No dia 11 de julho de 2024, diversos portais de notícia divulgaram a seguinte matéria: “Pesquisa encontra níveis elevados de álcool em pães de forma”. A possibilidade de haver álcool em pães de forma gerou um sinal de alerta entre os consumidores, que podem estar sendo enganados ao consumir essa substância de forma indireta. A situação também despertou a atenção de profissionais de saúde, como pediatras e obstetras, e da Anvisa, órgão responsável por controlar e fiscalizar alimentos. De acordo a ISTOÉ, a Anvisa iniciou uma investigação sobre o caso, que poderá levar a medidas corretivas, caso a agência considere necessário.
Dando um breve resumo – a pesquisa será detalhada na seção seguinte –, o estudo foi realizado pela Proteste, que se apresenta como a maior associação de consumidores da América Latina. O estudo avaliou o teor de etanol residual em diferentes lotes de dez marcas de pão de forma.
A conclusão apresentada foi de que, das dez marcas testadas, apenas quatro apresentaram teores de etanol abaixo de 0,5%. No caso de bebidas, este é o limite para não serem classificadas como alcoólicas. Uma cerveja pode se dizer “sem álcool”, por exemplo, se tiver menos 0,5% de etanol. Não existe, no momento, limite semelhante definido para alimentos sólidos.
Henrique Lian, diretor-executivo da Proteste, atribui os níveis elevados de etanol ao processo de fermentação e ao uso de conservantes, que impedem ou retardam a deterioração dos alimentos provocada por microrganismos e enzimas.
A Proteste também avaliou a possibilidade de motoristas serem acusados de embriaguez no teste do bafômetro após consumir esses pães. De acordo com a análise realizada, o consumo de duas fatias dos pães que, na avaliação, apresentaram maior teor alcoólico, como os da Visconti e Bauducco, poderia resultar em um teste positivo.
Um vídeo do Detran-GO mostra uma voluntária consumindo duas fatias de pão Visconti e realizando o teste do bafômetro, que indicou uma concentração de 0,12mg de álcool por litro de ar, acima do limite legal de 0,05mg/L.
Para quem não está familiarizado, o bafômetro busca medir a concentração de etanol no ar exalado dos pulmões, o que reflete a presença de álcool no sangue. A “investigação” do Detran-GO, na verdade, mostrou apenas o quanto de álcool residual ficou na boca após consumir o pão de forma, não o que foi parar no sangue. Como explicou o médico do tráfego Alysson Coimbra na publicação “Pão de forma X Bafômetro: O Risco de Fake News”, o álcool presente na cavidade bucal dissipa-se e deixa de ser detectável em 10 a 15 minutos.
O estudo
O objetivo da pesquisa realizada pela Proteste foi avaliar o teor de etanol residual em diversas marcas de pães de forma comerciais.
Para isso, os autores conduziram duas análises. A primeira, no entanto, não produziu resultados precisos para a maioria das amostras avaliadas, mas apenas faixas – a maioria das amostras registrou teor de álcool “superior a 0,16%” –, o que não implica, necessariamente, um grau fora do limite (para bebidas) de 0,5%. As conclusões do relatório publicado pelo Proteste baseiam-se apenas nos resultados do segundo grupo de análises, que de acordo com a entidade foram considerados “mais seguros”.
A segunda bateria de avaliações constatou que, de 16 produtos testados, seis apresentaram nível de álcool abaixo de 0,5%. Um lote específico da marca Pullman foi o que apresentou os níveis mais baixos de etanol, com 0,05%.
Com base nos resultados, os autores concluíram que, das dez marcas analisadas, somente quatro (Plusvita, Seven Boys, Pullman e Wickbold tradicional) apresentaram produtos considerados não alcoólicos. Ou seja, 60% da amostra, se comparada às bebidas alcoólicas, seria classificada como “alimentos alcoólicos”, caso houvesse legislação semelhante.
Os autores também calcularam, com base no limite estipulado pelo Detran para a quantidade segura de álcool no organismo durante o teste do bafômetro (abaixo de 3,3g de álcool), a quantidade permitida de álcool por litro de sangue para uma pessoa adulta (0,44g/L). Com esse valor, determinaram quais marcas poderiam representar riscos para motoristas submetidos ao teste do bafômetro. Três marcas analisadas apresentaram valores superiores a 0,44g/L: Bauducco (0,45g), Visconti (1,69g) e Wickbold 5 Zeros (0,45g).
O relatório sugere que o elevado teor de etanol pode ser um indicativo de abuso do antimofo líquido, que tem álcool de cereais como excipiente.
As ressalvas do setor
Como era de se esperar, os fabricantes de pães industrializados se pronunciaram a respeito. A manifestação veio da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias, Pães e Bolos Industrializados), entidade que representa os interesses do setor junto aos órgãos reguladores e tomadores de decisão políticos.
De acordo com o posicionamento publicado, a Abimapi afirma que não concorda com as conclusões apresentadas no Relatório Técnico e Mercadológico divulgado pela Proteste. Segundo a associação, o relatório não consultou o setor envolvido, gerou forte temor popular e apresentou inúmeras incoerências na análise.
