Recentemente, o Discovery Institute, que promove o Design Inteligente, tem travado diversas batalhas contra o biólogo Dan Stern Cardinale. São vídeos no YouTube, bem como diversos posts no site Evolution News, a voz diária do instituto. Dan também não tem poupado esforços, seja para se defender ou atacar (os argumentos) em seu canal Creation Myths. É curioso e irônico, contudo, que uma parte da comunidade científica olhe para essa batalha e conclua que é fútil, por causa do tema. Qual tema? A existência do assim chamado Junk DNA, ou "DNA Lixo".
Não é raro ler algum artigo em biologia molecular e ser apresentado a algo nos seguintes moldes: “por muito tempo, cientistas pensavam que a parte não codificante do genoma (isto é, a parte que guarda informação para produzir proteínas) era DNA lixo, mas descobertas recentes têm revelado que eles estavam enganados”. O leitor é deixado com a impressão, portanto, que a hipótese da presença de DNA Lixo nos genomas dos organismos baseava-se puramente em ignorância. A história do tema, no entanto, revela uma realidade muito diferente.
Conhecer a história de um tema é importante. E não é só para não repetir erros. Como alertou certa vez Stephen Jay Gould (Ontogeny and Phylogeny, 1977): “Aqueles que são ignorantes da História não estão condenados a repeti-la; estão apenas destinados a ficar confusos”. Acredito que é justamente o que tem acontecido com o tema DNA Lixo. Por exemplo, é simplesmente falso que os proponentes do DNA Lixo nos anos 1960 e 1970 acreditavam que todo DNA não codificante era lixo. O que se entende por DNA Lixo, na verdade, é DNA que não é funcional no nível do organismo, isto é, sua presença no genoma não é produto direto da seleção natural.
Muitos dos meus colegas biólogos vão dizer que não existe DNA Lixo. Outros vão dizer que sim. Parece ser, em algum grau, uma diferença entre campos: biólogos moleculares tendem a rejeitar a existência do DNA Lixo, enquanto biólogos evolutivos, com base em genética de populações, tendem a ser mais favoráveis à ideia.
Embora paleontólogo, sou bacharel em Ciências Biológicas e tenho lido bastante sobre o tema. Devo assumir: creio que há, sim, DNA lixo nos genomas. E, por vezes, ele abunda! Você não precisa aceitar minha opinião – e nem formar a sua com base apenas nesta coluna. Claro, não estou sozinho nessa. Inclusive nomes de peso apoiam a ideia de DNA Lixo. Aqui está, por exemplo, o que Joe Felsenstein, professor emérito, Departamentos de Ciências Genômicas e de Biologia, Universidade de Washington, escreveu sobre um recente livro sobre o tema:
“Recentemente, a maioria dos biólogos moleculares e genomicistas foi convencida de que a maior parte da sequência em nossos genomas é intrinsecamente funcional, que a ideia de DNA Lixo foi um erro que agora pode ser amplamente descartada. Mas quase todos os pesquisadores em evolução molecular discordaram disso”.
A história do DNA Lixo é riquíssima e muito maior do que eu posso cobrir em um único artigo. Felizmente, o bioquímico Lawrence Moran, professor emérito da Universidade de Toronto, Canadá, resolveu contá-la em seu livro mais recente: “What's in Your Genome?: 90% of Your Genome Is Junk”, em tradução livre “O que há no seu genoma?: 90% do seu genoma é lixo”. O biólogo evolutivo Zachary Hancock — que já concedeu uma entrevista à Revista Questão de Ciência — também resolveu expor a “controvérsia” em seu vídeo mais recente no YouTube, que você pode assistir clicando aqui (apenas em inglês, infelizmente).
Além da história do conceito, Moran e Hancock apresentam evidência a favor da existência de uma prodigiosa quantidade de DNA Lixo nos genomas dos eucariotos, os organismos cujas células apresentam núcleo (por razões evolutivas, ideias semelhantes às que preveem existência de abundante quantidade de DNA Lixo nos genomas eucariotos também preveem que nos procariotos, organismos sem núcleo celular organizado, como bactérias, a quantidade de DNA Lixo deve ser pequena). Claro que não posso aqui apresentar todos os pontos, mas posso, sim, oferecer pelo menos algumas provocações. Para uma defesa mais exaustiva, visite a seção saiba mais, ao final do texto.
Devemos encarar e tentar explicar alguns fatos curiosos sobre a diversidade do tamanho do genoma dos eucariotos. Primeiro, o tamanho do genoma varia significativamente entre as espécies. Por exemplo, o genoma humano conta com cerca de 3.1 Gbp (bilhões de pares de bases), enquanto o genoma do krill antártico Euphausia superba, um minúsculo invertebrado, tem 48 Gbp, isto é, cerca de 16 vezes maior que o nosso! Cabe a pergunta: precisa mesmo de tanto DNA funcional pra construir um krill, mas não um ser humano, ou será que há no genoma dos E. superba um estoque desnecessário?
