O mimetismo é um interessante fenômeno evolutivo. Em poucas palavras, trata-se do caso em que espécies independentemente adquirem características físicas semelhantes, principalmente em relação à coloração “aposemática”, quando organismos venenosos ou pouco palatáveis exibem cores fortes para indicar aos predadores que nem vale a pena tentar comê-los, sob pena de passar muito mal ou até mesmo morrer. Entre os exemplos mais conhecidos de coloração aposemática, podemos citar os venenosíssimos sapinhos dendrobatídeos. Estes sapos (ou pererecas) produzem fortes neurotoxinas, que inclusive são utilizadas em setas de caça por alguns povos originários da América do Sul. São extremamente coloridos, facilmente reconhecíveis pelos predadores que não querem passar mal.
Animais que não são perigosos assim às vezes imitam (mimetizam) essas cores, tirando benefício da semelhança. Entende-se que a manutenção de coloração mimética é evidência de forte pressão seletiva causada por predação. O tipo mais conhecido de mimetismo é o “batesiano”, descrito por Henry Walter Bates, e ocorre quando uma espécie não venenosa “imita” a coloração de outra espécie venenosa. Adicionalmente, o naturalista teuto-brasileiro Fritz-Müller descreveu outro tipo de mimetismo (chamado mülleriano), onde diversas espécies, todas pouco palatáveis, apresentam colorações parecidas, também indicando aos predadores que tentar comê-las pode ser um erro fatal.
Dá para entender como a evolução pode favorecer o surgimento de sinais coletivos de perigo – conferindo a todo um conjunto de espécies um tipo de "proteção por reputação associada". Mas isso quer dizer que as espécies, mesmo sendo diferentes, têm os mesmos genes controlando a aparência, funcionando da mesma forma?
Muitos genes
Ao contrário do que popularmente se pensa, não existe um “gene da cor” na maior parte dos sistemas biológicos. O que ocorre tipicamente é uma diversa rede de diferentes genes que interagem, e estes por sua vez são “orquestrados” por uma rede regulatória genética.
Precisamos imaginar que, durante o desenvolvimento de um organismo, centenas de genes precisam ser ativados e desativados em momentos (tempo) e partes do corpo (espaço) diferentes. Essa complexa rede de relações é orquestrada por dois tipos fundamentais de reguladores: elementos cis-regulatórios (CREs), essencialmente sequências de DNA próximas aos genes-alvo (por exemplo, os chamados "promotores"), e também fatores de transcrição (TFs), proteínas que podem se ligar/desligar de regiões do genoma, promovendo ou suprimindo a expressão de genes-alvo.
Atualmente, avançadas técnicas de sequenciamento são capazes de identificar a atividade tanto de CREs quanto de TFs. Estas novas técnicas permitem determinar como a rede regulatória genética está funcionando ao longo do desenvolvimento do organismo.
Um recente trabalho estudou a questão do desenvolvimento de cor mimética em um emblemático par de borboletas: as Heliconius melpomene e Heliconius erato. Estas borboletas são parentes próximas, e apenas duas espécies de um complexo de cerca de 40 espécies co-miméticas. Elas apresentam mimetismo mulleriano, ou seja, são em sua maioria venenosas e semelhantes.
A principal característica mimética é uma grande banda vermelha no meio da asa, bastante visível e reconhecível. H. melpomene e H. erato são parentes, mas não são espécies irmãs. Portanto, adquiriram a capacidade de coloração de maneira independente. Porém, por serem muito próximas, é de se imaginar que utilizaram um ferramental genético semelhante, de maneira paralela – ou seja, ambas têm à disposição a capacidade de produzir a banda vermelha, e espera-se que a tenham utilizado de maneira semelhante.
A surpresa
Steven Belleghem e seus colaboradores analisaram, em artigo publicado neste mês na revista Science, as principais regiões genéticas responsáveis pela regulação do desenvolvimento da banda vermelha. Esta análise se deu ao longo do desenvolvimento da borboleta: desde o estágio larval até o estágio pupal (isto é, no casulo), quando são expressos os genes que produzem a banda vermelha: ou seja, acompanharam a variação do funcionamento dos genes ao longo do tempo. E observaram também como estas mesmas regiões se comportam em diferentes partes do corpo, dividindo a asa e o corpo da larva em regiões que dão origem às partes frontal, medial e traseira da asa: ou seja, viram como o funcionamento dos genes varia no espaço.
Surpreendentemente, o padrão de regulação se mostrou completamente diferente nestas borboletas que são parentes e exibem uma coloração bastante semelhante, produzida basicamente pelos mesmo genes. As análises das regiões de DNA possivelmente envolvidas na produção da coloração revelaram comportamentos muito distintos. Em alguns casos, nenhuma similaridade foi encontrada. A conclusão é que estes dois organismos evoluíram, independentemente, redes genéticas regulatórias totalmente diferentes, mas que ainda assim são capazes de produzir o mesmo resultado.
Funilaria
Existem duas reflexões bastante interessantes que podemos tirar deste surpreendente resultado.
Primeiramente, a máxima proferida por François Jacob em seu célebre ensaio “Evolution and Tinkering”, de 1977, se mostra profundamente acurada. Jacob, com Jacques Monod, ganhou o Prêmio Nobel em 1965 por ter demonstrado a existência de regulação na expressão de genes. Neste ensaio, Jacob defende a ideia de que a evolução funciona muito mais como uma “tinkerer” (funileira, em tradução livre) do que como uma engenheira.
A evolução utiliza os materiais disponíveis, sem um desenho previamente definido, e gera produtos imperfeitos, assim como uma funilaria de fundo de quintal. Uma engenheira, por outro lado, escolheria seus materiais com cuidado, utilizaria um desenho pré-definido e atingiria um resultado perfeitamente adequado à finalidade do projeto. Adicione neste caldo o fato que parte da evolução ocorre por seleção natural (características que conferem vantagem adaptativa são mantidas), mas outra grande parte ocorre pelo mero acaso, fenômeno conhecido como deriva genética (características são mantidas sem nenhuma razão em particular).
No caso da dupla de borboletas Heliconius, vemos essa cena de maneira dramática: as espécies compartilharam um ancestral em comum há cerca de 11 milhões de anos. Por todo este tempo, em suas histórias evolutivas independentes, ocorreram eventos aleatórios e eventos de seleção natural que moldaram diferencialmente as redes genéticas regulatórias de cada borboleta, porém sempre mantendo o resultado final da presença da mancha vermelha no meio da asa.
Em segundo lugar, temos aqui um magnífico exemplo da importância dos ditos “resultados negativos” na ciência. O resultado mais simples esperado para o paralelismo fenotípico (isto é, aparência semelhante) entre o par de borboletas seria encontrarmos também um paralelismo genético (genes semelhantes, regulados de modo semelhante). No entanto, a funilaria da evolução trabalhou com os materiais disponíveis, produzidos por eventos independentes de perda/manutenção de mecanismos de regulação, e gerou, como resultado, aparências quase iguais (existem pequenas diferenças entre as bandas vermelhas de cada espécie) dadas por genes quase iguais – mas regulados de modo radicalmente distinto.
Este exemplo de convergência fenotípica gerada a partir de mecanismos genéticos distintos reforça a ideia de que a presença da banda vermelha é forte indicação de pressão seletiva predatória. Neste caso, o resultado “negativo”, ou seja, distinto do esperado, permite à ciência avançar ainda mais do que poderia se os pesquisadores tivessem obtido o tedioso resultado esperado.
Daniel J. G. Lahr, PhD, é professor associado no IB-USP, e atua na área de microbiologia evolutiva
REFERÊNCIA
Jacob, François. "Evolution and Tinkering." Science, 196 (1977): 1161–1166.