No início da semana passada, esta Revista Questão de Ciência (RQC) publicou artigo criticando a iniciativa do Conselho Federal de Medicina (CFM) de abrir uma pesquisa em seu site sobre a opinião dos médicos brasileiros quanto à decisão do Ministério da Saúde de incluir a vacina pediátrica da COVID-19 no Programa Nacional de Imunizações (PNI). No texto, Natalia Pasternak e Carlos Orsi, respectivamente presidente e diretor de Comunicação do Instituto Questão de Ciência (IQC), que publica a RQC, apontam a falta de adequação da ferramenta e formato da consulta para seus supostos objetivos, além do caráter tendencioso do discurso e linguagem adotados na enquete, o que também foi destacado por algumas das principais organizações médicas e científicas brasileiras, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) em conjunto com a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Editor-assistente que sou da RQC, fui repercutir e tentar ajudar na divulgação do artigo com uma publicação em meu perfil profissional no X, a rede social anteriormente conhecida como Twitter. Mal sabia eu que com isso também estaria abrindo uma Caixa de Pandora do movimento antivacina no Brasil. Compartilhado por duas subcelebridades antivax brasileiras no ex-Twitter, meu post acabou atraindo a atenção de seus seguidores, com comentários nada educados sobre minha pessoa.
Experimentando o ódio antivacina no X, percebi que isso também me deu a oportunidade de fazer um experimento informal sobre os integrantes do movimento, talvez algo até mais adequado para seus fins do que a enquete do CFM. Assim, durante mais dois dias voltei a abordar o assunto na rede, reunindo um "bestiário" das falácias e do fanatismo dos antivacinistas que lá marcam presença.
Papagaiada
De início, muitas das reações ao post inicial papagaiavam uma peça típica de desinformação que passou a circular no movimento antivacina depois que a decisão do Ministério da Saúde veio a público. Lançando mão da estratégia das meias-verdades, o comentário de uma das subcelebridades antivacina diz que nenhum "país sério" da Europa, como "Dinamarca, Reino Unido, Alemanha, Suécia e Suíça", recomenda a vacinação de crianças contra a COVID-19 porque supostamente o benefício não compensaria o risco, e que a inclusão da vacina no PNI vai "obrigar" a vacinação das crianças brasileiras.
Mentira e mentira. A Dinamarca, por exemplo, na verdade suspendeu o seu programa de imunização geral da população contra a COVID-19 ainda em abril de 2022, e justamente devido à grande cobertura vacinal que permitiu controlar a doença. Até então, no entanto, a vacinação de crianças contra a doença não só era recomendada como estimulada, inclusive com envio de correspondências aos pais ou responsáveis. E, apesar disso, a vacinação de populações vulneráveis lá - inclusive casos especiais envolvendo crianças - continua. A situação é basicamente a mesma para todos os demais países citados - Reino Unido, Alemanha, Suécia e Suíça -, e em nenhum caso há qualquer menção a riscos ou que eles superariam os benefícios da vacinação.
Mas as reações não ficaram por aí. Também foram comuns os ataques ad hominem, como o fato de eu ser jornalista, e não médico - "qual o número do teu CRM?" foi uma das perguntas que recebi -, além de ofensas pessoais e, claro, acusações de estar trabalhando a soldo da "Big Pharma" (alô "pifaizer", até hoje não recebi meu pix...). Outra que não tardou a dar as caras foi a Lei de Godwin, com um dos militantes antivacina me comparando à personagem de Hans Landa, oficial da SS nazista encarregado de caçar judeus escondidos no filme "Bastardos Inglórios", de Quentin Tarantino. Como tenho por regra não alimentar os trolls da internet, porém, deixei estar.
Cenário que se repetiu no segundo dia do meu "experimento". Em nova postagem no ex-Twitter, fiz um breve fio comentando a estupidez do movimento antivacina e suas consequências nefastas para a saúde pública, especialmente das crianças, além de destacar como ele se espalhou pela classe médica brasileira (a que pertence a segunda subcelebridade antivacina que replicou meu post original). Ao fim, defendi a punição dos propagadores de mentiras e desinformação como forma de inibir seus adeptos, principalmente se profissionais de saúde.
"Fascismo"
Novamente repercutido pela primeira subcelebridade antivacina, que num arroubo de interpretação de texto "criativa" afirmou que eu queria "que todos que façam críticas (classificadas por ele como "desinformação") às grandes indústrias farmacêuticas imperialistas sejam presos e censurados", continuaram as acusações de "fascismo", agora somadas à de defensor da censura. Coisas indiretas, como "Bigodinho deve tá orgulhoso de vc lá no infеrnо" ou "Vai genocida, assassino, canalha, fala isso para um familiar vítima de vacina!". Detalhe: em sua descrição no perfil no X, esta subcelebridade se declara "antifascista", mas não demonstra nenhum incômodo de ter seguidores e apoiadores abertamente fascistas. Dize-me com quem andas e te direi quem és...
Mas também apareceram algumas táticas comuns do discurso negacionista além dos ataques ad hominem: o chamado “JAQing off”, com argumentos no estilo "é proibido questionar?" - "Ciência não é uma verdade absoluta. Ciência é pra se duvidar, ser questionada.", disse um militante -; e a falácia do espantalho - "Me pergunto se gente do teu tipo também pedia punição pra quem falava mal da Talidomida", escreveu outro. Destaque ainda para mais um antivacinista que até agora não entendeu que sistemas como o americano VAERS não são fontes confiáveis da incidência de efeitos adversos de vacinas.
