Em 1860, o médico Oliver Holmes afirmou: “Se toda a matéria médica, como hoje é empregada, fosse afogada no fundo do mar, seria muito melhor para a Humanidade – e muito pior para os peixes”. Uma clara insatisfação para com a medicina como era praticada naquela época. Algo não muito diferente do que, algum tempo antes, havia dito Voltaire: “Médicos são homens que prescrevem remédios que pouco conhecem, para curar doenças que conhecem menos ainda, em seres humanos que eles desconhecem inteiramente”.
Não eram queixas infundadas. A assistência médica foi, por muito tempo, baseada em práticas agressivas e sem comprovação alguma de benefício. Esse período é chamado de época da “medicina heroica”. O nome veio, a princípio, da bravura de um médico tentando salvar vidas, sem saber realmente como. Mas, ironicamente, o herói acabava sendo o paciente que conseguia sobreviver ao tratamento.
Os danos causados por tratamentos médicos – e que violam o princípio fundamental da medicina: antes de mais nada, não causar mal – recebem o nome de iatrogenia. Esses danos podem variar de efeitos colaterais leves a complicações graves ou mesmo fatais. A origem da palavra vem do grego, onde "iatros" significa médico e "genia", origem.
Historicamente, muitos tratamentos foram aplicados com boas intenções, mas sem a devida compreensão dos efeitos adversos, levando a mais sofrimento do que alívio. Na medicina heroica, a iatrogenia era comum devido ao uso de intervenções agressivas e mal compreendidas. Pacientes precisavam suportar sangrias, purgações intestinais e vômitos induzidos. Doses de mercúrio, arsênico etc. E por que tudo isso era feito?
A resposta está na história do conhecimento médico e na pressão social que recaía sobre os profissionais de saúde. Na ausência de uma compreensão adequada das doenças, bem como na ausência de métodos científicos para avaliar a eficácia e a segurança de tratamentos, os profissionais baseavam suas ações em hipóteses não comprovadas e na tradição.
A ideia de que "fazer algo" era sempre melhor do que "não fazer nada" prevalecia. Essa abordagem era também uma maneira de responder à expectativa dos pacientes e de suas famílias, que ansiavam por soluções rápidas. Profissionais de saúde, portanto, não encontravam permissão moral para não agir (mesmo que, racionalmente, essa fosse a melhor opção) diante do sofrimento humano. E, ao agir, causavam mais mal do que bem.
Isso, infelizmente, não ficou restrito ao passado. Ecos da medicina heroica ainda são ouvidos na medicina contemporânea. A pressão por tratamentos e intervenções inovadores pode levar à implementação precoce de práticas em saúde questionáveis, antes que sejam suficientemente testadas. Isso cria um ciclo em que a novidade é confundida com eficácia, e os profissionais de saúde, bem como os pacientes, são seduzidos por promessas de resultados milagrosos. Infelizmente, isso tende a levar a tratamentos onerosos e ineficazes, perpetuando a iatrogenia em uma nova roupagem.
Também é possível notar, na atualidade, um movimento crescente a instaurar-se em práticas pseudocientíficas contemporâneas. Uma espécie "medicina heroica 2.0.", que prefiro chamar aqui de "Medicina Quixotesca". Uma prática ainda mais decadente do que o precedente histórico. Se, na medicina heroica original, tínhamos condições de saúde reais que, pela falta de uma compreensão científica, eram tratadas com intervenções de saúde agressivas e irracionais, na “Medicina Quixotesca” temos até mesmo condições de saúde fictícias (como "fadiga mitocondrial") sendo tratadas por intervenções irracionais, ilusórias (como "soroterapia para imunidade") e que surgem não como tentativa de preencher um vazio no conhecimento, mas em oposição ao conhecimento que já existe.
É claro que a "Medicina Quixotesca" não se limita apenas a tratamentos fictícios para doenças inventadas; ela também se manifesta na ressurreição de práticas antigas sob um verniz moderno, como é o caso da homeopatia e outras práticas consideradas tradicionais e complementares.
Denominei esta medicina de “quixotesca” porque o romance “Dom Quixote” representa exatamente a crítica à performance farsesca de heroísmo antiquado e anacrônico. Não há – ou não deveria haver – espaço para cavaleiros medievais na idade contemporânea. Quando esse espaço é arbitrariamente aberto, vemos moinhos de vento sendo atacados como se fossem dragões. Não podemos, à semelhança de Dom Quixote, permitir que o entusiasmo com a leitura de “romances de cavalaria” nos leve a abandonar a razão.
A inspiração para este nome me ocorreu em um exemplo recente desse heroísmo anacrônico, que pôde ser visto no “Protocolo Brasileiro de Terapia Pré-Hospitalar COVID-19” publicado em maio de 2020, no qual alguns médicos propuseram um protocolo de “tratamento precoce” para COVID-19, baseado em suposições e resultados de estudos mal-conduzidos. Ironicamente, o texto introdutório do protocolo diz “Este protocolo nasceu da angústia dos Médicos que se viram frente a frente com um inimigo desconhecido mas que, a exemplo de Dom Quixote, ergueram a lança e foram para cima do Dragão Covidiano ao grito de ‘vamos à luta para a implementação de um Tratamento Pré-Hospitalar!’”
Ao menos nesse sentido, o texto estava correto: na ânsia de combater um inimigo desconhecido, alguns profissionais levantaram suas lanças quixotescas contra o "Dragão Covidiano". Como Dom Quixote lutando contra moinhos de vento, esses profissionais abraçaram tratamentos precoces sem evidências sólidas, acreditando estar salvando vidas, enquanto na verdade apenas causavam confusão e, potencialmente, mais danos. A ironia é clara: em sua batalha heroica, eles se tornaram a caricatura de heróis involuntários em uma tragédia moderna, guiados mais pela fantasia de bravura do que pela ciência.
Porém, de todas as formas de coragem de que nos revestimos frente a uma situação de saúde adversa, frequentemente deixamos de fora a principal: a coragem de pensar cientificamente. Precisamos da coragem de continuar nos pautando nas evidências sólidas do mundo real. Caso contrário, ao usarmos armas quixotescas, seremos derrubados pelas pás desse moinho chamado realidade.
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto).