O jejum intermitente tem sido alvo de muitas discussões tanto no meio acadêmico quanto entre o público. É provável que você já tenha ouvido falar de alguém que adotou a prática e saiu falando dos supostos benefícios, lista que inclui desde perda de peso até a melhora na concentração ou o fortalecimento do sistema imune.
Há bastante desinformação em torno do assunto. Muitas vezes, essa desinformação vem em forma de vídeo. No fim do ano passado, circulou nas redes um vídeo que mostrava um nobelista afirmando, supostamente, que dormir em jejum auxilia na fagocitose de células velhas e denuncia as cancerosas para o sistema imune. O vídeo, no entanto, distorce a fala do pesquisador, como mostrou a checagem de fatos do Estadão, que desmentiu rapidamente esse boato.
O jejum intermitente é alvo de investigação científica séria como possível estratégia terapêutica para o emagrecimento e para outros desfechos de saúde.
No artigo de hoje, no entanto, tratarei apenas das alegações falsas ou exageradas de benefício que surgiram em torno da prática.
Jejum e suas variações
Podemos definir jejum como a abstinência total de alimentos e bebidas por um determinado número de horas – ou dias –, ou, ainda, a abstinência de alimentos específicos, como a carne de certos animais. Apesar de todo o “hype” que vem recebendo nesta década, trata-se de uma prática milenar adotada por diferentes religiões – como o judaísmo, o islã e certas denominações do cristianismo – para diversos propósitos espirituais.
Já “jejum intermitente” é o nome genérico dado a uma série de protocolos que intercalam períodos de jejum propriamente dito, ou de consumo extremamente baixo de calorias, com períodos de alimentação normal. O objetivo é produzir benefícios para a saúde. A revisão da literatura intitulada “Intermittent Fasting and Metabolic Health”, de autoria de Vasim, I. e colegas, aponta que entre os métodos mais comuns atualmente estão: o protocolo de dias alternados (jejum de 24 horas dia sim, dia não); o 5:2 (dois dias da semana com um consumo calórico extremamente baixo, 500 calorias, aproximadamente); o time-restricted feeding (é liberado um “período” de 6 horas por dia onde o indivíduo pode se alimentar); a dieta B2 (são permitidas duas refeições grandes diariamente, com café da manhã entre 6 e 10 da manhã e almoço até às 16:00); e o jejum de 1 dia na semana (abstinência de alimentos e bebidas com calorias por 24 horas).
Os autores ponderam que o jejum intermitente, por oferecer diferentes protocolos, pode ser mais adaptável à rotina dos indivíduos em comparação às dietas tradicionais, como a cetogência, vegana ou de restrição calórica diária. Além disso, salienta-se que, por estar correlacionada ao ritmo circadiano natural (a maneira como o nosso organismo sincroniza as funções biológicas com o período do dia e da noite), o jejum intermitente pode ser uma abordagem dietética mais fisiológica.
A revisão encontrou alguns efeitos positivos na perda de peso, na redução da resistência à insulina, além de beneficiar pacientes com obesidade, diabetes tipo 2 e hipertensão.
Entretanto, determinou-se ainda que a prática não é isenta de riscos. Efeitos adversos comuns incluem hipoglicemia (queda abrupta nos níveis de glicose no sangue), além de fraqueza e tontura. A prática não é recomendada para indivíduos com desequilíbrios hormonais, gestantes, lactantes, pessoas com deficiências imunes, que utilizam medicamentos imunossupressores ou que sofram de transtornos alimentares.
Eles também salientam que, apesar dos extensos dados em animais, muitos ensaios clínicos realizados em humanos não conseguiram apresentar melhorias significativas do jejum intermitente em comparação com a restrição calórica.
Os efeitos no organismo
Para explorar os efeitos celulares e fisiológicos do jejum, usarei como base dois artigos de Mattson, M., professor adjunto de Neurociência na faculdade Johns Hopkins, que dedicou mais de 25 anos de sua carreira acadêmica ao assunto.
O primeiro, publicado em 2015 com o título “Fasting: Molecular Mechanisms and Clinical Applications”, revisa a literatura sobre os efeitos “fascinantes” de diferentes formas de jejum, incluindo o jejum intermitente (JI) e o periódico (JP). O segundo, de 2019, intitulado “Effects of Intermittent Fasting on Health, Aging, and Disease”, também é uma revisão da literatura, mas que investigou estudos em animais e em humanos sobre a relação entre jejum intermitente, envelhecimento e adoecimento.
De modo bem resumido, o jejum prolongado – que implica interrupção do consumo de energia via alimentação – leva o organismo a liberar reservas energéticas acumuladas e à alteração em processos celulares, incluindo aumento do ritmo da autofagia, a degradação e destruição de células danificadas, para reciclagem de seus componentes.
