Não é muito sábio tentar debater seriamente um assunto na seção de comentários de uma rede social. Porém, nem sempre somos sábios. Isso se aplica a você, leitor(a), e a mim. E a mim se aplicava com muita frequência, pois foi nas páginas do Facebook que comecei minha jornada contra o negacionismo científico, especialmente no que dizia respeito à evolução. Não me lembro de todos os detalhes, mas um dia discutia com um criacionista no Facebook sobre DNA Lixo, tema da coluna passada. Argumentei que havia várias razões para a existência e prevalência do DNA Lixo nos genomas, ao que o criacionista respondeu mais ou menos assim: “vocês evolucionistas não sabem nem o que vocês mesmos fazem. Não viu que o ENCODE demonstrou que pelo menos 80% do genoma é funcional?”.
Eu poderia ter perguntado “e os outros 20%?”, já que insisto que o debate sobre DNA Lixo deve ser sobre quantidade, não existência. Mas não, tomei um caminho diferente. Àquela altura, já sabia que, longe dos holofotes midiáticos, as conclusões do ENCODE sobre DNA Lixo não se sustentavam, e já tinham sido refutadas ou, no mínimo, fortemente contestadas na literatura evolutiva especializada. Mas parece que até mesmo parte dos meus colegas biólogos não estava, ou não está, ciente disso. Então, vejamos como a suposta “morte” do DNA Lixo, proclamada pela mídia, foi mais confusão do que esclarecimento.
O consórcio ENCODE (Encyclopaedia of DNA Elements) [Enciclopédia de Elementos de DNA, em livre tradução] teve dezenas de artigos publicados em 2012, muitos deles em prestigiados periódicos, como Nature e Science. O objetivo era o seguinte (retirado de Maher, 2012): “O projeto ENCODE foi criado para continuar de onde o Projeto Genoma Humano parou... O objetivo é catalogar as sequências de DNA 'funcionais' que se escondem ali, aprender quando e em quais células estão ativas e rastrear seus efeitos sobre como o genoma é embalado, regulado e lido”. Nobres objetivos, sem dúvida. Porém...
Um dos artigos publicados em 2012, por Birney e colaboradores, afirma que o ENCODE foi capaz de mapear “sistematicamente regiões de transcrição, associação de fatores de transcrição, estrutura da cromatina e modificação de histonas” e que tais dados “permitiram atribuir funções bioquímicas para 80% do genoma, especialmente fora das regiões codificadoras de proteínas bem estudadas”. Logo, a mídia estava proclamando a morte definitiva do DNA Lixo. Por exemplo, Elizabeth Pennisi escreveu na Science um artigo intitulado “ENCODE Project Writes Eulogy for Junk DNA”, que pode ser traduzido como “Projeto ENCODE escreve discurso fúnebre pra o DNA Lixo”. Felizmente especialistas logo começaram a tecer críticas. Infelizmente, críticas especializadas nunca têm o mesmo estaque no noticiário.
Não quero, nem nenhum crítico da propaganda entorno do ENCODE quis dizer, jamais, que os mais de 30 artigos do consórcio são inúteis. Nunca! Provavelmente, a maioria traz resultados importantes. Mas o mais problemático do ENCODE foi justamente o que rendeu mais cliques.
O problema fundamental foi igualar “função” ou “atividade bioquímica” com função biológica. Como ressaltado no trecho acima, sim, o ENCODE teria mapeado “regiões de transcrição, associação de fatores de transcrição, estrutura da cromatina e modificação de histonas”. Tudo isso configura, de fato, atividade bioquímica.
Mas é fácil ver como igualar isso a função biológica, no sentido de função originada ou mantida pela atividade da seleção natural, é um absurdo. Dan Graur, um dos mais ferrenhos críticos do ENCODE (ver, por exemplo, essa palestra), explicou com uma analogia o problema: “Você já pisou em um chiclete? Ele gruda na sola do seu sapato. Mas essa não é a função do chiclete, grudar no sapato em um dia quente”. Ou seja, não é porque algo pode desempenhar um certo papel que sua função é exatamente aquela!
Ainda em 2012, Sean R. Eddy havia ressaltado esse ponto importante:
“A questão que o conceito de 'DNA Lixo' aborda não é se essas sequências são bioquimicamente 'ativas', mas se elas estão lá principalmente porque são úteis para o organismo. Análises de conservação de sequência, incluindo as do ENCODE, indicam consistentemente que apenas cerca de 5%-20% do genoma humano está sob pressão seletiva detectável”.
