A tática criacionista da destruição de contexto

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9 set 2024
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dinossauro bravo

 

Quote mining” (“mineração de citação” ou “citação fora de contexto”) é uma prática desonesta, muito comum entre negadores da ciência (e.g., criacionistas), que envolve tirar citações de seu contexto original para distorcer o significado do que foi dito ou escrito. A intenção é fazer parecer que a citação apoia um ponto de vista ou argumento que, na verdade, não corresponde à intenção ou às ideias do autor original.

Por exemplo, em "A Origem das Espécies", Charles Darwin escreveu sobre as complexidades do olho e mencionou que a ideia de que algo tão complexo como esse órgão pudesse ter evoluído por seleção natural parecia, à primeira vista, "absurda no mais alto grau". No entanto, Darwin continua a explicar detalhadamente como a evolução do olho pode ser entendida de forma gradual, através de pequenas mudanças acumuladas ao longo do tempo, cada uma conferindo uma vantagem seletiva.

Um criacionista que pratica quote mining poderia citar apenas a parte onde Darwin diz que a ideia da evolução do olho é "absurda no mais alto grau", omitindo o restante da explicação, para sugerir que o próprio Darwin duvidava do real poder da seleção natural. Isso distorce completamente o significado original e a intenção do autor.

Mas não precisamos de exemplos hipotéticos, pois os criacionistas mineram citações com frequência comparável a um jogador de Minecraft. Um exemplo particular, que muito me incomoda, é o uso de citações fora de contexto sobre a Teoria dos Equilíbrios Pontuados (TEP). Uma publicação no site criacionista Evolution News, do Discovery Institute, tem como título “sim, o modelo do Equilíbrio Pontuado foi desenvolvido para explicar a ausência de fósseis transicionais”.

Escrito por Casey Luskin, o texto contém muitas citações de Eldredge e Gould, que apresentaram formalmente a TEP em 1972, portanto há mais de 50 anos. Luskin comenta:

“Então, o equilíbrio pontuado foi desenvolvido como um modelo para explicar o aparecimento abrupto de novas espécies no registro fóssil — também conhecido como a ausência de formas transicionais? A resposta é sim — como visto no que você acabou de ler, e também em muitas citações que você verá abaixo”.

Pouparei você que me lê, então não trarei uma lista extensiva de citações. Reproduzirei aqui apenas uma delas, pois apresenta o ponto central que os criacionistas esquecem de mencionar quando usam a TEP como “evidência” de que não haveria fósseis transicionais.

Em sua obra final, um calhamaço de mais de mil páginas chamado “The Structure of Evolutionary Theory” (“A Estrutura da Teoria Evolutiva”), Gould escreveu:

“Eu relato essa história de forma detalhada, como uma introdução ao equilíbrio pontuado, tanto porque Falconer e Darwin antecipam, de maneira tão marcante, as principais posições dos apoiadores e oponentes (respectivamente) do equilíbrio pontuado em nossa geração, quanto porque a própria história ilustra muito bem o fato central do registro fóssil — a origem geologicamente abrupta e a subsequente estase prolongada da maioria das espécies. Falconer, especialmente, ilustra a transição de uma resolução falsa e fácil sob premissas criacionistas para o reconhecimento de um enigma (e a proposição de algumas soluções interessantes) dentro do novo mundo da explicação evolutiva. Mais importante ainda, essa história exemplifica o que pode ser chamado de fato fundamental e dominante do registro fóssil, algo que os paleontólogos profissionais aprenderam assim que desenvolveram ferramentas para um rastreamento estratigráfico adequado dos fósseis ao longo do tempo: a grande maioria das espécies aparece de forma geologicamente súbita no registro fóssil e, em seguida, persiste em estase até sua extinção. A anatomia pode flutuar ao longo do tempo, mas os últimos remanescentes de uma espécie geralmente se parecem bastante com os primeiros representantes”.

 

Os trechos destacados acima foram de escolha de Luskin. Isso é bastante irônico, pois ele usa justamente esses trechos para concluir que a teoria de Eldredge e Gould mostra a realidade da ausência de fósseis transicionais. Porém, os próprios textos destacados refutam a conclusão criacionista. Está explícito que os tais “fósseis transicionais” ausentes seriam entre pares de ancestral-descendente imediatos! Devido às dificuldades de preservação e ao modo geral de como ocorre o processo de especiação, é improvável (mas não impossível) que a fase de transição entre uma espécie e outra seja “arquivada” no registro fóssil. Mas isso não significa que não há fósseis com características transicionais entre agrupamentos hierárquicos superiores, como gêneros, famílias, etc.

Em ensaio publicado na Discover em 1981, Gould enfatiza esse ponto:

“É frustrante ser citado repetidamente por criacionistas — seja por desígnio ou burrice, não sei — como se eu admitisse que o registro fóssil não inclui formas transicionais. As formas transicionais geralmente são escassas no nível das espécies, mas são abundantes entre grupos maiores”.

Luskin, outros criacionistas e, infelizmente, muitos biólogos evolutivos, também cometem o erro de equiparar “estase” morfológica com ausência de evolução. Como fica claro no último período da citação, estase significa que a anatomia de uma espécie “pode flutuar ao longo do tempo, mas os últimos remanescentes de uma espécie geralmente se parecem bastante com os primeiros representantes”, ou seja, não é ausência total de mudança evolutiva. Além disso, a estase, nesse contexto, é somente morfológica. Óbvio, a morfologia não é o único atributo biológico das espécies. Então, nada impede que ocorra mudança na escala molecular, sem que seja necessariamente refletida no nível morfológico.

Esse não é o único engano de Luskin, contudo. Segundo ele, “há muitos problemas científicos com o equilíbrio pontuado. O maior deles é que ele exige mudanças evolutivas demais em um intervalo de tempo muito curto”. Isso também não é verdade. Essa exigência absurda só surge quando supomos que a TEP deveria ser aplicada para explicar o surgimento de grandes diferenças morfológicas entre uma espécie e outra. Esse erro decorre da aplicação da teoria fora do seu domínio de aplicação. A TEP é sobre o que acontece com espécies ao longo de sua existência e como geralmente ocorre a modificação de uma espécie para outra. As diferenças morfológicas entre espécies muito próximas são geralmente pequenas e, portanto, não requerem grandes saltos morfológicos em curtos intervalos de tempo. É preciso ficar claro que a TEP e o “saltacionismo” — a ideia de que mudanças evolutivas ocorrem de forma abrupta e significativa, em vez de serem graduais e transgeracionais — não são a mesma coisa!

Vale novamente citar Gould (“A Estrutura da Teoria Evolutiva”, pg. 986); a observação entre colchetes é minha, para enfatizar o ponto:

“A literatura criacionista padrão sobre o equilíbrio pontuado raramente vai além da reciclagem contínua de duas caracterizações falsas: a confusão entre o equilíbrio pontuado e o verdadeiro saltacionismo (...) e a distorção das verdadeiras lacunas do equilíbrio pontuado entre espécies, ampliando-as para afirmar que não existem intermediários para as maiores transições morfológicas entre classes e filos. Considero essa última distorção particularmente grave, porque formulamos o equilíbrio pontuado como uma teoria afirmativa da intermediação entre tendências estruturais de grande escala, [ou seja, acima do nível de espécie!]”.

É como diz o velho ditado, quem conta um conto aumenta um ponto. Bem, se for criacionista, muitas vezes também omite alguns!

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

PARA SABER MAIS

Gould, S. J. (1981). Evolution as fact and theory. Discover2(5), 34-37.

Gould, S. J. (2002). The structure of evolutionary theory.

Da Silva, J. L. (2022). A Teoria dos Equilíbrios Pontuados Aos 50 Anos. Revista Questão de Ciência. https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2022/08/16/teoria-dos-equilibrios-pontuados-aos-50-anos

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