Finalizando o experimento, no terceiro dia divulguei na minha conta profissional no X estudo recém-publicado no prestigioso periódico Pediatrics, editado pela Academia Americana de Pediatras (AAP), que comparou o impacto da COVID-19 com outros vírus respiratórios na população brasileira com menos de 18 anos entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2023. O levantamento liderado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revelou que o risco de morte por COVID-19 neste grupo foi mais de três vezes maior do que por outras doenças respiratórias no período, com as crianças de menos de dois anos sendo as mais afetadas. Além disso, a taxa de mortalidade por COVID-19 de pacientes hospitalizados nesta população passou de 6% no Brasil, proporção muito superior à observada em países mais desenvolvidos, onde em geral ficou abaixo de 1%.
Diante disso tudo, não é por acaso que o Ministério da Saúde, na justificativa para inclusão da vacina da COVID-19 no PNI, ressaltou estes impactos. Segundo a pasta, só em 2023 foram registrados 5.310 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por COVID-19 entre crianças menores que 5 anos, com 135 mortes, com a incidência aumentando principalmente a partir de 2022. Além disso, desde o início da pandemia até o final de novembro de 2023 foram registrados 2.115 casos de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) provocada pela infecção pelo SARS-CoV-2 entre crianças e adolescentes brasileiros, com outras 142 mortes.
Enquanto isso, a vacina pediátrica da COVID-19 também se provou segura, mostra o ministério. Com cerca de 6,2 milhões de doses administradas na população de menos de 18 anos, incluindo crianças entre 6 meses e 5 anos de idade, foram registrados apenas 21,7 casos suspeitos de eventos adversos para cada 100 mil doses, dos quais 91,6% foram reações leves e esperadas, com rápida resolução, e nenhuma morte.
"Considerando a incidência e mortalidade por COVID-19 em crianças; a incidência e mortalidade por SIM-P; e que as vacinas COVID-19 são seguras e efetivas em crianças de 6 meses a menores de 5 anos de idade; e considerando ainda que as vacinas COVID-19 para crianças estão licenciadas no Brasil e incorporadas ao Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Imunizações inclui a vacinação contra COVID-19 no Calendário Nacional de Vacinação para crianças entre 6 meses e 4 anos, 11 meses e 29 dias de idade", conclui a nota técnica do ministério.
Ciência contra opinião
Dados, porém, absolutamente ignorados pelos militantes antivacina e seus seguidores. Mais uma vez repercutindo minha publicação, a subcelebridade do movimento respondeu com um ensaio publicado em dezembro de 2022 no Journal of Medical Ethics que argumenta contra a cobrança da vacinação contra a COVID-19 de estudantes universitários americanos à época, quando o mundo enfrentava nova onda da doença provocada pela variante Ômicron. No texto, os autores alegam que os efeitos adversos por eles calculados da vacina não compensariam os benefícios para esta população de baixo risco de complicações pela doença, tornando a exigência "antiética".
Ou seja, o artigo de opinião sacado pela subcelebridade numa tentativa de contra-argumentar um estudo formal e revisado por pares, em um caso claro da falácia de cherry picking, não tem nada a ver com crianças (os estudantes universitários americanos citados no texto têm mais de 18 anos), nada de dados do mundo real de prevenção da COVID-19 ou agravos da vacina e tampouco é uma pesquisa com validade científica.
Tanto que o texto foi objeto de críticas no próprio periódico em que foi publicado. No artigo de resposta no mesmo Journal of Medical Ethics, Leo L. Lam e Taylor Nichols, respectivamente da Universidade de Washington e da Universidade da Califórnia em San Francisco, destacam que os autores do ensaio "enquadram seus argumentos comparando valores que não são cientificamente ou razoavelmente comparáveis" e "usam valores que representam grosseiramente diferentes perfis de risco, agrupando-os em um conjunto de figuras para criar a ilusão de comparações justas". Diante disso, Lam e Nichols concluem que "os cinco argumentos éticos que eles apresentam desmoronam completamente".
E estas são algumas das evidências anedóticas da minha experiência com o antivacinismo. Talvez nem todos antivacinistas tenham tamanha indigência intelectual, mas, diante de minha amostra e do exemplo das subcelebridades do movimento, as perspectivas do contrário não são nada boas. Vale ressaltar ainda que denunciei algumas das reações mais agressivas para o X, inclusive uma que me chamava de "chimpanzé". Mas embora a rede diga não tolerar ofensas ou assédio, parece que esta não é sua prática, e nenhum dos posts denunciados foi removido.
De resto, apenas agradeço às subcelebridades antivacina o alcance permitido por seus retuítes. Como outras redes sociais, o algoritmo do ex-Twitter ignora a qualidade do conteúdo e premia apenas o engajamento. E se com a ajuda deles minhas publicações chegaram a e puderam esclarecer apenas uma pessoa, pai ou mãe que ainda estava em dúvida se devia se vacinar ou vacinar seus filhos, todo ódio recebido já valeu à pena.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência