de vida surgiram e se espalharam, enquanto outros desapareceram. Assim como observamos a mudança de frequências gênicas em populações ao longo de gerações na microevolução, a macroevolução trata dessas dinâmicas em escalas maiores, envolvendo grandes grupos e intervalos de tempo mais extensos. Portanto, é correto afirmar que a macroevolução, assim como a microevolução, é um fato, evidenciado pela rica história evolutiva dos seres vivos.
Mas há ainda uma outra forma de olhar para o fenômeno da evolução. De uma perspectiva mais histórica, um problema que sempre intrigou os estudiosos da história da vida na Terra é a modernização das faunas. Niles Eldredge descreve bem a situação em seu livro Eternal Ephemera (2015, p. 21):
É um fato difícil de ignorar que, conforme você sobe o empilhamento vertical de rochas fossilíferas, os fósseis que você encontra se tornam progressivamente mais modernos em aspecto, até que, próximo ao topo da sequência, nos sedimentos mais jovens, espécies ainda vivas na fauna moderna começam a fazer suas primeiras aparições.
E não é só a modernização em si, mas o fato de que debaixo para cima na coluna geológica o que vemos é uma alteração na biota terrestre ao longo do tempo. Ou seja, surgem novas formas e outras são extintas. Por sinal, é esse o grande “mistério dos mistérios” que Darwin menciona na introdução de A Origem das Espécies (1859, p. 1):
Quando estava a bordo do H.M.S. 'Beagle', como naturalista, fui muito impressionado por certos fatos sobre a distribuição dos habitantes da América do Sul e pelas relações geológicas entre os habitantes atuais e os do passado daquele continente. Esses fatos me pareceram lançar alguma luz sobre a origem das espécies — aquele mistério dos mistérios, como foi chamado por um de nossos maiores filósofos.
Com “um de nossos maiores filósofos”, Darwin queria dizer John Herschel, polímata inglês e filho do grande astrônomo William Herschel. Em carta para Charles Lyell (geólogo cujo pensamento teve grande influência sobre Darwin) datada de 20 de fevereiro de 1836, Herschel faz alusão ao “mistério dos mistérios, a substituição de espécies extintas por outras” e comenta que Deus “opera através de uma série de causas intermediárias e que, consequentemente, a origem de novas espécies, se algum dia pudesse ser de nosso conhecimento, seria encontrada como um processo natural, em contraste com um processo miraculoso”.
Então, para Herschel e seus contemporâneos, um dos desafios da ciência era explicar através de causas “intermediárias”, conhecidas alternativamente como causas secundárias (pois Deus seria a primária, afinal), a mudança observada nas “páginas” do registro fóssil — espécies aparecem no registro, duram por um tempo, depois desaparecem. Evolução, nesse sentido, também é um fato. E a teoria evolutiva (um conjunto de teorias, na verdade), é o que explica essa observação.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
PARA SABER MAIS
Eldredge, N. (2015). Eternal ephemera. Columbia University Press.
Endler, J. A. (1986). Natural selection in the wild. Princeton University Press.
Futuyma, D. J. (1986). Evolutionary biology (2nd ed.). Sinauer Associates Inc.
Mayr, E. (2001). What evolution is. Basic Books.
Mayr, E. (2009). O que é a evolução. Rocco.
Moran, L. (2007). What is evolution? Sandwalk. Acessado em 12 de setembro, 2024, disponível em https://sandwalk.blogspot.com/2007/01/what-is-evolution.html
Wilkins, J. (2001). Defining evolution. National Center for Science Education. Acessado em 12 de setembro, 2024, disponível em https://ncse.ngo/defining-evolution