A associação acusa diversas falhas no teste: não há informação, por exemplo, sobre repetibilidade (capacidade de repetir um processo e obter resultados que não contradigam os originais), reprodutibilidade (capacidade de reproduzir um processo em diferentes condições e obter resultados semelhantes) e duplicidade (replicação do procedimento no mesmo conjunto de amostras, para garantir maior precisão e confiabilidade dos resultados originais), o que impede assegurar que os resultados encontrados reflitam a realidade. Além disso, a pesquisa inferiu, por meio de uma regra de três, uma conclusão incoerente ao comparar os resultados do teor alcoólico nos pães de forma com o teste de bafômetro.
A Proteste também comparou os resultados encontrados com valores descritos em legislações sobre bebidas alcoólicas, sem levar em conta a diferença entre bebida e alimento sólido.
Essas são as ressalvas mais importantes, e fazem sentido. A falta de checagem e repetição dos resultados é de fato um problema, bem como a confusão entre bebida e comida: não é correto fazer comparações diretas entre as categorias.
Pão dá pileque?
Sendo extremamente sincero, acredito que só há dois cenários possíveis em que (supondo que os resultados do teste sejam confiáveis) um indivíduo poderia ficar bêbado – ou “alegre” – consumindo pão de forma.
O primeiro seria em um churrasco ou qualquer outro evento culinário onde o pão é acompanhado por algumas cervejas. O segundo seria em um contexto de experimentação, onde alguém que leu sobre o assunto resolve testar a hipótese em casa, ingerindo dois pacotes de pão de forma da marca com o maior teor alcoólico registrado.
Brincadeiras à parte, acredito realmente que é impossível ficar bêbado apenas consumindo pão de forma. E o motivo é bem simples: a quantidade de álcool que, segundo o teste, pode estar presente em uma fatia de pão – mesmo na marca com o maior teor de etanol encontrado – é de apenas 0,84 g.
Esse valor é extremamente baixo se comparado a uma taça de 150 ml de vinho tinto (uma dose padrão), que contém 14 g de álcool. Em outras palavras, 20 ml de vinho são equivalentes a duas fatias de pão de forma. Acredito que a maioria concorda que essa quantidade de vinho não é suficiente para provocar um efeito psicoativo significativo.
Claro, alguém poderia argumentar que há muitos fatores que podem tornar uma pessoa mais suscetível aos efeitos do álcool, como genética, metabolismo, peso e altura, além da quantidade e frequência do consumo, entre outros. Por sinal, tenho “lugar de fala” nesse assunto, já que sou uma das pessoas mais sensíveis ao álcool que conheço.
E concordo inteiramente com isso. No entanto, conforme descrito no livro “Critical Issues in Alcohol and Drugs of Abuse Testing” e na publicação “Blood Alcohol Content”, a ingestão de uma dose padrão geralmente aumenta a concentração de álcool no sangue de 25 mg/dL a 50 mg/dL. Dentro dessa faixa, é normal que o indivíduo sinta efeitos de prazer. No entanto, a partir de 80 mg/dL (o equivalente a aproximadamente duas bebidas), o indivíduo pode apresentar problemas menores, como fadiga e diminuição no tempo de reação. A partir de 100 mg/dL, considera-se que o indivíduo está bêbado, apresentando efeitos depressivos mais pronunciados, comprometimento do sistema motor, julgamento e percepção severamente prejudicados.
Em outras palavras, há uma chance – especulativa, baseada numa mera regra de três – de duas fatias de pão de forma aumentarem a concentração de álcool no sangue entre 3 e 6 mg/dL, algo que não chega a gerar nem mesmo sensação de relaxamento.
Isso sem levar em consideração que quando há o consumo de alimentos antes da ingestão de bebidas alcoólicas, a velocidade de absorção do álcool diminui, o que torna mais difícil ficar bêbado.
Mas pode fazer mal?
Como quase tudo na vida, a resposta para essa questão é: depende. Se você fizer parte de um grupo para o qual o álcool representa um risco efetivo – doentes hepáticos, gestantes –, talvez seja melhor, ao menos enquanto a Anvisa ainda estuda o assunto, evitar pão de forma industrializado. Entretanto, caso esse não seja o seu caso, há uma grande chance de que os pães não causem nenhum problema de saúde.
Para colocarmos em perspectiva, no início de 2023, o Canadian Centre on Substance Use and Addiction (CCSA), uma organização não governamental que oferece soluções para lidar com danos relacionados ao álcool e outras drogas, publicou o “Canada’s Guidance on Alcohol and Health: Final Report”. Este relatório substituiu as diretrizes anteriores sobre o consumo de álcool de baixo risco e teve como objetivos orientar as pessoas a tomarem decisões bem informadas e responsáveis sobre o consumo de álcool, atualizar as informações sobre os riscos e danos associados ao uso de álcool, e servir como uma base de evidências para futuras políticas públicas.
