Como um Conselho de Medicina "explica" a homeopatia

Artigo
23 set 2024
Imagem
glóbulos homeopáticos

 

Esta Revista Questão de Ciência teve acesso a um parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Norte (CREMERN), elaborado em resposta a um questionamento simples – por que o Conselho Federal de Medicina (CFM) insiste em manter a homeopatia como uma especialidade médica, considerando que a semiologia (estudo dos sintomas das doenças), a patogenia (estudo do desenvolvimento das doenças) e a terapêutica (métodos para o tratamento de doenças) da homeopatia são incompatíveis com o conhecimento científico e medicina atuais? A pergunta foi enviada inicialmente ao próprio CFM, que sugeriu o encaminhamento para o CREMERN. O questionamento havia surgido no estado do Rio Grande do Norte.

A homeopatia foi inventada em 1796 pelo médico alemão Samuel Hahnemann, antes dos estudos de Louis Pasteur e Robert Koch, na segunda metade do século 19, que deram um passo decisivo na validação da Teoria dos Germes, estabelecendo que as doenças infecciosas eram causadas por microrganismos. No período da criação da homeopatia, a Medicina sequer tinha conhecimentos básicos de higiene para a prevenção de doenças.

No fim do século 18, algumas vertentes médicas diziam que as doenças eram causadas por desequilíbrios dos “humores” e que o tratamento das enfermidades deveria envolver a sangria para restabelecer o equilíbrio entre sangue, bile negra, bile amarela e fleuma. Outras apregoavam que o tratamento dos doentes deveria envolver o uso de misturas com metais pesados tóxicos, já que os elementos fundamentais da saúde eram enxofre, sal (cinzas) e mercúrio. Com a existência de tantos tratamentos perigosos, não é surpresa que tratamentos inofensivos como a homeopatia tenham se popularizado – afinal, administrar água ou açúcar certamente faz menos mal do que tomar uma poção preparada com mercúrio.

A homeopatia é baseada em três ideias principais, duas que podem ser consideradas clássicas (já que remontam ao trabalho de Hahnemann) e uma mais moderna. A primeira das clássicas é que “semelhante cura semelhante”. De acordo com esta crença, substâncias que causam sintomas parecidos com o que se quer combater podem ser utilizadas para curar a própria enfermidade – ou seja, cafeína e cebola poderiam curar, respectivamente, insônia e gripe, já que café acorda pessoas e os vapores ceboláceos deixam os olhos lacrimejantes e o nariz escorrendo. Mas não é qualquer quantidade de cafeína ou cebola, e sim soluções tão diluídas a ponto de não restar absolutamente nenhuma molécula ativa do soluto na solução final. Este princípio – o da diluição infinitesimal – é a segunda ideia “clássica” de Hahnemann.

A ideia moderna, a da “memória da água”, foi criada para tentar explicar como, sem nada ativo na solução homeopática, o medicamento poderia ter algum tipo de ação biológica. Inventou-se, portanto, que a água preserva uma memória do composto que foi agitado com ela. Para que esta "memória" seja despertada, a mistura deve ser agitada vigorosamente, processo conhecido como sucussão. A técnica de sucussão surge com Hahnemann, mas ele não falava em “memória”, e sim em forças espirituais.

Em que pese a inexistência de qualquer evidência das hipóteses acima na física, na química e na biologia, o retrospecto histórico é importante para mostrar que, depois de 200 anos, as argumentações do CREMERN em favor da homeopatia continuam basicamente as mesmas da época da criação da prática, confundindo e ignorando os avanços da Medicina até os dias de hoje.

O parecer começa com uma citação do século 19, colocando a Medicina como “uma ciência da incerteza e arte da probabilidade”. A citação, embora pareça poética, antecede a tática do “alvo móvel” e do “apelo à ignorância”, ambas costumeiras às pseudociências. A homeopatia, assim, deseja ter o rótulo de ciência, mas, quando confrontada com o rigor do método científico e das evidências disponíveis, denomina-se arte. Ao invocar uma noção genérica de “incerteza”, abre-se espaço para considerar qualquer proposta como razoável, independentemente do conhecimento prévio disponível sobre a questão.

Trecho do parecer diz que a terapêutica homeopática não ignora a ciência, que o conhecimento científico é levado em conta “num esforço que integre ética e ciência em benefício do próximo e da coletividade”. Como não existe evidência científica confiável que conclua que um tratamento clínico homeopático deva ser utilizado em qualquer situação, as palavras “integração” e “ética” parecem estar aí apenas para efeito decorativo.

Logo após mencionar ética e ciência, o parecer associa o médico homeopata a um artesão: “a arte da terapêutica individualizada pode ser praticada de diferentes formas, utilizando técnicas variadas, cabendo ao médico a adoção daquela que entender mais apropriada [...] o médico homeopata deve fazer uma investigação artesanal e meticulosa para descobrir as peculiaridades e modalidades reativas de cada doente ao fazer a sua doença”.

Se a metáfora do “artesanato” pretende remeter à ideia da atenção pessoal e individualizada dada a cada peça produzida (em oposição à reprodução mecânica e automática dos processos industriais), ela é mais do que bem-vinda como meta para a medicina, onde a “peça” é o tratamento do paciente. Só faltou acrescentar que o artesão competente se cerca e lança mão de ferramentas que comprovadamente funcionam.

Já dizer que cada doente “faz a sua doença” é uma metáfora mais complicada, e perigosa. Confundir que o doente sofre com algo que ele mesmo produz – uma performance – embute a ideia de culpabilização da pessoa, similar aos discursos provenientes da cultura “coach da prosperidade”. Discurso que contrasta de maneira esquizofrênica com a declaração posterior de que “a escolha do tratamento ofertado aos pacientes deve estar subordinada ao conhecimento científico”.

É claro que não poderia faltar no parecer o sentimento persecutório. De acordo com o texto, a homeopatia tem provocado desconforto nos interesses econômicos. Vale, porém, apontar que a homeopatia movimenta um mercado de aproximadamente US$ 17 bilhões por ano nos EUA, com expectativa de crescimento para US$ 50 bilhões até 2028. Os valores não são nada desprezíveis para um comércio de poções mágicas.

O parecer finaliza dizendo que “está aberto para novas discussões”. Ora, não existem novas discussões que precisam ser feitas. Basta apenas abandonar o corporativismo de uma entidade de classe e abandonar o negacionismo. As evidências científicas estão todas aí, muito menos diluídas do que qualquer preparado homeopático.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899