No que diz respeito aos efeitos do jejum no envelhecimento e nas doenças associadas, Mattson afirma que dados clínicos e epidemiológicos são consistentes com a capacidade do jejum em retardá-los, devido à sua capacidade de estimular a autofagia, reduzir o dano oxidativo, a inflamação, e os níveis circulantes de glicose, insulina e IGF-1 (um hormônio que, dentre tantas funções, está envolvido na longevidade).
Apesar da revisão ser interessante e esclarecedora em muitos aspectos, acredito que a conclusão sobre envelhecimento e longevidade pode ter sido afetada por viés de otimismo. Grande parte das análises foi baseada em modelos animais, não sendo possível extrapolar os resultados para humanos. Embora tenham sido revisados ensaios clínicos randomizados, não se menciona o critério para a seleção desses estudos, deixando a impressão – posso estar enganado – de um cherry-picking para reforçar a narrativa positiva em torno do jejum intermitente. Adicionalmente, é inegável o conflito de interesse financeiro de Mattson, evidenciado pela publicação de seu livro mais recente, “The Intermittent Fasting Revolution: The Science of Optimizing Health and Enhancing Performance”.
Jejum e câncer
Citando novamente o artigo “Fasting: Molecular Mechanisms and Clinical Applications”, a hipótese por trás da utilização do JI para a prevenção e o tratamento do câncer pressupõe que algumas das alterações hormonais e celulares trazidas pelo jejum (por exemplo, o aumento da autofagia) são hostis à doença. No entanto, os autores reconhecem que não há dados disponíveis de ensaios clínicos realizados em humanos que comprovem essa hipótese.
Antes de continuarmos, é preciso destacar alguns pontos que geralmente causam confusão quando tratamos de intervenções de saúde na área oncológica. “Câncer” é um termo genérico utilizado para englobar um grande grupo de doenças que são caracterizadas pela proliferação descontrolada de células.
Diversos cânceres estão ligados a fatores de risco conhecidos e associados a estilo de vida, como tabagismo e álcool. Mas eliminar fatores de risco não significa eliminar o risco: se pensarmos no câncer como um “prêmio” de loteria, evitar fatores de risco reduz a chance do seu número ser sorteado, mas ele nunca realmente sai do jogo.
E esse é o meu grande problema quando vejo ou ouço alguém afirmando que determinada ação dietética pode “prevenir” a doença X, Y ou Z. Isso só é verdade, ao pé da letra, quando a doença tem uma conexão causal direta com a dieta (como escorbuto e falta de vitamina C).
Por conta disso, adianto que os estudos de que trataremos a seguir não investigaram um suposto efeito preventivo do jejum sobre o câncer, mas do efeito terapêutico na redução dos efeitos colaterais da quimioterapia e da evidência atual para o câncer de mama.
Há uma revisão sistemática publicada recentemente (2023) intitulada “Fasting during cancer treatment: a systematic review”. Nessa revisão, foram incluídos todos os tipos de pesquisa realizadas em humanos que relatassem desfechos relevantes para os pacientes após intervenções dietéticas, como jejum ou consumo calórico inferior a 400 kcal/dia.
Estudos em línguas além do alemão e do inglês foram excluídos da amostra, assim como pesquisas realizadas em animais e que investigaram condições pré-cancerosas.
Após a aplicação desses critérios, restaram nove publicações, sendo seis ensaios clínicos randomizados e controlados (RCTs), um ensaio clínico do tipo cross-over controlado (onde os mesmos voluntários recebem tanto a intervenção quanto o placebo, mas em momentos diferentes), um relato de caso e um estudo de coorte. Isso totalizou 308 pacientes para análise, majoritariamente do sexo feminino, com idades de 27 a 77 anos.
Em relação à qualidade, ao utilizar o checklist-SIGN para RCTs, uma ferramenta criada por um órgão público escocês para verificar a qualidade desses estudos, os autores classificaram os trabalhos como de qualidade baixa ou moderada.
Eles comentam que isso se deve, possivelmente, ao fato de intervenções desta natureza não poderem ser “cegas”, aumentando o risco de os pacientes experimentarem o efeito de Hawthorne (mudança no comportamento de um voluntário que sabe estar sendo observado), o que pode acabar afetando tanto a maneira como os pacientes relatam efeitos colaterais quanto aspectos subjetivos de qualidade de vida (diminuição de dor, aumento de disposição, etc.), o que maquia os resultados encontrados.
Os autores conduziram duas frentes de análise: qualidade de vida e sintomas induzidos pela quimioterapia.
Em relação ao primeiro tópico, verificou-se que houve heterogeneidade entre os estudos analisados, sendo que dois encontraram um aumento significativo na qualidade de vida com o jejum após o tratamento quimioterápico, dois não encontraram diferenças e um não encontrou um aumento significativo com o jejum após a cirurgia.
Além disso, os autores pontuam que algumas das pesquisas que apresentaram um parecer positivo à aplicação do jejum tinham falhas metodológicas preocupantes.
Em relação aos possíveis benefícios do jejum sobre os efeitos colaterais induzidos pela quimioterapia, observou-se que três RCTs não encontraram diferenças significativas entre o grupo que recebia a intervenção e o grupo controle, e dois observaram uma redução significativa em sintomas adversos.
Contudo, esses estudos também apresentaram problemas metodológicos.
Com base nisso, os autores da revisão concluem que a evidência atual não apoia a hipótese de que o jejum tem qualquer efeito benéfico na qualidade de vida dos pacientes oncológicos durante o tratamento. Além disso, destacam que há uma ausência de dados que indiquem que os regimes de jejum reduzam os efeitos colaterais da quimioterapia.
Indo ao encontro da conclusão anterior, outro grupo de pesquisadores também investigou os possíveis efeitos terapêuticos do jejum na redução dos efeitos adversos causados pela quimioterapia. Trata-se da revisão sistemática intitulada “Therapeutic Fasting in Reducing Chemotherapy Side Effects in Cancer Patients: A Systematic Review and Meta-Analysis”.
Os autores concluem que, baseando-se nos artigos revisados, jejum e dietas similares não demonstraram efeitos claros na redução dos efeitos adverso da quimioterapia (como náusea, fraqueza, etc.), independentemente do tipo de câncer, duração e tipo de intervenção.
Deixando de lado este tema, vamos discutir a revisão sistemática intitulada “Intermittent Fasting in Breast Cancer: A Systematic Review and Critical Update of Avaliable Studies”. Esta revisão teve como objetivo examinar o impacto do jejum intermitente em pacientes diagnosticados previamente com câncer de mama, focando nos escores de qualidade de vida durante a quimioterapia, na recorrência do câncer e nos efeitos adversos dessa prática nessas populações.
O resultado agregado dos estudos avaliados aponta numa direção positiva – tanto nas avaliações de qualidade de vida quanto na capacidade dos pacientes de tolerar o jejum. Entretanto, os autores da revisão ressaltam algumas limitações importantes. Por exemplo, a baixa qualidade dos estudos disponíveis, a escassez de dados na literatura e a alta heterogeneidade dos estudos quanto ao tipo de intervenção e desfecho, o que impossibilitou uma análise estatística adequada do conjunto.
Como podemos observar, o assunto é muito mais complexo do que o retratado por algumas figuras influentes do Instagram. A evidência disponível não é clara e possivelmente não indica superioridade do jejum em relação a outras técnicas dietéticas. Claramente, a questão da individualidade é crucial aqui; alguns pacientes podem se beneficiar da prática, mas é essencial que recebam acompanhamento constante para assegurar que essa terapia complementar não está prejudicando sua condição.
Apesar de não se tratar de uma revisão sistemática como as referências anteriores, o artigo “Intermittent fasting in the prevention and treatment of cancer” realiza um excelente trabalho ao elucidar essa questão. Caso tenha interesse no tema, sugiro que o leia na íntegra.
Depois de apontar várias diferenças cruciais entre o ser humano e os modelos animais (como camundongos) em que a maior parte das hipóteses mirabolantes sobre os benefícios do jejum de baseiam, e de ponderar a respeito das bases teóricas e dos dados disponíveis a respeito dessas hipóteses, os autores concluem que, embora o controle de peso seja crucial para pacientes com câncer e sobreviventes, e o jejum intermitente seja eficaz na redução do peso corporal, seus efeitos em marcadores hormonais e inflamatórios relacionados ao câncer parecem não ser clinicamente significativos. Além disso, os efeitos do JI em desfechos como incidência de câncer e prognóstico após diagnóstico ainda são desconhecidos, devido à falta de estudos robustos em humanos.
Por fim, os autores sugerem que o JI não deve ser recomendado para pacientes em tratamento ativo contra o câncer e nem para pacientes que o utilizam como estratégia de emagrecimento, a menos que seja como parte de um ensaio clínico.
Como mencionei anteriormente, este tema é extremamente complexo e, enquanto não houver pesquisas robustas que permitam uma conclusão mais clara, o que se pode afirmar é que o jejum intermitente pode ser uma alternativa viável para perda de peso, mas não superior à restrição calórica. E certamente não é a panaceia que alguns promovem.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
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