Para estabelecer as diretrizes atualizadas, os autores criaram um modelo matemático para fornecer pontos de referência que permitem estimar o "risco extra" de mortalidade e invalidez associado a diferentes níveis de consumo de álcool e especificar o nível de risco, que varia de baixo a alto, associado a cada faixa de consumo.
A busca por estudos que pudessem embasar o modelo levou a16 revisões sistemáticas, baseadas no que os autores consideraram métodos rigorosos e sólidos.
Como resultado, observou-se que o álcool teve um impacto negativo na maioria das doenças e lesões, independentemente da concentração utilizada. Em geral, quanto maior o número de doses padrão (estipulada em 13,45 g de álcool puro) consumidas semanalmente, maior a associação com alguma doença ou lesão.
Além disso, os autores desenvolveram modelos para verificar os anos de vida perdidos devido a doenças relacionadas ao álcool, estratificados por sexo e consumo de álcool, variando de 1 a 35 doses padrão por semana.
Com base nos dados encontrados, observou-se que os anos de vida perdidos aumentam à medida que o consumo de álcool sobe, para ambos os sexos.
A partir das observações feitas, os autores concluem que há um risco contínuo associado ao consumo de álcool. Existe um risco baixo para aqueles que consomem até duas doses padrão por semana, o equivalente a 26,9 g de álcool. Há um risco moderado para aqueles que consomem entre três e seis doses padrão por semana, e um risco cada vez mais alto para aqueles que consomem mais de seis doses padrão por semana (acima de 80,7 g). O risco aumenta a cada bebida adicional consumida.
Igualmente importante, o consumo de mais de duas doses padrão em ocasiões especiais está associado a um aumento do risco de danos tanto para a pessoa quanto para os outros, incluindo lesões e violência.
Se utilizássemos essa diretriz, uma das mais rigorosas do mundo em relação ao consumo de álcool, para classificar o potencial de risco do pão de forma da marca Visconti (a que apresentou o maior teor de etanol entre as testadas), verificaríamos que a concentração de álcool não representa um risco significativo – para não dizer irrelevante – para pessoas saudáveis.
Para ilustrar, com exceção da recomendação ideal – e quase utópica – de não consumir nenhum drinque semanalmente, proposta pelo CCSA, o consumo de dois sanduíches, ou quatro fatias de pão de forma Visconti, forneceria um teor alcoólico de 3,34 g. Em comparação, uma lata de cerveja de 341 ml contém 13,45 g de álcool.
De acordo com o próprio CCSA, você provavelmente evitará consequências relacionadas ao álcool para si e para os outros se consumir de uma a duas bebidas por semana, o que é considerado um grupo de baixo risco.
Embora não seja especialista em exatas, acredito que, se minha matemática estiver correta, isso significa que a margem de consumo de álcool para o grupo de baixo risco varia de 13,45 g a 26,9 g por semana. Para atingir esses valores consumindo pão de forma, seria necessário consumir pelo menos 16 fatias semanais (o que equivale a 8 sanduíches) para alcançar o valor mínimo, e 32 fatias para o valor máximo. Além de ser um valor um tanto irrealista, se você está consumindo essa quantidade de pão industrializado, é provável que haja problemas em sua dieta maiores do que o suposto potencial inebriante do pão.
Isso não significa que você deva consumir o pão de forma, muito menos começar a beber, mas serve para entender a relevância dos resultados encontrados pela Proteste.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
ISTOÉ. Anvisa abre processo após análise identificar alto teor de álcool em pães de forma. 2024. Disponível em: https://istoe.com.br/anvisa-abre-processo-apos-analise-identificar-alto-teor-de-alcool-em-paes-de-forma/#:~:text=%2B%20Pesquisa%20mostra%20presen%C3%A7a%20de%20%C3%A1lcool,caso%20a%20ag%C3%AAncia%20entenda%20necess%C3%A1rias..
PROTESTE. Pães de forma têm álcool? Veja riscos à saúde após estudo da PROTESTE. 2024. Disponível em: https://www.proteste.org.br/momento-proteste/noticias/noticia/pao-de-forma.
BARROS, R. Relatório Técnico e Mercadológico: Etanol em Pão de Forma. 2024. Disponível em: https://www.temalcoolnopao.com.br/Relatorio-de-Teor-de-Alcool-Pao-de-Forma-VF-29-02.pdf.
REVISTA EMPREENDE. Posicionamento ABIMAMPI: Teor alcoólico em pães de forma. 2024. Disponível em: https://revistaempreende.com.br/posicionamento-abimapi-teor-alcoolico-em-paes-de-forma/.
DASGUPTA, A. Critical Issues in Alcohol and Drugs of Abuse Testing. Massachusetts. Ed: Academic Press. 2nd ed. 2019. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/book/9780128156070/critical-issues-in-alcohol-and-drugs-of-abuse-testing.
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PARADIS, C. et al. The Low-Risk Alcohol Drinking Guidelines Scientific Expert Panels (2023). Canada’s Guidence on Alcohol and Health: Final Report. Disponível em: https://www.ccsa.ca/sites/default/files/2023-01/CCSA_Canadas_Guidance_on_Alcohol_and_Health_Final_Report_en.pdf.