Segundo ponto: a relação entre o tamanho do genoma e a complexidade de um organismo, ou com o número presumido de genes que codificam proteínas, não é a que poderíamos esperar. O genoma humano (afinal, nos consideramos complexos e sofisticados) contém oito vezes mais DNA que o de um baiacu, mas tem só 2,5% do tamanho do de um peixe pulmonado, Protopterus aethiopicus. Faz sentido? Mas não para por aí.
Terceiro: os organismos com genomas muito grandes não são raros ou exceções — por exemplo, dos mais de 200 genomas de salamandras analisados até o momento, todos são entre quatro e 35 vezes maiores do que o genoma humano. E se dermos uma olhada no reino das plantas, a situação pode ficar ainda mais tensa. No dia 31 de maio de 2024 foi publicado no periódico Cell um artigo reportando o maior genoma eucarioto conhecido, pertencente a uma samambaia e que chega a 160 Gbp. Isso é mais de 50 vezes o tamanho do genoma humano! Será mesmo necessário que todos esses pares de bases, ou até mesmo a maioria deles, tenham alguma função?
Finalmente, mesmo espécies de parentesco muito próximo, com propriedades biológicas muito semelhantes, podem ter genomas de tamanho significativamente diferentes. Por exemplo, o crustáceo Haustorius canadensis tem um genoma de 14 Gbp, enquanto um parente muito próximo, H. allardi exibe apenas 2,5 Gbp. É uma diferença considerável, e se você buscar imagens dessas criaturas adoráveis, não há aparente razão morfológica para supor tamanha discrepância. Tampouco a ecologia sugere isso.
Essa é apenas uma linha de provocações que nos põem a contemplar a possibilidade de que parte considerável dos genomas de muitos eucariotos não está ali porque foi selecionada, mas simplesmente porque não foi excluída, deletada. E se esses elementos não são funcionais, sendo alguns deles levemente prejudicais ao organismo, como podem estar presentes? A seleção natural não deveria tê-los eliminado? Deveria, se fosse a única “força” evolutiva no jogo. Sabemos, contudo, que há uma dança entre a seleção natural e deriva genética — que pode aumentar a frequência de uma variante adaptativamente neutra, ou mesmo levemente deletéria. É uma dança muito bela. E complexa, melhor descrita em termos matemáticos de genética de populações, bem como lançando mão do arcabouço teórico das teorias Neutra e Quase-Neutra da Evolução Molecular.
Eu precisaria de muito mais espaço para entrar em detalhes. Por ora, gostaria de encaminhar o assunto para o encerramento, lembrando algo que deveria estar na mente de todos que debatem sobre temas que envolvem história natural e evolução. A discussão sobre DNA Lixo não deve ser sobre se ele existe ou não. Essa é uma discussão improdutiva. Existe, e é inevitável. A verdadeira discussão é: quanto dos genomas é composto por DNA Lixo?
Na minha próxima coluna eu trago a questão ENCODE. Em 2012, o consórcio ENCODE anunciou a morte definitiva do DNA Lixo, ao reportar que havia detectado função em pelo menos 80% do genoma humano. Aos curiosos de plantão, por ora resta consultar o saiba mais. Até a próxima!
João Lucas da Silva é Mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
SAIBA MAIS
Fernández, P., Amice, R., Bruy, D., Christenhusz, M. J., Leitch, I. J., Leitch, A. L., ... & Pellicer, J. (2024). A 160 Gbp fork fern genome shatters size record for eukaryotes. iScience.
Hancock, Z. B., Hardin, F. O., Murthy, A., Hillhouse, A., & Johnston, J. S. (2021). Rapid genomic expansion and purging associated with habitat transitions in a clade of beach crustaceans (Amphipoda: Haustoriidae). Journal of Crustacean Biology, 41(3), ruab042.
Palazzo, A. F., & Gregory, T. R. (2014). The case for junk DNA. PLoS genetics, 10(5), e1004351.
Graur, D., Zheng, Y., Price, N., Azevedo, R. B., Zufall, R. A., & Elhaik, E. (2013). On the immortality of television sets:“function” in the human genome according to the evolution-free gospel of ENCODE. Genome biology and evolution, 5(3), 578-590.
Doolittle, W. F. (2013). Is junk DNA bunk? A critique of ENCODE. Proceedings of the National Academy of Sciences, 110(14), 5294-5300.
Moran, L. A. (2023). What's in Your Genome?: 90% of Your Genome Is Junk. University of Toronto Press.