Estar sob pressão seletiva significa, em linhas gerais, que uma sequência de DNA é favorecida ou desfavorecida pela seleção natural, influenciando a sobrevivência e a reprodução dos organismos. A seleção purificadora, por exemplo, remove mutações prejudiciais, mantendo a sequência estável ao longo do tempo. Se uma sequência está sob seleção purificadora, isso sugere que tem uma função importante para o organismo, pois mutações tendem a não ser toleradas. Portanto, apenas cerca de 5%-20% do genoma humano, que estaria sob pressão seletiva detectável, poderia ser considerado funcional em termos de ser essencial para a sobrevivência ou a reprodução.
A controvérsia ganhou vida. E como é sabido, começar um incêndio é mais fácil do que apagá-lo. A história de toda a controvérsia envolvendo ENCODE, Nature e Science é contada em detalhes por Larry Moran em seu livro “What’s in your Genome? 90% of your Genome is Junk”. Em resumo, no fim os envolvidos no ENCODE resolveram, ainda que de forma discreta, reconhecer o erro. Tarde demais, é claro. Publicaram a admissão na Nature ou Science, onde teria o mesmo destaque da publicação original? É claro que não. Casane et al. (2015), resumem a triste situação:
“Em setembro de 2012, um lote de mais de 30 artigos apresentando os resultados do projeto ENCODE (Enciclopédia dos Elementos de DNA) foi publicado. Muitos desses artigos apareceram nas revistas Nature e Science. [...] Esse projeto levou a uma aparente mudança de paradigma: ao contrário da visão clássica, 80% do genoma humano não é DNA Lixo, mas funcional. Essa hipótese foi criticada por biólogos evolutivos, e refutações detalhadas foram publicadas em revistas especializadas com fatores de impacto muito inferiores àquelas que publicaram a principal contribuição do projeto ENCODE. [...] Infelizmente, nessa época muitos biólogos já haviam aceitado a ideia de que 80% do genoma é funcional ou, pelo menos, que essa ideia é uma alternativa válida à visão genética evolutiva, de longa data, de que não é funcional. Para entender a dinâmica do genoma, é necessário reexaminar os fundamentos da genética evolutiva porque, além de serem bem estabelecidos, eles também nos permitirão evitar a armadilha de uma interpretação panglossiana do ENCODE”.
Então, não, o ENCODE não demonstrou que 80% do genoma é funcional – no sentido de ter atividade relevante para o organismo –, e tampouco enterrou o DNA Lixo. Me despeço desse tema. Por enquanto.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
PARA SABER MAIS
Um dos papers de apresentação dos resultados e interpretações do ENCODE:
ENCODE Project Consortium. (2012). An integrated encyclopedia of DNA elements in the human genome. Nature, 489(7414), 57.
Críticas ao ENCODE:
Casane, D., Fumey, J., & Laurenti, P. (2015). L’apophénie d’ENCODE ou Pangloss examine le génome humain. médecine/sciences, 31(6-7), 680-686.
Eddy, S. R. (2012). The C-value paradox, junk DNA and ENCODE. Current biology, 22(21), R898-R899.
Niu, D. K., & Jiang, L. (2013). Can ENCODE tell us how much junk DNA we carry in our genome?. Biochemical and biophysical research communications, 430(4), 1340-1343.
Doolittle, W. F. (2013). Is junk DNA bunk? A critique of ENCODE. Proceedings of the National Academy of Sciences, 110(14), 5294-5300.
Graur, D., Zheng, Y., Price, N., Azevedo, R. B., Zufall, R. A., & Elhaik, E. (2013). On the immortality of television sets:“function” in the human genome according to the evolution-free gospel of ENCODE. Genome biology and evolution, 5(3), 578-590.
Eddy, S. R. (2013). The ENCODE project: missteps overshadowing a success. Current Biology, 23(7), R259-R261.
Hurst, L. D. (2013). Open questions: A logic (or lack thereof) of genome organization. BMC biology, 11(1), 58.
Morange, M. (2014). Genome as a multipurpose structure built by evolution. Perspectives in Biology and Medicine, 57(1), 162-171.
Palazzo, A. F., & Gregory, T. R. (2014). The case for junk DNA. PLoS genetics, 10(5), e1004351.
O Livro de Moran que trata do assunto:
Moran, L. A. (2023). What's in Your Genome?: 90% of Your Genome Is Junk. University of Toronto Press.
Novo “pronunciamento” de membros do ENCODE em 2014:
Kellis, M., Wold, B., Snyder, M. P., Bernstein, B. E., Kundaje, A., Marinov, G. K., ... & Hardison, R. C. (2014). Defining functional DNA elements in the human genome. Proceedings of the National Academy of Sciences, 111(17), 6131-6138.